COMENTÁRIO À BULA MISERICORDIAE VULTUS: O caminho do acontecer da misericórdia na alma do cristão. Exemplo em São Francisco.
II Parte
Ninguém nasce e gera se não foi gerado. A ação de Deus, que quer nos fazer misericordiosos, se situa ao mesmo tempo no âmbito da firmeza e da doçura, da força e da ternura. Ser Deus “gerador” é ser dotado de um pius affectus (de sentimentos de ternura); e por ser mestre deve ser dotado ao mesmo tempo de um dirus affectus (de sentimentos de firmeza e até de dureza).
O nascer da Misericórdia em nossa história pessoal acontece quando a Graça intervém. Não basta a boa vontade, não basta saber e nem mesmo desejar. Na Bula o Papa cita São João: “Deus é amor” (1Jo, 4). Na Bula meditamos um pouco o mistério de Deus e o seu agir forte a fim de expressar sua misericórdia. Nos perguntamos, agora, como, em sua subjetividade, o cristão passa a experimentar, viver e conhecer esse agir misericordioso de Deus que termina por gerar cristãos também misericordiosos.
O problema é o método, dizia Wittgenstain. Em outras palavras: como conhecer a misericórdia divina? O grande teólogo Hans Urs Von Balthasar criticava as palavras de um confessor que declarara à uma carmelita: “Declaro que você jamais ofendeu ao bom Deus”. O Confessor com isso estava querendo dizer que a monja não tinha cometido nenhum pecado grave na vida. O Teólogo considerava que esta frase impediu que Santa Teresa do Menino Jesus conhecesse maiormente a divina misericórdia. Bom, deixemos esta questão.... Importa só tomar consciência que o conhecimento da Divina Misericórdia não se deve dar por descontado, pois “depende” de realidade para além do mero saber acadêmico. Daí que nossa reflexão se endereça para o “como”, a maneira.
São Francisco desenvolveu de tal forma a compaixão pelo próximo e pelas criaturas que realmente deve ser chamado “Irmão Universal”. Como ele alcançou tal grau de compaixão e de misericórdia? Certamente pelas pegadas da Pobreza. E como essa Pobreza se instaurou nele? Vejamos alguns fatos da vida dele.
1202 Guerra contra Perugia. Os nobres de Assis, aliados à Perugia lutam contra os burgueses de Assis. Francisco participa, é derrotado e aprisionado. Após um ano, adoentado, é resgatado pelo pai.
1205 Vai à guerra na Apúlia. Querendo tornar-se cavaleiro, junta-se ao exército papal e vai para a guerra na Apúlia (Puglia). Em Spoleto tem uma visão em sonho e volta para Assis. “Quem te poderá ser mais útil: o senhor ou o servo? Então por que preferes o servo ao senhor?”.
- Até aqui temos duas guerras perdidas e o “ego” gravemente e tremendamente ferido.
1205 Encontro com o leproso. Francisco está num período de muita reflexão e oração. Certa ocasião vê um leproso que vem em sua direção.Vencendo o horror que tinha por esta doença e pelos seus doentes, vai ao seu encontro e trata-o com carinho. Este evento é registrado pelo próprio Francisco como importantíssimo para a sua conversão.
- O contato com a caducidade, com o decrépito, com o feio, com secreções purulentas, carnes putrefatas, com tudo o que nos causa ojeriza. Ali recebeu uma Graça especial, decisiva, norteadora: “o que era doce tornou-se amargo e o amargo tornou-se doce”. Aqui Francisco entra na vida real superando o inconsciente que nega a morte, e “vê” que a morte existe. Aqui assistimos um golpe tremendo no narcisismo do filho de Pietro Bernadone.
1205 A cruz de S. Damião fala. Rezando na igreja de São Damião, ouve um pedido: “Francisco, vai, conserta a minha casa que está em ruínas”. Levando a mensagem ao pé da letra, restaura as igrejinhas abandonadas de São Damião, São Pedro e Porciúncula.
- O Deus de Francisco aparece frágil, crucificado, pedindo favor. Tudo se torna pequeno, escondido. Nada que se pareça a um jovem montado em seu cavalo, presumido, petulante, com espada e roupas de guerra em busca de glória, reconhecimento, aplauso, fama...
1206 Nu perante todos. Processado pelo pai, Francisco na praça da cidade e em frente ao bispo devolve tudo o que tinha e que havia recebido do pai; ficando nu perante todos. De agora em diante poderei dizer livremente: “Pai Nosso que estais nos Céus, não pai Pedro Bernardone”.
- Nova identidade é aceita explicitamente, publicamente. Francisco deixa um mundo, uma cosmovisão, os próprios interesses, a impiedade burguesa, e abraça a irmandade universal, o interesse de todos (Pai nosso).
O Banimento ... Uma vez frei Francisco narrou a frei Leão “Quando chegarmos a Santa Maria dos Anjos, inteiramente molhados pela chuva e transidos de frio, cheios de lama e aflitos de fome, e batermos à porta do convento, e o porteiro chegar irritado e disser: ‘... são dois vagabundos que andam enganando o mundo e roubando as esmolas dos pobres; fora daqui!’ E não nos abrir e deixar-nos estar ao tempo, à neve e à chuva, com frio e fome até à noite: então, se suportarmos tal injúria e tal crueldade, tantos maus tratos, prazenteiramente, sem nos perturbarmos e sem murmurarmos contra ele ... escreve que nisso está a perfeita alegria. ...”.
- Nascer para a misericórdia, fazer acontecer em si próprio a misericórdia, tem seu lado de “loucura do amor” que se desfaz para resgatar a humanidade. Deixemos o comentário ao próprio Francisco: “Acima de todas as graças e de todos os dons do Espírito Santo, os quais Cristo concede aos amigos, está o de vencer-se a si mesmo, e voluntariamente pelo amor suportar trabalhos, injúrias, opróbrios e desprezos”[1]. Como São Francisco deixa claro, trata-se de uma “graça” e não de um mero dever por dever. Certas coisas que nos parecem descabidas, sem sentido, só os pequenos conhecem: “.. Graças te dou, ó Pai, Senhor dos céus e da terra, pois escondeste estas coisas dos sábios e cultos, e as revelaste aos pequeninos.... (Mt 11, 25). Vale lembrar que a “perfeita alegria” nasce no coração de Francisco quando este já se aproximava do fim do seu percurso neste mundo, e não no início. Ser “irmão menor” não foi um dado simples para São Francisco, mas uma dádiva buscada zelosamente. Importa aspirar, desejar, sentir-se atraído pelo Reino dos Ceus, e o mais cabe à “graça”.
1224 Estigmas. Francisco e Frei Leão vão ao Monte Alverne para a Quaresma de São Miguel. Na festa da Exaltação da Santa Cruz, 14 de setembro, Francisco vê o serafim alado e crucificado, durante esta visão recebe os estigmas de Jesus Crucificado.
- Neste monte Francisco padeceu ativamente uma experiência de fascinante rendição (“soggiogamento”, “Überwaeltigung”) devido a violência da Graça que provem da plenitude equorea da realidade que gloriosa jorra dos abismos de Deus, eternamente fluente e irresistível. Mais do que nunca passa a ser ferido, ferido de amor, do amor que levou Jesus a subir a cruz. Aqui a misericórdia se instaura triunfante em Francisco[2].
1225 Cântico do Irmão Sol. Altíssimo, onipotente, bom Senhor, teus são o louvor, a glória e a honra e toda a bênção. Somente a ti, ó Altíssimo, eles convêm, e homem algum é digno de mencionar-te...
1226 Percebendo cada vez mais a aproximação da irmã morte, pede para ser colocado nu na terra nua, acaba aceitando usar o hábito do guardião. Pede que leiam o Evangelho da Última Ceia, abençoa os irmãos presentes e futuros, morre cantando.
- Conclui a vida terrena deitado na terra, entregue à terra, sua Irmã. Francisco é irmão de todos, pois a terra é a mãe. Se aceita mortal, humano. Permite Deus ser, a Misericórdia agir. Totalmente falecido, isto é, rendido, entregue, sem reservas, perdido de si, pois encontrado por Outro, Francisco vive na Misericórdia Eterna, na Pericorese Trinitária.
As ações de Deus na vida de São Francisco fizeram-no conhecer a Misericórdia. De um lado ele padece (veja as derrotas nas batalhas, o beijo ao leproso, o deixar o pai, as estigmas, a perfeita alegria e o falecimento) e assim, de outro lado, é capaz de se tornar compassivo, terno, cortês, misericordioso (cuida dos bichos, da natureza, do leproso, do irmão faminto, de frei Leão angustiado, chama ao ladrão de irmão, quer promover a paz entre a população e o irmão lobo, entre o bispo e o prefeito, etc.).
Imaginemos, por uns instantes, o quanto tudo isso significou e foi uma reviravolta na vida de Francisco. Por vezes não sentimos nenhuma atração pelo mundo da misericórdia e diante dessa verdade podemos imaginar se de repente tudo sofresse uma revolução. Certamente passaríamos a levar amor onde houvesse ódio; perdão onde houvesse ofensa; união onde houvesse discórdia; fé onde houvesse dúvida; verdade onde houvesse erro; esperança onde houvesse desespero; alegria onde houvesse tristeza;
luz onde houvesse trevas. E procuraríamos consolar mais que ser consolados; compreender mais que ser compreendidos; amar mais que ser amados. Daí as obras de misericórdia corporais nos “empurram” para os hospitais, leitos dos moribundos e doentes, cárceres, centros de recuperação, favelas. E as obras de misericórdia espirituais nos impelem a aconselhar os indecisos, ensinar os ignorantes, admoestar os pecadores, consolar os aflitos, perdoar as ofensas, suportar com paciência as pessoas molestas, e rezar a Deus pelos vivos e defuntos.
Decididamente Misericórdia é o próprio Deus. Misericórdia é uma saída de si sem reservas e sem segurança nenhuma, mas puro dar de si. Não deixa de ser uma espécie de perder-se de si próprio, pois a saída é arriscada: não se sabe qual reação o outro terá, se de aniquilar-me ou se de acolher-me, pois estou sem segurança, o meu “eu” está indefeso às ofensas e cusparadas. O Verbo de Deus se fez carne e revelou para nós o mistério da misericórdia, o mistério de Deus. Contemplando a vida, morte e ressurreição de Cristo passamos a vislumbrar o mistério do próprio Deus Eterno. A Graça pode fazer-nos filhos de Deus, ter a filiação divina. Os filhos de Deus tem em suas veias o sangue do pai, de Deus.
EXCURSUS
Ainda sobre a relação Justiça e Misericórdia, podemos fazer um paralelo e uma aproximação entre esses atributos divinos e as realidades do masculino e do feminino. No mistério de Deus há misericórdia (Chesed) e Justiça, Amor e Verdade, comunhão e comunicação, ternura e fidelidade (Emet).
Recebendo misericórdia divina, somos justificados. Aqui temos mais presentes o feminino, a misericórdia, o amor, a comunhão, a ternura. As ações misericordiosas são realizadas com aconchego e calor, circundando de atenção o favorecido. No coração de quem age com misericórdia divina há uma inclinação forte, languida, quase morbosa que reflete um estado estonteado, ofuscado, cego pelo afeto que tem pelos seus caros. Não estamos longe de ver alguém ao ponto de dar a vida por outro. Há doçura e infinita acolhida; há ternura infinita sempre disponível à acolhida e ao perdão; há escuta, paciência, tolerância, consolo, afeto; há padecimentos, ação de Graças, compaixão pela própria carne (os outros humanos) e por toda criação.
São Paulo também viveu isso: “... fomos brandos entre vós, como a ama que cria seus filhos. Assim nós, sendo-vos tão afeiçoados, de boa vontade quiséramos comunicar-vos, não somente o evangelho de Deus, mas ainda as nossas próprias almas; porquanto nos éreis muito queridos. Assim como bem sabeis de que modo vos exortávamos e consolávamos e testemunhávamos, a cada um de vós, como o pai a seus filhos;”(1Tess.2,7-8.11).
Deus é justiça e educa à misericórdia. Deus introduz seus filhos na sua misericórdia. Eis o Senhor que entra em cena e tira por um momento seus filhos do mundo de pecado para introduzi-los no mundo divino com força, com segurança, com solidez e enraizamento. Deus aqui é fidelidade, verdade, justiça, segurança, firmeza e rocha firme. A intervenção paterna de Deus inaugura uma separação entre seus filhos e o mundo egocêntrico no qual os filhos estão e fazem parte. O mundo egocêntrico é aquele que iludi, que é mentiroso, pois passa a ideia que o sujeito é “onipotente”. Com a intervenção paterna de Deus o cristão será capaz de reconciliação com a vida em suas alegrias e tristezas, vida e morte. O Pai Eterno frustrando e proibindo cria condições para o filho aprender e exercitar a própria autonomia e liberdade (dizendo “não” ao filho, este se vê, pois encontra uma barreira, e assim ele “nasce” do pai, e não somente da mãe). Deus Pai, tirando o filho do marasmo, é também aquele que o chama pelo nome, isto é, revela a sua identidade; é aquele que lhe abre uma estrada, que lhe confia um compromisso, um serviço, um dever; é aquele que confirma os seus primeiros sucessos, que o convida a identificar-se com ele e a andar mais longe que ele. E assim o cristão estará capacitado a exercer misericórdia, a sair de si, a tecer uma aventura de amor. O Pai é fonte de força e de segurança e solidez, realidades que o cristão provará confrontando-se com Ele. Sem o agir viril do Pai, o cristão terminará carente de identidade. Faltar-lhe-á segurança, duvidará de si mesmo, não saberá bem quem é e o que deve fazer. Faltar-lhe-á confiança nas próprias possibilidades e terá medo de empenhar-se em algo, em sua vocação. Aparecerá volúvel, inconstante e caprichoso. Aparecerá sem espinha dorsal e a sua vida será marcada pela falta de estabilidade e de uma linha de direção.
Para a cultura bíblica, no “osso” está a vida. A expressão “osso dos meus ossos” contida no Genesis quer dizer que a mulher, o socorro de Deus para o homem, sustenta o homem, alimenta a segurança (os ossos) do homem. O nascer da misericórdia em nós depende do agir de Deus em nossas vidas. Assim como Adão viu sua força provir da mulher, do socorro de Deus, assim também a misericórdia, a bondade, o prazer que restaura nossa força e confiança na vida, provem de Deus; provem de Deus em sua luz, em sua numinosidade, em sua sacralidade, em seu mistério, em sua majestade, em sua força e poder, em sua santidade, pois Ele é estremecedor, é “tremendum”, é prodigioso....
A misericórdia divina é o deleite do homem. Ao ser gerado o ser humano é puro “padecente”, absolutamente nas mãos da misericórdia. Infelizmente passa a viver com medo de se render. Mas a morte o chama novamente a se entregar ao deleite, à misericórdia: “Em tuas mãos, ó Pai, entrego o meu espírito”, disse Jesus.
O amor é forte, pois Deus onipotente, o Principio é amor (cf. Ct 8; 1 Jo 4). Mesmo perante a relutância do filho mais velho, o pai não cede, perdoa. “E feliz é aquele que não se escandaliza por causa de mim” (Lc, 7, 23). Em maus bocados se encontra quem não se rende à misericórdia, pois o juízo se faz (Mt 25, 32ss). Que o Ano Santo iniciado seja Kairós para nós e não meramente mais um Chronos.
[1] Fioretti de São Francisco, A Perfeita Alegria. Em Efésios 3, 13 São Paulo nos convida a suportar, a carregar o irmão. Claro que para isso temos que considerar a vida sub specie aeternitatis.
[2] Se Deus, a Misericórdia, é pura saída de si, significa que não tem nada como propriedade. Jesus na cruz não dispunha do seu corpo – estava em cravos -, e a alma que tinha rendeu-a ao Pai: ali foi completamente pobre. A face da misericórdia é Jesus Cristo. Na cruz, como em toda a sua vida, tornou evidente “aquilo” que se passava no recôndito de sua intimidade: Jesus vivia em padecendo a vida da fonte da vida, o Pai. Assim podemos entender, neste contexto, que aquilo que chamamos doação de si, misericórdia, cruz, falecimento como rendição ao Senhor, na verdade, coincide com a vida. Viver sem nada de próprio é viver em Deus Uno e Trino, é viver em “morte-doação de si”, em pobreza: é viver em sumiço para que a verdadeira vida apareça; é um não impor obstáculos ao mistério da misericórdia que palpita e lateja para vir à tona.