Homilia da Festa da Sagrada Família, Jesus, Maria e José / Frei João Santiago
Sagrada Família, Jesus, Maria e José
(Lucas 2, 41-52)
- "Seus pais iam todos os anos a Jerusalém para a festa da Páscoa. Tendo ele atingido doze anos, subiram a Jerusalém, segundo o costume da festa. .Acabados os dias da festa, quando voltavam, ficou (ὑπομένω) o menino (παῖς) Jesus em Jerusalém, sem que os seus pais o percebessem” (vv. 41-43).
A tradição prescrevia que aos 13 anos todo rapazinho deveria se tornar filho da Palavra e dos preceitos de Deus. Como quem tem pressa de responder ao próprio chamado, aos doze anos, como o jovem Samuel, Jesus se comporta como “menino-servo” (παῖς) livre, adulto e responsável, como filho da Palavra e do preceito divino, e não mais somente dos próprios genitores.
Comporta-se como “livre” porque conhece a verdade que Deus é Pai de todos (também dos próprios pais) e que, portanto, os outros são seus irmãos, todos tem o seu “sangue” (não só os parentes). Age como “responsável” porque não se faz de rebelde, de “maluvido”, mas interage, responde aos apelos e chamados da “Palavra” na vida concreta, cotidiana, no dia-a-dia. “Livre” e “responsável”, portanto, é a imagem de uma pessoa já “nutrida”, adulta, já capaz de “dar conta do recado”, “dar conta da vida”, de ser produtivo e de alimentar outros.
Jesus, família e parentela peregrinam. Pensando bem, nos damos conta que “habitamos” lá onde moram os nossos desejos e aspirações, e que a nossa vida coincide com o que queremos para nós mesmos. Um bom desejo é um bom caminho, e aponta para uma boa meta. Viver é desejar, é tecer um caminho. Reconheçamos, portanto, que estamos sempre longe daquilo que desejamos, que estamos, portanto, sempre em desejo. Não se trata dos pequenos sonhos (um estipêndio mais alto, um sucesso aqui e acolá ou um prestígio maior entre os conhecidos), mas de um desejo maior: desejo de minha face, de minha verdade e de minha autenticidade, que se confunde com o desejar a Deus. Sejamos peregrinos, portanto.
Infelizmente, pode acontecer de preferirmos ser “turista” ou somente preferir vagabundar: enquanto o turista da vida procurar passar o tempo ou as férias conhecendo isso ou aquilo, para o vagabundo, o “negócio” é “ir indo”, pois, afinal, “tanto faz como tanto fez”. No entanto, porém, o humano tem o “gérmen” do infinito e do siderante, carrega consigo o desejo de um reencontro, e se o homem caminha, peregrina, é porque já aqui e agora, tateando ou pressentindo, dar-se conta que há uma realidade e verdade que somente esperam de serem eleitas para serem realizadas na vida. Trata-se, portanto, de deixar a vida de turista e de “vagabudo”, e abraçar a vida desejosa de um reencontro com a verdade, com a realidade que está à espera de ser eleita para se tornar real no cotidiano.
Chegando a Jerusalém, Jesus não retorna, fica, “finca seus pés” (ὑπομένω) na cidade santa, suporta, como filho de Deus e servo de todos, o peso de ficar a sós em Jerusalém.
- “Pensando que ele estivesse com os seus companheiros de comitiva, andaram caminho de um dia e o buscaram entre os parentes e conhecidos. Mas não o encontrando, voltaram a Jerusalém, à procura dele. Três dias depois o acharam no templo, sentado no meio dos doutores, ouvindo-os e interrogando-os. Todos os que o ouviam estavam maravilhados da sabedoria de suas respostas” (vv. 44-47).
Sendo livre, pois “filho-servo” da Palavra, e não escravo de certos costumes, Jesus não estava onde todos pensavam que deveria estar, não permitiu que abafassem a “Voz”, o seu chamado, a sua missão e vocação, não permitiu que lhe determinassem um “amanhã”, um destino, uma profissão qualquer. Não é encontrado onde procurado. Os pais não entendem e sofrem. Pais e filhos, todos, são chamados a serem ouvintes de um chamado divino. É perigoso abafar a voz divina que chama todo homem e toda mulher que vem a este mundo: Jesus não estava na caravana, estava onde o Pai lhe chamava. "A sabedoria faz o seu próprio elogio, honra-se em Deus, gloria-se no meio do seu povo" (Eclo 24, 1).
Para “dar conta da vida”, façamos como Jesus: ouçamos as inquietações que palpitam dentro e fora de nós, façamos perguntas acertadas, busquemos a sabedoria e tenhamos respostas que afrontem os dilemas e os sofrimentos da vida e que trazem sentido ao nascer, ao pelejar, ao viver.
- “Quando eles o viram, ficaram admirados. E sua mãe disse-lhe: ‘Meu filho (τέκνον), que nos fizeste?! Eis que teu pai e eu andávamos à tua procura, cheios de aflição’. Respondeu-lhes ele: ‘Por que me procuráveis? Não sabíeis que devo ocupar-me das coisas de meu Pai?’” (vv. 48-49).
Maria e José procuravam seu filho (τέκνον), suas entranhas, seu descendente. Jesus revela que ele também procura, se interessa pelas coisas do Pai. Somos aquilo que procuramos, e procuramos aquilo que nos falta. Procuramos sempre, toda a vida é uma busca. Enquanto Maria e José procuravam suas entranhas (o filho), Jesus procura aquilo que o Pai procura (“... as coisas do Pai”).
Jesus, o unigênito, o filho único, se interessa pelas coisas do Pai. O Pai, claro, se interessa pelos filhos. Assim sendo, Jesus, interessando-se pelas coisas do Pai, termina assumindo a missão de cuidar de todos os filhos do Pai, de todos seus irmãos, sem perder nenhum, pois lhe é caro o Pai e as coisas do Pai.
Enquanto todos iam a Jerusalém para fazerem suas obrigações religiosas, Jesus encontrará o sentido de sua viagem a Jerusalém no fato de se tornar solidário com os irmãos, os filhos do seu Pai. Solidário em suas dores e alegrias, para que também o mais distante de todos receba a vizinhança de Deus, experimente a sua solidariedade.
- “Eles, porém, não compreenderam o que ele lhes dissera. Em seguida, desceu com eles a Nazaré e lhes era submisso. Sua mãe guardava todas essas coisas no seu coração" (vv. 50-51).
Jose e Maria não compreenderam a resposta de Jesus. Sejamos atentos com tudo o que não compreendemos. Aquela resposta incompreensível de Jesus tornou-se uma chance, uma oportunidade, para grandes descobertas acerca do mistério da vida e do seu sentido maior. De fato, Maria não perdeu a oportunidade, não entendeu, mas também não rejeitou: “Sua mãe guardava todas essas coisas no seu coração”.
Nossa Senhora mostra aqui sua grandeza enquanto conservava por muito tempo e com perseverança as coisas não entendidas a fim que o sentido das palavras de seu amado filho no momento oportuno viesse à tona.
- “E Jesus crescia em estatura, em sabedoria e graça, diante de Deus e dos homens” (v. 52).
Jesus tinha saído de Nazaré para Jerusalém, e depois volta para Nazaré, onde vivia. Nazaré é o lugar da vida cotidiana, da rotina. O cotidiano, o dia-a-dia, a rotina, dá de si, oferece tantos eventos, encontros e oportunidades. Quando procuramos as “coisas” do Pai saímos do nevoeiro, do quarto escuro, da opressão do tempo que não cansa de passar, e nos lançamos para o reino da sabedoria e da luz que iluminam o cotidiano e as tarefas de cada dia. O cotidiano, quando iluminado, tem a força de nos enveredar por trilhas inéditas que tornam a vida maravilhosa e fascinante: é um caminho interior, espiritual, um caminho em direção ao Pai, e, por isso, gera em nós a vida de filho e de irmão.
Até mesmo o cotidiano das ofensas e o cotidiano da morte são iluminados: “Pai, perdoa-lhes...”; “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”.
Sobre Nossa Senhora
“Acabados os dias da festa ... ficou o menino Jesus em Jerusalém, sem que os seus pais o percebessem ... E sua mãe disse-lhe: ‘Meu filho, que nos fizeste?! Eis que teu pai e eu andávamos à tua procura, cheios de aflição (ὀδυνάω) como em dores de parto’. Respondeu-lhes ele: ‘Por que me procuráveis? Não sabíeis que devo ocupar-me das coisas de meu Pai?’” (vv. 43.48-49)
Qual seria o motivo que levou Jesus a insistir em ficar na cidade de Jerusalém? Maria e José não perceberam a ausência de Jesus no grupo de peregrinos que voltava para Nazaré, e não perceberam porque davam por descontado que o menino tranquilamente seguiria a eles e os demais. Imaginemos as dores de Maria, dores pela possibilidade de perder o filho que Deus lhe tinha dado aos seus cuidados. Não nos esqueçamos, porém, da profecia do velho Simeão: “... uma espada atravessará a tua alma” (Lc 2, 35).
“Perda” de Jesus aos 12 anos em Jerusalém: não deixa de ser uma antecipação de uma outra “perda”. Aos 33 anos, novamente, Jesus ficará em Jerusalém por três dias e sua mãe, aos pés da cruz, terá que sofrer as últimas e definitivas dores de parto, dará à luz (ao mundo) plenamente ao seu filho: naquele dia o seu filho não será mais só dela, mas será completamente nascido e servo da humanidade. E do seu filho, Maria escutará as palavras que a fará uma verdadeira mãe de todos: “Mulher, eis aí o teu filho” (Referindo-se ao discípulo amado).
Como um recém-nascido faminto, Jesus, na cruz, é afamado pela vontade do Pai e pelas coisas do Pai: salvar os filhos do Pai, seus irmãos. Realizará assim sua vocação, seu chamado, sua identidade profunda, seu nome (“Jesus” = Javé salva): “Meu alimento é fazer a vontade do Pai” (Jo 4, 34).