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Coração de pedra versus coração de carne: João 8

Publicado por Frei João de Araújo Santiago | 12/03/2016 - 11:38

"Arrancarei de vós o coração de pedra e vos abençoarei com um coração de carne" (Ez 36, 26)

Coração de pedra versus coração de carne

João 8

“Os mestres da lei e os fariseus trouxeram-lhe uma mulher surpreendida em adultério... Na Lei, Moisés nos ordena apedrejar tais mulheres. E o senhor, que diz?” Se Jesus confirmasse o que diz a lei de Moisés, nada de novo estaria trazendo a esta nossa velha humanidade. Se se insurgisse contra a lei simplesmente seria réu também ele. “Mas Jesus inclinou-se e começou a escrever no chão com o dedo”: “... todos aqueles que se apartam de mim serão escritos na poeira; porque abandonam o Senhor, a fonte das águas vivas” (Jr 17, 13).

No livro do Êxodo 31 se diz que a lei foi gravada em pedra. E há também profecias como a de Jeremias que sonha com a lei gravada nos corações. “Gravarei nele a minha lei, hei de escrevê-la em seus corações. Eu serei o seu Deus e eles serão o meu povo” (Jr 31,33).

Biblicamente falando, a justiça de Deus é uma ação divina para eliminar o mal. E o mal é eliminado quando o Senhor faz justiça, isto é, quando recoloca o ser humano no caminho da vida. O pai do filho pródigo faz justiça acolhendo o filho que abandonara a casa paterna. Jesus irá fazer justiça salvando a mulher pecadora. Fazer justiça é fazer a vontade de Deus reinar nas pessoas. Não tem nada a ver com matar as pessoas que cometeram o pecado.

O Juiz poderá dá anistia ou um indulto que reduza a pena. Não é assim a misericórdia. Jesus aqui não é juiz, mas se deixa levar pelas entranhas da misericórdia que ele experimenta. E levado por esta emoção irá fazer justiça a uma filha que não está vivendo no justo.  Um juiz é chamado a se relacionar através da lei. Jesus, ao contrário, se relaciona como que em família: como entre pessoas que se amam.

“Visto que continuavam a interrogá-lo, ele se levantou e lhes disse: ‘Se algum de vocês estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar-lhe a pedra’. Inclinou-se novamente e continuou escrevendo no chão”.

 Faz-se silêncio. Uma coisa é pensar e falar de acordo com um grupo: cada um é apoiado pelos outros. Outra coisa é cada um voltar-se para si mesmo, saindo do grupo.... Diante das palavras: “Se algum de vocês estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar-lhe a pedra", faz-se silêncio, cada um se olha, cada um fica diante da própria “resposta” que dará: jogar ou não jogar ...?  Cada um será chamado a responder por si. Não adiante dizer a si mesmo: “os outros fazem assim, também eu o faço”. Você jogaria a pedra porque outros jogam? Jesus, com a pergunta, põe cada um diante do seu próprio coração. E cada um descobrirá que tem um coração de carne, que não basta o coração de pedra (a lei). De fato, desistiram de condenar a mulher. Jesus conseguiu escrever algo de bom em seus corações.    Silêncio. Jesus não dirá absolutamente nada (8,6). “Silêncio” também de olhares. Jesus abaixa o rosto. Que delicadeza. Jesus permite que cada um fique consigo mesmo, sem se intimidar... No silêncio surge algo que não havia ali: surge a consciência, surge humanidade (a dor, o sofrimento, a história pessoal de cada um), surgem compaixão, ternura, cortesia, singeleza e pacificação Descobrem uma fonte de água viva dentro deles; fonte que salva vidas. Aceitemos que todos somos pecadores. Eu, você, aquela pessoa conhecida e também aquela desconhecida tem a mesma dilaceração interior. Na dor, na busca de perdão e de redenção, na necessidade somos todos iguais. No silêncio Jesus os convida a ver que por detrás de cada um há uma história, fatos, uma pessoa com os seus sentimentos, com as suas dificuldades, com os seus problemas, com a sua dignidade.

“Os que o ouviram foram saindo, um de cada vez, começando com os mais velhos”. Os mais velhos representam a sabedoria e são eles que entendem logo que as escolhas se devem fazer com o coração.

Interessante é que não mais se reúnem em torno da mulher. A sensação e os holofotes se dirigiam para aquela mulher. E agora eles vão para onde? Cada um vai para a própria vida, olhar mais a esposa, os filhos, o próprio trabalho, pedir perdão a Deus dos próprios pecados, ser mais verdadeiro, etc.

Então Jesus pôs-se de pé (melhor tradução: só ergueu a face, continuando inclinado) e perguntou-lhe: ‘Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?’ ‘Ninguém, Senhor’, disse ela. Declarou Jesus: ‘Eu também não te condeno. Agora vai e não peques mais’".

Jesus acaba com o esquema do bode expiatório. O mal precisa ser eliminado. Mas como ele se instaura em toda pessoa, não se pode eliminar a todos, e aí se escolhe de eliminar alguém para pagar por todos e assim satisfazer ao desejo de justiça. Todo espírito humano, todo grupo humano tem sede de um bode expiatório: alguém que encarne o mal que habita também dentro de mim e que não sou capaz de reconhecê-lo em mim. Então, para tentar fazer as pazes com a minha consciência, elejo alguém ou um grupo que será o mal. Veja-se os casos de abusos e linchamentos dentro das prisões quando um preso tenha sido condenado por infringir a lei Maria da Penha, por exemplo.

 

ALGUÉM ACREDITA EM MIM.

Jesus não diz à mulher: "Muito bem, fizeste bem!". Ele diz: "Vai, e de agora em diante não peques mais" (8,11). A culpa paralisa, o perdão liberta. "Talvez fizeste algo que nem mesmo agora te faz feliz. Aconteceu, mas agora deixa pra lá. Não te condene. E saiba que tu podes recomeçar".  Isso é maravilhoso: Jesus acredita que a mulher tenha, sim, recursos, forças para superar tudo aquilo. Isto é amor.

Jesus não sublinha o pecado, mesmo sabendo que o pecado se fez presente. Jesus enfatiza a capacidade da mulher para sair dele, os seus recursos para construir uma vida melhor e para ser diferente. Jesus disse: "Tu podes. Não é verdade que és assim e que serás sempre assim. Não acredites nisso! "Tu podes ser diferente, podes ser melhor, podes mudar. Eu sei que tu podes, eu acredito nisso".

Jesus não chama a atenção para o erro. Ela também sabia que era errado! Jesus enfatiza o lado positivo. A fé é simplesmente confiar no outro. Jesus amou a mulher, porque ele disse: "Sim, terás errado, mas eu acredito ti."

Sobre o autor
Frei João de Araújo Santiago

Frade Capuchinho, da Província Nossa Senhora do Carmo. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Mestre em Teologia Espiritual. Tem longa experiência como professor, seja no Brasil, como na África, quando esteve como missionário. Por vários anos foi formador seja no Postulantado, como no Pós Noviciado de Filosofia. Atualmente mora em Açailândia-MA. Já escreveu vários livros e muitos artigos.