Homila do Domingo de Ramos - ano C / Frei João Santiago
Domingo de Ramos (Lucas 19, 28-41)
Não basta somente sonhar e desejar alcançar. Urge tomar atitudes e investir todas as forças para galgar, cavalgar, tomar conta, pegar as rédeas, montar no próprio chamado interior, responder ao chamado divino, não calar a voz interior: importa viver, amar, ofertar-se.
- “Subindo para Jerusalém. ... se aproximavam de Betfagé e Betania ...” (vv. 28-29). Betânia era o lugar onde se faziam as purificações antes de ingressar na cidade santa, Jerusalém. Que possamos purificar nossas concepções pagãs de um “messias” que triunfa esmagando a fim de deixarmos de ser “figueiras estéreis” (“Betfagé”). “Betania”, a casa do pobre: o Senhor vem ao encontro de nossas misérias corporais e espirituais, carregando-as sobre si. A Cruz se aproxima, o Reino está próximo (Lc 18, 31-33), o jumentinho “esclarece” o sentido da Cruz.
- “... enviou dois discípulos ... encontrareis um jumentinho amarrado no qual não montou ainda homem algum. Desamarrai-o e trazei-o” (v. 29-30). O asno era o animal símbolo do trabalho diário. Também chamado “somaro” (aquele que carrega pesos) ou “bastardo” (pronto para carregar pessoas ou coisas). Cabe aos discípulos desamarrá-lo. O asno estava preso, amarrado, aprisionado, “abafado”, escondido, não levado em consideração, oprimido. Por que será? Porque não fora escolhido! Ainda hoje vemos quanto um cavaleiro se “sente” montado em um cavalo de raça, grande, belo e forte. Mas... montar num asno? Não tem graça nenhuma! Por isso o asno vivia preso, e preso por muitos senhores (“... Enquanto desamarravam, os donos lhes disseram: Por que soltais o jumentinho?” – v. 33b). Tais “donos-senhores” são os nossos ídolos, nossas seguranças e os nossos medos que resistem em “soltar” o asno, o serviço, pois preferimos usar nossa impiedade, ser servidos e não servir; tememos amar e se sacrificar, e por isso não queremos ver o jumentinho solto.
- “E se alguém vos perguntar: ‘Que fazeis?’, dizei: ‘O Senhor precisa dele’" (v. 31). A Palavra nos revela que o Senhor precisa de amor e serviço, precisa “montar no asno, no jumentinho”, precisa fazer de sua vida uma oferta (“Eu vim para que todos tenham vida em abundância”; “Meu alimento (minha sobrevivência) é fazer a vontade do Pai”; “Tomai todos e comei; isto sou eu”). Obedecendo às Palavras do Cristo, fazendo da nossa a sua vida, seremos livres, conquistaremos a tão sonhada liberdade interior, a tão almejada felicidade tão bem casada com o serviço (cf. Jo 13, 17).
- Asno como símbolo do serviço. Tememos servir, pois tememos ser instrumentalizados, enganados, dominados por outros. Tememos proximidade, vínculos. Tememos que a própria piedade nasça em nossos corações. Confundimos “servir”, “serviço”, com “ser besta”. Pensamentos nos asilam: “O que ganho em servir?”; “Nem por isso o mundo mudará”. Em nossos pensamentos, decisões e atitudes tendemos a coincidir felicidade com realização própria, sucessos, consumo e usufrutos. Lançamos-nos em querer, ser e ter tudo e nada sacrificar. Dessa maneira o “asno” continuará amarrado, preso, esquecido, não montado, não aceito. Não podemos calar a melhor voz que trazemos dentro de nós, pois fomos criados à imagem e semelhança de Deus, não podemos permanecer para sempre como frutas verdes que não amadurecem, como árvores sem frutos.
O “asno” deve ser liberado, livre, leve e solto: “Fogo eu vim lançar sobre a terra, e como gostaria que já estivesse aceso!” (Lc 12, 49); “... tirou a capa e colocou uma toalha em volta da cintura. Em seguida começou a lavar os pés dos discípulos” (Jo 13, 4). Cf. Heb 2, 10-15.
Infelizmente, porém, o “asno” pode ficar preso, amarrado (em angústia, apertado). Quão grande deve ser o sofrimento de uma “alma” que nunca se tornou piedosa (um dos dons do Espírito Santo), que cala dentro de si o melhor que tem dentro de si (a capacidade de servir), que nunca amou ninguém! Diante disso reflitamos: - além das noventa e nove há uma ovelha perdida; - no meio do caminho tem um homem ferido pelos assaltantes; - lançada no chão tem uma pecadora por ser apedrejada; - na sarjeta tem um cego pedindo visão; - entre a multidão tem uma senhora que sofre de hemorragia lá se vão doze anos; - em Naim tem uma viúva chorando seu único filho falecido.
Poderíamos continuar a lista. Posso ficar com a minha “felicidadezinha” criada ou posso desatar o “asno”, entendendo o segredo do “Lava-pés”, o segredo de ser feliz ajudando a nascer a felicidade do outro, o segredo da felicidade como alegria pela felicidade do outro: saída de si para a comunhão (aquilo chamado “amor”).
- “Conduziram a Jesus o jumentinho, cobriram-no com seus mantos, e Jesus montou nele. Muitos estendiam seus mantos no caminho” (vv. 35-36). O manto era a “segunda pele” do pobre. Servia para vestir o pobre durante o dia e protegê-lo do frio durante a noite. O manto representa minha sobrevivência, aquilo sem o qual não vivo: minhas certezas, meus afetos, “minhas pessoas”, minha segurança, minha “certeza” de que verei o amanhecer. Como as pessoas que “jogaram” seus mantos sobre e sob o jumentinho, somos convidados a “apostar” nossa vida, segurança e sobrevivência em serviço, em doação, tal como aquelas mães que preferem deixar de comer a fim de verem seus filhos alimentados. Aqui teríamos o fim de um mundo e o surgir do Reino de Deus.
Jesus montou no asno, tal como um rei senta no seu trono. O Senhor se manifesta em sua potência, reina, lá onde um ser humano suporta o peso do irmão (“Onde dois ou mais estiverem reunidos, eu estou – reinando - no meio deles”). Eu acredito, aposto, que do serviço e do amor (“Asno” e Cruz) podem germinar a Vida, a Ressurreição?). É uma “aposta” e tanto; é adesão e fé absolutas em Jesus Cristo (“Crê no Senhor Jesus, e assim serás salvo, tu e os de tua casa!” – At 16, 31).
- “... os discípulos em massa e alegres começaram a louvar a Deus em voz alta por todos os milagres que tinham presenciados. Diziam: ‘Hosana! Bendito o que vem em nome do Senhor!’” (v.37-38). O Reino de Deus já chegou! O fim de um mundo aconteceu! Totalmente? Ainda não, pois ainda não entendemos, ainda não aderimos, ainda queremos galopar em cavalos e desprezamos o humilde jumentinho ou preferimos deixá-lo amarrado, tememos uma vida diferente daquela centrada no egoísmo. No dia em que o serviço recíproco for instaurado entre nós, o Reino será pleno, o mal ficará longe de nós, e o poder será entendido como serviço.
- Alguém disse que enquanto, passando seus dias nesta terra, um homem ou uma mulher não encontrar irmãos pelos quais oferecer a própria vida, a sua vida será uma prisão. Viverá como alguém que tenta matar a sede com a própria saliva: vida desesperada, fugitiva, sem repouso, sem encosto, sem descanso e sem sentido maior. O homem precisa urgentemente de liberdade, soltar o “asno”, passar a viver, render-se, criar laços, vínculos, comunidade, família. O Senhor Deus quer isso (“O Senhor precisa dele” - do asno), deseja que desejemos a liberdade, não vivamos da própria saliva. Então... vamos soltar ou deixar amarrado o jumentinho? Se soltarmos seremos livres do medo, da angústia, de todas as reações de agressividades que temos perante os outros por medo de sermos dominados. Se deixarmos amarrado o jumentinho, montaremos os grandes cavalos e disputaremos para ver quem corre mais, quem é mais bonito, quem é mais pujante, galhardo, amedrontador: e, assim, o inferno se instaurará lá onde estivermos.
- Não podemos negar que mais cedo ou mais tarde – nem que seja na hora da morte - cada um de nós imaginará e julgará que servir, amar, cuidar significará fazer sacrifício de si. E o sacrifício de si, hoje em dia, não encontra apoio e justificativa. A tendência, na melhor das hipóteses, é dizer: “Cuide de si e se sobrar tempo talvez cuide de outros”. De outro lado temos nossa fé e o convite tremendo da Palavra: “Levais as cargas pesadas uns dos outros e, assim, estareis cumprindo a Lei de Cristo” (Gal 6, 2). Podemos, mesmo sem entender, aderir ao convite da Palavra, pois, afinal, Jesus ressuscitou, o que significa que é pautando a vida no serviço que chegamos a vencer a morte, experimentar a vida palpitante do Eterno já nesta vida. Podemos também entender que quando servimos não brigamos, salvamos a família e a comunidade. Quando cada ser humano pautar sua própria vida embriagando-se de si e sem nenhum tempo ou espaço para o irmão, todos penarão, será instaurado o reino da violência, do descaso e da indiferença: ninguém cuidará de ninguém e ai dos vencidos, dos enfermos, dos empobrecidos, dos carentes, dos solitários, etc.