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Homilia do Domingo de Ramos / Frei João Santiago

Publicado por Frei João de Araújo Santiago | 24/03/2018 - 09:17

Domingo de Ramos

(Marcos 11, 1-10)

 “Jesus e seus discípulos aproximavam-se de Jerusalém ... Jesus enviou dois dos seus discípulos, dizendo-lhes: ... achareis preso um jumentinho, em que não montou ainda homem algum; desprendei-o e trazei-mo. E se alguém vos perguntar: Que fazeis?, dizei: O Senhor precisa dele ...Conduziram a Jesus o jumentinho, cobriram-no com seus mantos, e Jesus montou nele. Muitos estendiam seus mantos no caminho ...Tanto os que precediam como os que iam atrás clamavam: "Hosana! Bendito o que vem em nome do Senhor! ...”

- "Ide à aldeia que está defronte de vós e, logo ao entrardes nela, achareis preso um jumentinho, em que não montou ainda homem algum; desprendei-o e trazei-mo”. O asno era o animal símbolo do trabalho diário. Também chamado “somaro” (aquele que carrega pesos) ou “bastardo” (pronto para carregar pessoas ou coisas). Jesus indica e pede que busquem um asno que parece desprezado ou desconhecido: “... em que não montou ainda homem algum ...”.

- O asno estava preso, amarrado, aprisionado, “abafado”, escondido, não levado em consideração, oprimido.  Por que será? Não foi escolhido! Ainda hoje vemos quanto um cavaleiro se “sente” montado em um cavalo de raça, grande, belo e forte. Mas... montar num asno? Não tem graça nenhuma! Por isso o asno vivia preso, e preso por muitos senhores (“... quando alguns dos que ali estavam perguntaram: ‘Ei, que estais fazendo? Por que soltais o jumentinho?’"). Tais senhores são os nossos ídolos, nossas seguranças e os nossos medos que resistem em “soltar” o asno, o serviço, pois preferimos usar nossa impiedade, ser servidos e não servir.

- Asno como símbolo do serviço. Tememos servir, pois tememos ser instrumentalizados, enganados, dominados por outros. Tememos proximidade, vínculos. Tememos que a própria piedade nasça em nossos corações.  Pensamentos nos asilam: “O que ganho em servir?”; “Nem por isso o mundo mudará”. Em nossos pensamentos, decisões e atitudes tendemos a coincidir felicidade com realização própria, sucessos, consumo e usufrutos. Lançamos-nos em querer, ser e ter tudo e nada sacrificar. Dessa maneira o “asno” continuará amarrado, preso, esquecido, não montado, não aceito. Tudo isso não deixa de ser um drama, um dilema. Acreditamos que o Senhor Deus abençoa, sim, todas as nossas conquistas pessoais e familiares. Sabemos também que o mundo é perigoso (“Sejais simples como as pombas e espertos como serpentes”, disse Jesus). No entanto, não podemos calar a melhor voz que trazemos dentro de nós, pois fomos criados à imagem e semelhança de Deus, não podemos permanecer para sempre como frutas verdes que não amadurecem, como árvores sem frutos.

O “asno” deve ser liberado, livre, leve e solto: “Fogo eu vim lançar sobre a terra, e como gostaria que já estivesse aceso!” (Lc 12, 49); “... a água que Eu lhe der tornar-se-á nele uma fonte de água jorrando para a vida eterna” (Jo 4, 14); “... tirou a capa e colocou uma toalha em volta da cintura.Em seguida começou a lavar os pés dos discípulos” (Jo 13, 4); “E eis que uma mulher da cidade ... levou um vaso de alabastro com ungüento; ... chorando, começou a regar-lhe os pés com lágrimas, e enxugava-lhos com os cabelos da sua cabeça; e beijava-lhe os pés, e ungia-lhos com o unguento” (Lc 7, 37-38). Asno preso, significado de angústia, de aperto. Quão grande deve ser o sofrimento de uma “alma” que nunca se tornou piedosa, que nunca amou ninguém! Diante disso reflitamos:

- entre as noventa e nove há uma ovelha perdida;

- no meio do caminho tem um homem ferido pelos assaltantes;

- lançada no chão tem uma pecadora por ser apedrejada;

- na sarjeta tem um cego pedindo visão;

- entre a multidão tem uma senhora que sofre de hemorragia lá se vão doze anos;

- em Naim tem uma viúva chorando seu único filho falecido.

Poderíamos continuar a lista. Posso ficar com a minha “felicidadezinha” criada ou posso desatar o “asno”, entendendo o segredo do “Lava-pés”, o segredo da felicidade do outro, o segredo da felicidade como alegria pela felicidade do outro: saída de si para a comunhão (aquilo chamado “amor”).

- “Conduziram a Jesus o jumentinho, cobriram-no com seus mantos, e Jesus montou nele. Muitos estendiam seus mantos no caminho; outros cortavam ramos das árvores e espalhavam-nos, pelo chão” (vv. 7-8). O manto era a “segunda pele” do pobre. Servia para vestir o pobre durante o dia e protegê-lo do frio durante a noite. O manto representa minha sobrevivência, aquilo sem o qual não vivo: minhas certezas, meus afetos, minha segurança, minha garantia de não morrer, mas ver o amanhecer. Como as pessoas que “jogaram” seus mantos sobre e sob o jumentinho, somos convidados a “apostar” nossa vida em serviço, em doação, tal como aquelas mães que preferem deixar de comer a fim de verem seus filhos alimentados. Jesus montou no asno, tal como um rei senta no seu trono. O Senhor se manifesta em sua potência, reina, lá onde um ser humano suporta o peso do irmão (“Onde dois ou mais estiverem reunidos, eu estou no meio deles”). Do serviço (do asno), do amor (Cruz) pode germinar a Vida? (Ressurreição?). É uma “aposta” e tanto; é adesão e fé absolutas em Jesus Cristo (“Crê no Senhor Jesus, e assim serás salvo, tu e os de tua casa!” – At 16, 31).

- “E se alguém vos perguntar: ‘Que fazeis?’, dizei: ‘O Senhor precisa dele, mas daqui a pouco o devolverá’" (v. 3). Nem sempre o homem de fé compreende o mistério do servir (“Que fazeis?), pois tendemos a pôr limites à piedade (“Senhor, se meu irmão pecar contra mim, quantas vezes devo perdoar? Até sete vezes?”). Neste momento somos chamados a obedecer à Palavra (“O Senhor precisa dele”; “Não te digo sete vezes, mas setenta vezes sete”). A Palavra nos revela que o Senhor precisa de amor e serviço, precisa “montar no asno, no jumentinho”, precisa fazer de sua vida uma oferta (“Eu vim para que todos tenham vida em abundância”; “Meu alimento (minha sobrevivência)é fazer a vontade do Pai”; “Tomai todos e comei; isto sou eu”). Obedecendo às Palavras do Cristo, fazendo nossa a sua vida, seremos livres, conquistaremos a tão sonhada liberdade interior, a tão almejada felicidade (cf. Jo 13, 17).

- “Tanto os que precediam como os que iam atrás clamavam: ‘Hosana! Bendito o que vem em nome do Senhor!’” (v.9). O Reino de Deus já chegou! O fim de um mundo aconteceu! Totalmente? Ainda não, pois ainda não entendemos, ainda não aderimos, ainda queremos galopar em cavalos e desprezamos o humilde jumentinho. No dia em que o serviço recíproco for instaurado entre nós, o Reino será pleno, o mal ficará longe de nós, e o poder será entendido como serviço.

- Alguém disse que enquanto, passando seus dias nesta terra, um homem ou uma mulher não encontrar irmãos pelos quais oferecer a própria vida, a sua vida será uma prisão. Viverá como alguém que tenta matar a sede com a própria saliva: vida desesperada, fugitiva, sem repouso, sem encosto, sem descanso e sem sentido maior. O homem precisa urgentemente de liberdade, soltar o “asno”, passar a viver, render-se, criar laços, vínculos, comunidade, família. O Senhor Deus quer isso (“O Senhor precisa dele” - do asno), deseja que desejemos a liberdade, não vivamos da própria saliva. Então... vamos soltar ou deixar amarrado o jumentinho? Se soltarmos seremos livres do medo, da angústia, de todas as reações de agressividades que temos perante os outros por medo de sermos dominados. Se deixarmos amarrado o jumentinho, montaremos os grandes cavalos e disputaremos para ver quem corre mais, quem é mais bonito, quem é mais pujante, galhardo, amedrontador: o inferno se instaura lá onde estivermos.

- Infelizmente podemos resistir por longos anos em negar o convite de nossa alma em superar um tal de egoísmo que insiste em manter o “asno” amarrado. Há uma canção que expressa um pouco tudo isso: “Viver é uma arte, é um ofício/ Só que precisa cuidado/ Prá perceber Que olhar só prá dentro É o maior desperdício/ O teu amor pode estar Do seu lado/ O amor é o calor Que aquece a alma/ O amor tem sabor Prá quem bebe a sua água”. Que o nosso amor não seja pequeno, abraça o pequeno e o grande, o rico e o pobre, o sadio e o enfermo, toda criatura. E para que não seja pequeno, amemos a Deus com todo o coração, de toda a alma, com todas as forças e com toda a inteligência. E um dia, livres da escravidão do amor mesquinho que se deleita só em si mesmo, teremos prazer de estarmos em Deus, pois a “coisa” divina que há no homem é a liberdade, é o homem livre para servir.

- Não podemos negar que mais cedo ou mais tarde cada um de nós imaginará e julgará que servir, amar, cuidar significará fazer sacrifício de si. E o sacrifício de si, hoje em dia, não encontra apoio e justificativa. A tendência, na melhor das hipóteses, é dizer: “Cuide de si e se sobrar tempo talvez cuide de outros”. De outro lado temos nossa fé e o convite tremendo da Palavra: “Levais as cargas pesadas uns dos outros e, assim, estareis cumprindo a Lei de Cristo” (Gal 6, 2). Podemos, mesmo sem entender, aderir ao convite da Palavra, pois, afinal, Jesus ressuscitou, o que significa que é pautando a vida no serviço que chegamos a vencer a morte, experimentar a vida palpitante do Eterno já nesta vida. Podemos também entender que quando servimos não brigamos, salvamos a família e a comunidade. Quando cada ser humano pautar sua própria vida embriagando-se de si e sem nenhum tempo ou espaço para o irmão, todos penarão, será instaurado o reino da violência, do descaso e da indiferença: ninguém cuida de ninguém e ai dos vencidos, dos enfermos, dos empobrecidos, dos carentes, dos solitários, etc.

- Porém.... quem foi que disse que a minha própria realização seja a verdade absoluta? Não será a condescendência, não será o encontrar a quem ofertar a minha realização que me trará maior felicidade? Acreditamos que nossa real, permanente e verdadeira realização esteja em dar à luz, em alimentar, em fazer andar um novo ser: que quem passe por nós se sinta aliviado.

- É bem verdade que vivemos num mundo competitivo no qual a outra pessoa se torna minha concorrente e no qual o meu ego deve fazer frente. No entanto, mesmo num mundo assim, não podemos perder o melhor que trazemos dentro de nós: nossa capacidade de servir no qual o nosso ego sai de frente. Uma mulher executiva nem por isso deve perder o prazer de ser mãe e de ouvir o filho dizer: “Humm! Este bolo está delicioso, mamãe!”.

- Em nossas relações familiares, conjugais, comunitárias e de trabalho por vezes devemos reconhecer que todos têm um serviço a prestar. Por vezes devo ceder e que o serviço, o outro, a outra, apareça. E, eu, por minha parte, colabore com minhas qualidades, dotes e jeito de ser.

Sobre o autor
Frei João de Araújo Santiago

Frade Capuchinho, da Província Nossa Senhora do Carmo. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Mestre em Teologia Espiritual. Tem longa experiência como professor, seja no Brasil, como na África, quando esteve como missionário. Por vários anos foi formador seja no Postulantado, como no Pós Noviciado de Filosofia. Atualmente mora em Açailândia-MA. Já escreveu vários livros e muitos artigos.