Homilia de Domingo de Ramos - ano A - Frei João Santiago
Domingo de Ramos - ano A
(Mateus 26, 14-27, 66) Obs: a meditação segue o texto paralelo “Lucas 19, 28-41”
Não basta somente sonhar e desejar alcançar. Urge tomar atitudes e investir todas as forças para galgar, cavalgar, tomar conta, pegar as rédeas, montar no próprio chamado interior, responder ao chamado divino, não calar a voz interior: importa viver, amar, ofertar-se.
- “Subindo para Jerusalém. ... se aproximavam de Betfagé e Betania ...” (vv. 28-29). Betânia era o lugar onde se faziam as purificações antes de ingressar na cidade santa, Jerusalém. Que possamos purificar nossas concepções pagãs de um “messias” que triunfa esmagando a fim de deixarmos de ser “figueiras estéreis” (“Betfagé”). “Betania”, a casa do pobre: o Senhor vem ao encontro de nossas misérias corporais e espirituais, carregando-as sobre si. A Cruz se aproxima, o Reino está próximo (Cf. Lc 18, 31-33), o jumentinho “esclarece” o sentido da Cruz.
- “... enviou dois discípulos ... encontrareis um jumentinho amarrado no qual não montou ainda homem algum. Desamarrai-o e trazei-o” (v. 29-30). Obedecendo ao Senhor, os discípulos farão uma grande descoberta: o jumentinho. O asno era o animal símbolo do trabalho diário. Também chamado “somaro” (aquele que carrega pesos) ou “bastardo” (pronto para carregar pessoas ou coisas). Jesus indica e pede que busquem um asno que parece desprezado ou desconhecido: “... em que não montou ainda homem algum ...”. Cabe aos discípulos desamarrá-lo. O asno estava preso, amarrado, aprisionado, “abafado”, escondido, não levado em consideração, oprimido. Por que será? Porque não fora escolhido! Ainda hoje vemos quanto um cavaleiro se “sente o tal” montado em um cavalo de raça, grande, belo e forte. Mas... montar num asno? Não tem graça nenhuma! Por isso o asno vivia preso, e preso por muitos senhores (“... Enquanto desamarravam, os donos lhes disseram: Por que soltais o jumentinho?” – v. 33b). Tais “donos-senhores” são os nossos ídolos, nossas seguranças e os nossos medos que resistem em “soltar” o asno, o serviço, pois preferimos usar nossa impiedade, ser servidos e não servir; tememos amar e se sacrificar, e por isso não queremos ver o jumentinho solto.
- “E se alguém vos perguntar: ‘Que fazeis?’, dizei: ‘O Senhor precisa dele’” (v. 31). Nem sempre o homem de fé compreende o mistério do servir (“Que fazeis?), pois tendemos a pôr limites à piedade (“Senhor, se meu irmão pecar contra mim, quantas vezes devo perdoar? Até sete vezes?”). Neste momento somos chamados a obedecer à Palavra (“O Senhor precisa dele”; “Não te digo sete vezes, mas setenta vezes sete”). A Palavra nos revela que o Senhor precisa prestar amor e serviço, precisa “montar no asno, no jumentinho”, precisa fazer de sua vida uma oferta (“Eu vim para que todos tenham vida em abundância”; “Meu alimento (minha sobrevivência) é fazer a vontade do Pai”; “Tomai todos e comei; isto sou eu”). Obedecendo às Palavras do Cristo, fazendo da nossa a sua vida, seremos livres, conquistaremos a tão sonhada liberdade interior, a tão almejada felicidade tão bem casada com o serviço (Cf. Jo 13, 17).
- Asno como símbolo do serviço. Tememos servir, pois tememos ser instrumentalizados, enganados, dominados por outros. Tememos proximidade, vínculos. Tememos que a própria piedade nasça em nossos corações. Confundimos “servir”, “serviço”, com “ser besta”. Pensamentos nos asilam: “O que ganho em servir?”; “Nem por isso o mundo mudará”. Em nossos pensamentos, decisões e atitudes, tendemos a coincidir felicidade com realização própria, sucessos, consumo e usufrutos. Lançamos-nos em querer, ser e ter tudo e nada sacrificar. Dessa maneira o “asno” continuará amarrado, preso, esquecido, não montado, não aceito. Tudo isso não deixa de ser um drama, um dilema. Acreditamos que o Senhor Deus abençoa, sim, todas as nossas conquistas pessoais e familiares. Sabemos também que o mundo é perigoso (“Sejais simples como as pombas e espertos como serpentes”, disse Jesus). No entanto, não podemos calar a melhor voz que trazemos dentro de nós, pois fomos criados à imagem e semelhança de Deus, não podemos permanecer para sempre como frutas verdes que não amadurecem, como árvores sem frutos.
O “asno” deve ser liberado, livre, leve e solto: “Fogo eu vim lançar sobre a terra, e como gostaria que já estivesse aceso!” (Lc 12, 49); “... tirou a capa e colocou uma toalha em volta da cintura. Em seguida começou a lavar os pés dos discípulos” (Jo 13, 4).
O “asno” nos liberta: “Aquele para quem e por quem todas as coisas existem, desejando conduzir à glória numerosos filhos, deliberou elevar à perfeição, pelo sofrimento, o autor da salvação deles .. Como os filhos participam da mesma carne e do mesmo sangue, também Ele participou de nossa carne e sangue, a fim de destruir pela morte aquele que tinha o império da morte, isto é, o demônio, e libertar aqueles que, pelo medo da morte, estavam toda a vida sujeitos a uma verdadeira escravidão” (Heb 2, 10-15).
O “asno” nos leva a amar e servir, nos torna uma fonte, fez a mulher amar: “... a água que Eu lhe der tornar-se-á nele uma fonte de água jorrando para a vida eterna” (Jo 4, 14); “E eis que uma mulher da cidade ... levou um vaso de alabastro com ungüento; ... chorando, começou a regar-lhe os pés com lágrimas, e enxugava-lhos com os cabelos da sua cabeça; e beijava-lhe os pés, e ungia-lhos com o unguento” (Lc 7, 37-38).
Infelizmente, porém, o “asno” pode ficar preso, amarrado (em angústia, apertado). Quão grande deve ser o sofrimento de uma “alma” que nunca se tornou piedosa (um dos dons do Espírito Santo), que cala dentro de si o melhor que tem dentro de si (a capacidade de servir), que nunca amou ninguém! Diante disso reflitamos:
- além das noventa e nove há uma ovelha perdida;
- no meio do caminho tem um homem ferido pelos assaltantes;
- lançada no chão tem uma pecadora por ser apedrejada;
- na sarjeta tem um cego pedindo visão;
- entre a multidão tem uma senhora que sofre de hemorragia lá se vão doze anos;
- em Naim tem uma viúva chorando seu único filho falecido.
Poderíamos continuar a lista. Posso ficar com a minha “felicidadezinha” criada ou posso desatar o “asno”, entendendo o segredo do “Lava-pés”, o segredo de ser feliz ajudando a nascer a felicidade do outro, o segredo da felicidade como alegria pela felicidade do outro: saída de si para a comunhão (aquilo chamado “amor”).
- “Conduziram a Jesus o jumentinho, cobriram-no com seus mantos, e Jesus montou nele. Muitos estendiam seus mantos no caminho” (vv. 35-36). O manto era a “segunda pele” do pobre. Servia para vestir o pobre durante o dia e protegê-lo do frio durante a noite. O manto representa minha sobrevivência, aquilo sem o qual não vivo: minhas certezas, meus afetos, “minhas pessoas”, minha segurança, minha “certeza” de que verei o amanhecer. Como as pessoas que “jogaram” seus mantos sobre e sob o jumentinho, somos convidados a “apostar” nossa vida, segurança e sobrevivência em serviço, em doação, tal como aquelas mães que preferem deixar de comer a fim de verem seus filhos alimentados. Aqui teríamos o fim de um mundo e o surgir do Reino de Deus.
Jesus montou no asno, tal como um rei senta no seu trono. O Senhor se manifesta em sua potência, reina, lá onde um ser humano suporta o peso do irmão (“Onde dois ou mais estiverem reunidos, eu estou – reinando - no meio deles”). Eu acredito, aposto, que do serviço e do amor (“Asno” e Cruz) podem germinar a Vida, a Ressurreição? É uma “aposta” e tanto; é adesão e fé absolutas em Jesus Cristo (“Crê no Senhor Jesus, e assim serás salvo, tu e os de tua casa!” – At 16, 31).
- “... os discípulos em massa e alegres começaram a louvar a Deus em voz alta por todos os milagres que tinham presenciados. Diziam: ‘Hosana! Bendito o que vem em nome do Senhor!’” (v.37-38). O Reino de Deus já chegou! O fim de um mundo aconteceu! Totalmente? Ainda não, pois ainda não entendemos, ainda não aderimos, ainda queremos galopar em cavalos e desprezamos o humilde jumentinho ou preferimos deixá-lo amarrado, tememos uma vida diferente daquela centrada no egoísmo. No dia em que o serviço recíproco for instaurado entre nós, o Reino será pleno, o mal ficará longe de nós, e o poder será entendido como serviço.
- Alguém disse que enquanto, passando seus dias nesta terra, um homem ou uma mulher não encontrar irmãos pelos quais oferecer a própria vida, a sua vida será uma prisão. Viverá como alguém que tenta matar a sede com a própria saliva: vida desesperada, fugitiva, sem repouso, sem encosto, sem descanso e sem sentido maior. O homem precisa urgentemente de liberdade, soltar o “asno”, passar a viver, render-se, criar laços, vínculos, comunidade, família. O Senhor Deus quer isso (“O Senhor precisa dele” - do asno), deseja que desejemos a liberdade, não vivamos da própria saliva. Então... vamos soltar ou deixar amarrado o jumentinho? Se soltarmos seremos livres do medo, da angústia, de todas as reações de agressividades que temos perante os outros por medo de sermos dominados. Se deixarmos amarrado o jumentinho, montaremos os grandes cavalos e disputaremos para ver quem corre mais, quem é mais bonito, quem é mais pujante, galhardo, amedrontador: e, assim, o inferno se instaurará lá onde estivermos.
- Infelizmente podemos resistir por longos anos em negar o convite de nossa alma em superar um tal de egoísmo que insiste em manter o “asno” amarrado. Há uma canção que expressa um pouco tudo isso: “Viver é uma arte, é um ofício/ Só que precisa cuidado/ Prá perceber Que olhar só prá dentro É o maior desperdício/ O teu amor pode estar Do seu lado/ O amor é o calor Que aquece a alma/ O amor tem sabor Prá quem bebe a sua água”. Que o nosso amor não seja pequeno, abrace o pequeno e o grande, o rico e o pobre, o sadio e o enfermo, toda criatura. E para que não seja pequeno, amemos a Deus com todo o coração, de toda a alma, com todas as forças e com toda a inteligência. E um dia, nós, livres da escravidão do amor mesquinho que se deleita só em si mesmo, teremos prazer de estarmos em Deus, pois a “coisa” divina que há no homem é a liberdade, é o homem livre para servir.
- Não podemos negar que mais cedo ou mais tarde – nem que seja na hora da morte - cada um de nós imaginará e julgará que servir, amar, cuidar, significará fazer sacrifício de si. E o sacrifício de si, hoje em dia, não encontra apoio e justificativa. A tendência, na melhor das hipóteses, é dizer: “Cuide de si e se sobrar tempo talvez cuide de outros”. De outro lado, temos nossa fé e o convite tremendo da Palavra: “Levais as cargas pesadas uns dos outros e, assim, estareis cumprindo a Lei de Cristo” (Gal 6, 2). Podemos, no entanto, mesmo sem entender, aderir ao convite da Palavra, pois, afinal, Jesus ressuscitou, o que significa que é pautando a vida no serviço que chegamos a vencer a morte, experimentar a vida palpitante do Eterno já nesta vida. Podemos também entender que quando servimos não brigamos, salvamos a família e a comunidade. Quando cada ser humano pautar sua própria vida embriagando-se de si e sem nenhum tempo ou espaço para o irmão, todos penarão, será instaurado o reino da violência, do descaso e da indiferença: ninguém cuidará de ninguém e ai dos vencidos, dos enfermos, dos empobrecidos, dos carentes, dos solitários, etc.