Homilia da Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo / Frei João Santiago
Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo
(Jo 18, 33b-37)
A festa de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo foi proclamada em 1925 pelo Papa Pio XI. O mundo acabara de sair da primeira guerra mundial e via surgir vários regimes e ideologias que levariam o mundo a uma segunda guerra (nos anos 40 morreram, por causa desta guerra, cerca de 85.000.000 de pessoas entre civis e militares. O regime comunista mataria ainda cerca de 100.000.000 durante o século passado). A marca desses regimes e ideologias era a gana e a pretensão de dominar o destino de nações, povos e pessoas. Em nossos dias o reino mundano continua presente e reinando: dos 162 países existentes somente 11 não estão direta ou indiretamente envolvidos em conflitos armados, por exemplo. O Papa ao proclamar esta festa estava dando a seguinte mensagem: não obstante a tudo, a história pertence ao senhorio de Jesus Cristo, o Príncipe da Paz.
- "Pilatos entrou no pretório, chamou Jesus e perguntou-lhe: ‘És tu o rei dos judeus?’ Jesus respondeu: ‘Dizes isso por ti mesmo, ou foram outros que to disseram de mim?’ Disse Pilatos: ‘Acaso sou eu judeu? A tua nação e os sumos sacerdotes entregaram-te a mim. Que fizeste?’” (vv. 34-35). Que fizeste? Ele, o verdadeiro esposo que sacia a sede de amor dos homens e mulheres, deu vinho - a graça, o Espírito e o amor – à comunidade humana reunida em Caná. Não fazendo acepção de pessoas, deu a vida ao filho de um pagão – o centurião romano – que estava por morrer. Libertou um homem que vivia carregando culpas e sufocado por leis ditas religiosas: fez o homem andar. Saciou a fome da multidão dando-lhe pão. Fez o cego enxergar e ter um sentido maior na vida para além de uns meros anos de vida nesta terra. Seu “slogan” sempre foi ser o “bom pastor” que dá a vida pelos amigos. Um de seus últimos atos foi lavar os pés de seus discípulos para revelar que Deus é o grande servidor que quer nos ver erguidos: eis o que fez o nosso Rei.
- “Respondeu Jesus: ‘O meu Reino não é deste mundo. Se o meu Reino fosse deste mundo, os meus súditos certamente teriam pelejado para que eu não fosse entregue aos judeus. Mas o meu Reino não é deste mundo’” (v. 36). O Reino de Jesus é para este mundo, para o mundo dos homens e mulheres: “Venha a nós o vosso Reino”, Jesus nos ensinou a rezar, revelando que a origem do seu Reino nasce do coração da Trindade Santa que é circulação amorosa entre as três pessoas divinas. Por isso, Jesus afirma que seu Reino não é deste mundo terreno, não tem origem num mundo marcado pela vontade de domínio nefasto, competição, usurpação do outro, violência, escravidão do outro, mentira e difamação, onde o olhar do outro se torna o meu inferno. Os reinos desse mundo procuram se manter pela força das armas: “Sabeis que aqueles que vemos governar as nações as dominam, e os seus grandes as tiranizam” (Mc 10, 41).
O Reino de Deus não tem território, não tem fronteiras. O Reino de Deus tem a marca do serviço por amor: um se faz servo do outro. O Reino de Deus exerce um combate contra toda malícia, contra toda ignorância e contra toda maldade que tenta atravessar e fazer morada em nossos corações. De fato, o egoísmo, a maledicência, a luxúria, a avareza, a fúria, o rancor e o ódio, todos esses “tiranos”, devem ser combatidos no Reino de Deus que quer acontecer em todo coração. Quanto aos poderes mundanos, estes devem ser combatidos com a resistência pacífica como nos ensinou Jesus. A salvação desse mundo vai acontecendo à medida que o Reino de Deus se expande em nós mesmos, em nossas famílias, em nossas comunidades religiosas, em nossas associações, em nossas leis e costumes.....
- “Perguntou-lhe então Pilatos: ‘És, portanto, rei?’ Respondeu Jesus: ‘Sim, eu sou rei. É para dar testemunho da verdade que nasci e vim ao mundo. Todo o que é da verdade ouve a minha voz’. Disse-lhe Pilatos: “Que é a verdade?...”. Falando isso, saiu de novo, foi ter com os judeus e disse-lhes: “Não acho nele crime algum" (vv. 37-38).
Sobre Pilatos. Pilatos era o representante do império romano na região da Judéia naquela ocasião. Seu nome significa “armado de lanças”. E “armado” de autoridade vai ao encontro de Jesus. Admira-se por ver Jesus daquele jeito, humanamente desprotegido, sozinho. É como se pensasse: “Este aqui não parece nenhum rei e nem oferece nenhum perigo ao império. Como pode um homem assim desprotegido ser acusado de rei que ameaçaria o nosso império?” Logo depois, Pilatos pergunta sobre o que Jesus tinha feito para ser acusado. Nosso Senhor responde afirmando que não age como os reis deste mundo que lutam armados em busca de conquistar territórios e povos, mas que é o rei da verdade, é a testemunha da verdade, da fidelidade de Deus. De fato, Jesus testemunhou a verdade de Deus ( “Ele envia a chuva sobre o terreno do bom e sobre o terreno do malvado”, por exemplo) e a verdade acerca do homem (A felicidade existe e consiste em lavar os pés do outro, por exemplo). A humanidade pode ir por outros caminhos, mas a verdade foi dita, foi revelada.
Pilatos aproxima-se da verdade quando diz aos judeus: “Não acho nele crime algum”. No entanto, não interage com a verdade, não quer saber da verdade. De fato, Jesus questionou Pilatos (“Dizes isso por ti mesmo, ou foram outros que to disseram de mim?”) e este tergiversou mudando de assunto (“Acaso sou eu judeu? ... Que fizeste?). Em outro momento do diálogo perguntou “o que é a verdade” e se retirou, não achando importante “esse negócio de verdade”, já que importava-lhe a manutenção do seu cargo. Não é por acaso que os judeus chantagearam Pilatos em cima dessa fraqueza (“Pilatos tentou ainda soltá-lo, mas os chefes judaicos avisaram-no: ‘Se soltares esse homem, não és amigo de César. Quem se proclama rei é culpado de rebelião contra César’” (Jo 18, 12). No fundo Pilatos não era só armado, como diz o significado do seu nome, mas, acima de tudo, um amarrado, preso, escravo de si mesmo. Ser chantageado é uma experiência tremendamente sofrida, pois bloqueia e paralisa a pessoa que se vê submetida a um “tirano” implacável: quer até fazer o bem e não pode. E qual é a maior chantagem? Medo da morte? Medo de comentários? Culpa? Remorso? Vícios? Medo de perder o (a) bem-amado (a)? Pilatos, totalmente chantageado fica “indo e vindo” tentando livrar Jesus e ao mesmo tempo temendo desagradar aos judeus, pois isto poderia levá-lo a ter problemas com seus superiores, e por fim vir a perder o cargo de procurador do império.
“O que é a verdade?” Pilatos fez esta pergunta e não esperou a resposta. A verdade estava ali diante dele: um homem fiel a Deus e aos irmãos, pois a verdade é fazer o bem. Ao mesmo tempo a verdade de um mundo injusto também estava ali diante de Pilatos: um mundo que pede a morte até para o filho de Deus a fim de soltar um Barrabás da vida. E por que Pilatos se retira quando Jesus fala da verdade? Porque a verdade lhe seria esmagadora, revelaria sua falsidade como ser humano: era um homem falsificado. Não conseguiu pôr-se em causa, em questão. Por vezes não queremos lembrar de certos episódios de nossas vidas; outras vezes preferimos “deixar quieto” certo assunto, certa conversa; insistimos em atitudes que desprezam e abusam dos demais; resistimos em nos questionar, em nos pôr em questão. Pilatos se apresenta um homem medroso que teme as ameaças da liderança judaica. Sabia que Jesus era inocente, mas não toma atitude, pois temia perder suas regalias. Que raça de homem! Homem falsificado, aprisionado em si mesmo, refém de si mesmo, escravo e servidor de um reino que conquista, oprime, esmaga e tira a liberdade do ser humano, a começar pela liberdade do próprio Pilatos. Pilatos não ousa tomar a decisão da verdade, prefere ser um simulacro de homem, e, assim, terminará seus dias.
Ter poder de comando e possuir capacidades são oportunidades que podemos fazer uso para promover o bem, para facilitar processos de bem-estar. Que os pais, professores, catequistas, sacerdotes e homens e mulheres dos poderes judiciário, executivo e legislativo podem muito bem prestar um bom serviço. Importa que não imitem Pilatos.
Sobre Jesus. O nosso amanhã está sendo tecido hoje com panos recolhidos no passado. Jesus, nosso Salvador, viveu sempre na casa do Pai (“Vós não sabeis que devo estar na casa do meu Pai”). Foi vivendo de tal jeito testemunhando a verdade que terminou por se encontrar no tribunal, no pretório, diante de Pôncio Pilatos. Encontra-se ali “inteiro”, íntegro, pois verdadeiro para si mesmo enquanto amou a todos, não traiu a verdade e não cedeu ao ódio. E como homem livre é que amando também a Pilatos lhe perguntou: “Estás dizendo isto por ti mesmo ou outros te disseram isto de mim?” Em outras palavras: “Pilatos, seja fiel a você, não seja um traidor da verdade, não venda sua alma, não repita as perguntas dos outros, as afirmações dos outros, seja nobre, entre em diálogo, não fale a fala dos outros, não deseje o desejo alheio, não se deixe manipular pela mentira, seja servo da verdade”.
Felicidade, liberdade, todos querem. Importa uma paixão pela verdade, pois “A verdade vos libertará”, disse Jesus. Não basta ouvir ou ler a palavra de Jesus. Para que estejamos “plantados” na verdade, urge amar a verdade, a ela servir e se entregar de corpo e alma. Sendo verdadeiros seremos livres e sendo livres não seremos escravos de um reino de morte, mas serviremos ao Reino da vida. “Se vós permanecerdes na minha palavra ... conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará (Jo 8, 31-32).
Quem reina sobre mim? Na dinâmica da vida, também da vida espiritual, encontramos em Jesus alguém que encarna em seus gestos, atitudes e palavras a presença de tudo o que é bom, verdadeiro e bonito. Encontramos também as santas palavras do nosso Deus e os momentos litúrgicos com os sacramentos que nos santificam. Diante do nosso Deus e nestes momentos de oração e comunhão com os irmãos de fé, importa se deixar “reinar” tal como bebê que recebe o olhar, a atenção, as palavras e os toques de uma mãe amorosa. É assim que vou me entregando a este Reino e Rei que reinam sobre mim enquanto docilmente permito e termino por ser reinado, sofro um bom domínio, torno-me posse do Reino de Deus e também rei nesse Reino: neste instante o poder do Reino e do Rei existem, se fazem eficazes na minha vida (“Abre bem a tua boca que eu te sacio”, diz o Senhor – Sl 81, 10).
Quando escolho um reino ao qual viver, participar, certamente tal reino irá me constituir, moldar minha personalidade, meu jeito de ser, pensar e agir; e minhas atitudes de cada dia serão de acordo com este reino. Isso é muito humano porque todos precisamos disso como a terra seca precisa da água. Todos os dias vemos isso nos outros ou mesmo em nós quando precisamos dos pais, de um guia, de um porto seguro, de uma fonte de salvação e direção, de alguém por quem se entregar, amar e constituir família. Buscamos, portanto, um rei, uma rainha, um reino. Tudo isso, porém, não deixa de ser dramático. Infelizmente, alguém pode se anular e vender a própria vida e alma. Neste momento, dominadores perversos aparecem e a pessoa será possuída, conquistada, dominada. Pode ser o (a) parceiro (a) amoroso (a), o dinheiro, o poder, o glamour, a vaidade, o amor próprio em forma de egoísmo, a própria beleza, a própria inteligência ou talentos ou o prazer pelo prazer que passam a governar a pessoa.
No entanto, podemos eleger como nosso Rei o Senhor Jesus Cristo que serve ao Reino do Pai eterno. Importa viver em abertura, desobstruir o eu e ceder-se ao nosso Rei que reina enquanto serve lavando nossos pés, enquanto se faz nosso amigo (“Já não vos chamo servos ... mas amigos” – Jo 15, 15). O nosso Rei não é uma força que anula o homem, mas uma força que anula o pecado, é uma força, um domínio benfazejo que ergue o humano. A realeza de Jesus não nos oprime, mas nos liberta das nossas fraquezas e misérias, encorajando-nos a seguir os caminhos do bem, da reconciliação e do perdão.