Pescar lambaris
A perda do senso do sagrado pode transformar a vida num simples somatório de dias. Que haja espaço e criatividade para eternizar o que sempre iluminou os passos e aqueceu a vida: a fé!
Voltar aos tempos de infância é um movimento que foge do controle. Ao longo do dia, não são poucas as vezes que recordamos os diversos momentos vividos na tenra idade. São lembranças que não conhecem envelhecimento. Dá a impressão que o hoje se faz tendo como alicerce o ontem.
A proximidade da Semana Santa incrementava ainda mais a disposição dos pescadores. O tamanho ou espécie não importava, mas não podia faltar peixe para o dia de jejum e abstinência de carne. A mãe ordenava e relembrava que era necessário procurar os anzóis e providenciar as iscas. Naquele tempo, até um lambari não era desperdiçado. Havia como que um ritual impregnado de respeito e de silêncio. Os movimentos exagerados e seus ruídos cessavam no amanhecer da Sexta-Feira Santa.
Os tempos são outros. A facilidade de adquirir congelados dispensa a corrida aos rios na busca por lambaris. O silêncio da Semana Santa já não inspira introspecção. A possibilidade de vivenciar um feriadão é mais forte do que a ritualização, tendo como referência a espiritualidade. Vive-se em função da exterioridade e da conquista de novas emoções. Há um desejo quase incontido por novidades. O cotidiano parece pequeno demais para buscas que desconhecem as necessidades existenciais. A insatisfação resulta do desconhecimento dos limites e da pouca consistência quanto ao real conteúdo da felicidade.
A atitude menos indicada, para esse momento da história, é o saudosismo. O passado não volta mais. Todo comparativo deve ser justo: no ontem havia simplicidade e realismo. A alegria era mais sincera. Mas no momento presente também há muita coisa positiva. A vida melhorou, em todos os sentidos. Os criativos meios permitem uma maior qualidade de vida com menos sacrifícios. No entanto, parece haver algo que não quer calar: as pessoas estão mais angustiadas, bem mais centradas no egoísmo, um tanto descontentes e insatisfeitas.
Nem todos conseguem pescar novamente lambaris. Os anos, mesmo que alguns discordem, têm um certo peso, sim. Mas o coração pode conservar a disposição daquele menino, anzol às costas, com largo sorriso, empenhado na simples tarefa de favorecer e reavivar o eloquente respeito presente na Semana Santa. A perda do senso do sagrado pode transformar a vida num simples somatório de dias. Que haja espaço e criatividade para eternizar o que sempre iluminou os passos e aqueceu a vida: a fé!