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Homilia da Solenidade da Natividade de São João Batista / Frei João Santiago

Publicado por Frei João de Araújo Santiago | 23/06/2018 - 08:56

“Dá conta do próprio nome!”

Luca 1, 57-65.

- "57.Completando-se para Isabel o tempo de dar à luz, teve um filho. 58.Os seus vizinhos e parentes souberam que o Senhor lhe manifestara a sua misericórdia, e congratulavam-se com ela. 59.No oitavo dia, foram circuncidar o menino e o queriam chamar pelo nome de seu pai, Zacarias. 60.Mas sua mãe interveio: Não, disse ela, ele se chamará João. 61.Replicaram-lhe: Não há ninguém na tua família que se chame por este nome. 62.E perguntavam por acenos ao seu pai como queria que se chamasse. 63.Ele, pedindo uma tabuinha, escreveu nela as palavras: João é o seu nome. Todos ficaram pasmados. 64.E logo se lhe abriu a boca e soltou-se-lhe a língua e ele falou, bendizendo a Deus. 65.O temor apoderou-se de todos os seus vizinhos; o fato divulgou-se por todas as montanhas da Judéia. 66.Todos os que o ouviam conservavam-no no coração, dizendo: Que será este menino? Porque a mão do Senhor estava com ele." 80."O menino foi crescendo e fortificava-se em espírito, e viveu nos desertos até o dia em que se apresentou diante de Israel"

 - Nascemos, estamos aqui, e existimos.  Há pessoas que muito se chateiam caso alguém troque, erre seu nome. Bom sinal! Significa que se sentem únicas. Pelo nome, pessoas se aproximam de nós (“Vem cá, Pedro”). Pelo nome, pessoas mantêm a distância formal de nós (“Senhor Pedro, posso falar com o senhor?”). Lembro de uma amiga que quando sua mãe lhe chamava “no sério” sempre dizia: “Layse Karime, por onde você estava?”  Mas quando simplesmente lhe chamava, sempre só dizia: “Layse, vem aqui...”. Apresentaram-me uma moça de “nome” Quinha. Fiquei pensando: “Nome ou apelido?” Depois descobri seu nome. Chamava-se, na verdade, Francisca. Foram diminuindo a moça: Francisca, Francisquinha, Chica, Chiquinha, Quinha. Exato: os apelidos e as alcunhas parecem desfigurar ou diminuir as pessoas.

Não nos cabe qualquer nome, afinal não somos qualquer um. Cuidado com o nome que damos às nossas crianças. O nome dado a uma pessoa é como uma marca que se imprime. Respondemos sempre ao nome que nos deram, como se disséssemos: “Estou aqui, sou eu mesmo”. E, assim, vou ao encontro de quem me chama e do jeito que me chamam.

- É bem verdade que alguns parentes queriam dar ao filho de Isabel o nome de Zacarias, que significa “Deus não nos esquece, sempre se lembra e recorda de suas promessas”. E, assim, - podemos bem dizer - aquela criança continuaria a representar a “espera de promessas”. Uma coisa é esperar, outra coisa é dizer: “Já chegou”. Pois bem, recebendo o nome de “João”, aquele filho de Isabel está deixando claro que raiou entre nós o Sol nascente, o Messias esperado. E disse Isabel: “...ele se chamará João”. De fato, João significa Deus é misericórdia, é Graça, se inclina para servir ao homem necessitado. Não esqueçamos que Isabel e João já sabiam “coisas” que outras não sabiam, sabiam da chegada:

 "... Maria ... Entrou em casa de Zacarias e saudou Isabel. Ora, apenas Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança estremeceu no seu seio; e Isabel ficou cheia do Espírito Santo. ....  E exclamou em alta voz: ‘Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre. Donde me vem esta honra de vir a mim a mãe de meu Senhor? Pois assim que a voz de tua saudação chegou aos meus ouvidos, a criança estremeceu de alegria no meu seio’. .... E Maria disse: ... Sua misericórdia se estende, de geração em geração, sobre os que o temem. .... Acolheu a Israel, seu servo, lembrado da sua misericórdia, conforme prometera a nossos pais, em favor de Abraão e sua posteridade, para sempre’. ... Completando-se para Isabel o tempo de dar à luz, teve um filho. Os seus vizinhos e parentes souberam que o Senhor lhe manifestara a sua misericórdia, e congratulavam-se com ela” (Lc 1, 40-56).

- Humanamente falando todos nós fazemos planos para nossos filhos. “Seja feita a vossa vontade”, rezam os cristãos. Então... busquemos a vontade, o desejo, os planos de Deus para nossos filhos. Que o nosso planejamento familiar não seja meramente verificar se podemos ou não criar os filhos, mas também um colaborar com o Senhor da vida a fim de que em nossos filhos um plano se cumpra, um projeto se faça, um desígnio amoroso aconteça: "Cumpriu-se para Isabel o tempo de dar à luz, teve um filho".     Para aquela que se dizia estéril, para Isabel, algo de maravilhoso e divino acontece, chega o tempo de dar à luz um filho.  Para Isabel se cumpriu algo, um desígnio divino, um plano se cumpriu, uma promessa foi cumprida por Aquele também chamado de Fiel. Cada um de nós vindo ao mundo significa que um plano de amor divino se cumpriu: viemos a este mundo.

- E Isabel ficou ali contemplando ao seu filho, e aprendendo uma verdade: da mesma forma que cuidava do seu filho, o Senhor certamente cuidava dela, e  aprendia, cuidando do filho, a “ser” como Deus que é cuidador (“Deus é amor”, diz as Escrituras).  

E da mesma forma que seu filho aceita seus cuidados, ela, Isabel é chamada a ser filha, a se deixar cuidar pelo Senhor Deus.  A fragilidade de todo recém-nascido revela que todo humano tem necessidade de ser amado, acudido, acolhido, perdoado. Celebrando o nascimento de São João Batista, aprendamos a ser filho. Aprendamos que ninguém passa a existir e nem se ama por conta própria. O nosso DNA, a nossa natureza é de filhos. O filho só existe enquanto amado, acolhido; e Deus só existe enquanto ama, acolhe, perdoa; enquanto é o Princípio de vida que dá vida.

- “No oitavo dia, foram circuncidar o menino e o queriam chamar pelo nome de seu pai, Zacarias”. “Zacarias” significa que em Deus não há negligência, não há esquecimento, que Deus lembra sempre de suas promessas, promessa de liberdade e de justiça. E João significa “misericórdia”, coração que se inclina ao sofredor de corpo e de alma.

- Uma criança nascida de uma “estéril” e de um “ancião” é uma verdadeira condescendência divina, um serviço divino prestado ao homem. É misericórdia, pois tira o casal da vergonha pública de ser casal estéril, estéril não somente no corpo, mas também na alma. A esterilidade era uma das marcas de uma pessoa em culpa, em débito com o Senhor.

Quando um casal estéril “ganha” um filho, isso significa “puro dom” do Senhor, se torna um convite a enxergar a vida para além de si mesmo, e, assim, a vida passa a ser pura recepção, pura abertura às novidades de Deus em nossas vidas. Não é por acaso que João Batista dirá de si mesmo: “... vem outro mais poderoso do que eu”; “Eu devo ser batizado por ti (Jesus)”; “Eu sou a voz que clama no deserto: ‘endireitai o caminho do Senhor’”. Não é por acaso que Jesus dirá de João: “Que fostes ver no deserto? Um caniço agitado pelo vento? (Um que só segue modas?). ... Um homem vestido com roupas luxuosas? (Um viver só de ostentação?) ....  Em verdade vos digo: entre os filhos das mulheres, não surgiu outro maior que João Batista. ... Desde a época de João Batista até o presente, o Reino dos céus é arrebatado à força e são os violentos que o conquistam" (Mt 11, 7ss). João Batista deu conta do seu nome!

- “Mas sua mãe interveio: ‘Não’, disse ela, ‘ele se chamará João’. O menino nascido, filho de Zacarias e Isabel, passa a ser chamado e passa a viver daquela “Palavra-nome”: “João”. Se “João” é o seu nome, ele é João. João para mãe e pai, João para parentes e conhecido, João para o Senhor. Viver é interagir, e se relacionar; é responder e perguntar; é falar e escutar; é decidir e assumir. O menino vai crescer e sempre irá interagir como “João”, como que dizendo a todos: “Os céus não estão fechados, a vida não é um absurdo, tudo tem sentido, Ele está entre nós como Aquele que serve, Ele, o Emanuel”.

Na tradição judaica quem dá o nome ao recém-nascido é sempre o pai. Este pai deve levar o menino, quando este completar treze anos, para se tornar filho da Palavra, filho da Lei. A partir de então passa a ser considerado mais filho da palavra do que filho do pai, e assim, os dois, pai e filho se tornam irmãos, filhos do mesmo Pai. É o início da fraternidade tão sonhada.

- No filme “A vida é bela” tem uma cena na qual um velho judeu deve ensinar a arte de ser garçom, a arte de servir, para um jovem aprendiz de garçom. O velho judeu começa ensinando: “Servir é uma arte divina, pois Deus é nosso eterno servidor”. O nome “João” tem a ver com recebimento de graças divinas, tem a ver com um convite a alegrar-se por causa de uma bondade e beleza percebidas na vida, tem a ver com a gratidão de um dom, de um amor e de uma gratuidade..... O nome “João” é o Evangelho de Lucas, o Evangelho da misericórdia, é dizer que a misericórdia chegou em Jesus: “Jesus - disse um malfeitor - , lembra-te de mim, quando tiveres entrado no teu Reino! Jesus respondeu-lhe: ‘Em verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso’".

 - Somos convidados, convocados e chamados, celebrando a natividade, a se sentir um “João Batista” nascido, isto é, a se sentir revestido do nome “João”, a testemunhar a certeza de que o Senhor está entre nós cumprindo suas promessas que alegram e estremecem nossas vidas: “...E exclamou em alta voz: ‘... bendito é o fruto do teu ventre ...  a criança estremeceu (dançou) de alegria no meu seio’, disse a mãe de João. Num século muito marcado pela tristeza de alma (a depressão), celebrar a natividade, o nascimento de São João Batista se torna um hino, um bendizer a Deus pelo dom da vida.

- “E perguntavam por acenos ao seu pai como queria que se chamasse. Ele, pedindo uma tabuinha, escreveu nela as palavras: ‘João é o seu nome’”.   Zacarias, surdo e mudo. Zacarias não acreditou na promessa de Deus, fechou-se a qualquer novidade de vida, cortou relações com a Palavra.  Surdez e mudez, sinais de solidão, isolamento, fanatismo, indiferença, não mais interação, não mais novidade nem relações, morte da mente e Alzheimer espiritual. Torna-se surdo à Palavra nos transforma em pessoas apagadas que não somam mais na vida e até atrapalham as boas novidades que surgem.

Ora, havia uma promessa, mas Zacarias se nega acreditar que a “semente” divina possa livrá-lo da tristeza, culpa e esterilidade. Quando não mais “encaramos” a vida como revestida de um bom sentido que alegra o coração, resta somente “encarar” a vida como uma certa música: “.... Não há mais festas, nem carnaval. Acho que eu fui enganado”.

Sobre o autor
Frei João de Araújo Santiago

Frade Capuchinho, da Província Nossa Senhora do Carmo. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Mestre em Teologia Espiritual. Tem longa experiência como professor, seja no Brasil, como na África, quando esteve como missionário. Por vários anos foi formador seja no Postulantado, como no Pós Noviciado de Filosofia. Atualmente mora em Açailândia-MA. Já escreveu vários livros e muitos artigos.