Homilia do I Domingo da Quaresma - ano A - Frei João Santiago
I Domingo da Quaresma - (Mateus 4, 1-11)
“Lembras do caminho que o Senhor teu Deus te fez percorrer nestes quarenta anos no deserto, para abater tua jactância e pôr-te a prova, para saber aquilo que estava no teu coração, se guardaria os seus mandamentos, ou não” (Dt 8, 2).
Quarenta dias significa um tempo necessário para que algo realmente aconteça. Quaresma é tempo de caminhar, crescer, fatigar, trabalhar, chorar, suar... até alcançar uma nova meta. É tempo de superação. Se tu cumpres a tua quaresma a Páscoa se fará. Quanto tempo será necessário para que eu entre numa nova fase da vida? Não se pode prever. No entanto, importa entrar no deserto, se deixar levar pelo Espírito, fazer a própria quaresma, realizar uma gestação, sentir “um crescendo” é pressentir a novidade de Deus, a Páscoa.
- “Em seguida, Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto para ser tentado pelo demônio. 2.Jejuou quarenta dias e quarenta noites. Depois, teve fome. 3.O tentador aproximou-se dele e lhe disse: ‘Se és Filho de Deus, ordena que estas pedras se tornem pães’” (vv. 1-3).
Aquele Espírito Santo que recebemos no santo batismo nos conduz ao deserto, à nossa realidade interior não isenta de pecado, nos leva à este mundo real marcado pelo mal, nos conduz ao encontro dos irmãos que não são perfeitos. O deserto é o lugar da verdade, lá não há distração. Eu, indo ao deserto sozinho, deparo-me comigo mesmo e com meus demônios, não tenho como culpar ninguém, pois lá estou sozinho, estou no meu deserto. O deserto é lugar de batalhas, de uma luta contra as forças do mal, contra Satanás que me tenta, e me tenta porque não está longe de mim, nem tão fora de mim. De fato, infelizmente, eu carrego comigo a ilusão de que posses, glamour, cargo, sucessos e vitórias ocupem o lugar de Deus. Tendemos a fugir do deserto para não aceitar e experimentar que o mal está em nós. No entanto, o Espírito Santo nos “empurra” deserto adentro. Não temamos o silêncio, a verdade, que pode aparecer de dentro de nós. No deserto todo homem é chamado a tomar partido, decisão. Jesus, no deserto, decidiu por Deus como alimento que sacia a fome do homem, e decidiu confiar, servir, adorar (beijar), dedicar-se, gastar a vida por Deus, pelo amor e serviço. Não esqueçamos: dependendo de nossas escolhas teremos estas ou aquelas consequências.
“Não nos deixeis cair na tentação, mas livrai-nos do mal”. Jesus não nos ensinou a pedir o “livramento” das tentações, mas o “livramento” de cair na tentação, o “livramento” do mal: a tentação tem sua função, pois é a nossa chance de escolher o bem, e é sinal de que estamos no caminho do bem, pois quem pratica o mal não é tentado. "Considerai que é suma alegria, meus irmãos, quando passais por diversas provações" (Tg 1, 2. Cf. 1Pd 1, 6; At 5, 41).
“Pedras em pães”: não aceitar a dureza do meu limite, romper todos os limites. “Pedras em pães”: que tudo e todos sirvam ao meu prazer, mesmo que isso não me seja bom, lícito, e mesmo que não seja justo.
“Se eu posso isso ou aquilo, por que não fazê-lo?” “Se todos fazem, por que não fazê-lo?” Importa tirar vantagem, assim pensa o demoníaco. A insinuação do demoníaco é que o homem “abrace” seus poucos ou muitos anos de vida como se nada houvesse de mais importante do que uso e abuso, desenfreados e sem limites, de coisas e pessoas. E, assim, o ser humano se torna uma “besta” feroz que devora tudo ao seu redor. Não é por acaso que assistimos os malefícios causados à natureza e ao nosso meio ambiente com tanta poluição seja ela sonora, visual e química que ofende a qualidade do ar, da água, dos alimentos, da terra. Não é por acaso que ainda vemos o tráfico de pessoas para prostituição e para retirada de órgãos. Não é por acaso que há tantos conflitos nas nações, acidente nas estradas e tanta mortandade em nossas cidades. O demônio tenta a Jesus para que leve uma vida que busque só a “auto-satisfação” e posse de coisas e pessoas, não se importando com quem quer que seja.
- “Jesus respondeu: ‘Está escrito: Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus’” (v. 4). É como se Jesus nos dissesse: “Na vida, não terás tudo e tudo o que terás não te bastará. Para viver é preciso mais do que “pão”, a vida não se resume ao possuir e desfrutar de coisas, posses e bens. Não se vive só de pão: há momentos na vida que precisamos mais do que isso. Como viverá alguém que perdeu seu grande amor? Com que nos consolamos quando perdemos um ente querido? Um pai só alimenta ao seu filho com pão? E o amor? E o carinho? E a companhia? Da boca de Deus, de dentro d´Ele, sai para nós a Palavra (sua Vida, seu Espírito) que nos dá a força de afrontar aquilo que se deve afrontar. Na vida há perdas, há injustiças, há derrocadas e tombos que nenhum “pão” pode consolar. “Não só de pão vive o homem”, mas também e principalmente de verdadeiros encontros com o Senhor e com pessoas.
“Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus”. Frase bonita e nascida da maravilhosa visão de como certas mães alimentavam seus bebes: mastigavam o alimento e depois, boca a boca, como num beijo, passavam o alimento mastigadinho para seus bebes, fazendo-os viverem.
Oxalá não sejamos reduzidos a meros consumidores de pães. Do alimento para o corpo, precisamos, mas isso não é tudo, pois trazemos e carregamos dentro de nós a fome de Luz, de Sentido, de Alegria, de Vida, de Eternidade, de Deus.
- O demônio transportou-o à Cidade Santa, colocou-o no ponto mais alto do templo e disse-lhe: 6.’Se és Filho de Deus, lança-te abaixo, pois está escrito: Ele deu a seus anjos ordens a teu respeito; eles te protegerão com as mãos, com cuidado, para não machucares o teu pé em alguma pedra’ (Sl 90,11s). 7.Disse-lhe Jesus: ‘Também está escrito: Não tentarás o Senhor teu Deus’” (vv. 5-7).
Já que Jesus tinha se saído tão bem na tentação anterior, tinha se mostrado tão fiel e confiante em Deus, o Diabo, então, diz-lhe de “confiantemente” se jogar. E mais: induz a Jesus de se apresentar como um Messias ao gosto popular, isto é, milagreiro, prodigioso, fantástico, pois, afinal, o povo gosta de eventos maravilhosos, espetaculares. O povo gosta de admirar quem promete mundos e fundos. O povo gostaria de ver aquela “mitada”, aquela cena de um Jesus se lançando do alto do templo e sendo amparado por anjos. Jesus se recusa. Sabia ele que quando somos o que os outros querem, perdemos a nós mesmos, perdemos o desejo bondoso que o Senhor Deus tem para conosco, perdemos nossa vocação.
Infelizmente, muitas vezes, para agradar ou para receber aplausos ou vantagens, alguém pode calar a própria consciência, pode perder a própria liberdade e a própria vocação, o próprio chamado. É perigoso viver sempre procurando a aprovação das figuras de autoridades ou outras figuras quaisquer. Jesus sabia-se amado pelo Pai, e não precisava da aprovação popular (através de milagres, por exemplo) para sentir-se bem, estimado e valioso. Nosso Senhor foi tentado a pautar sua vida em recebendo aplausos e reconhecimentos frívolos. Foi tentado a viver em vaidade devido aos dons e talentos que possuía. Caso Jesus cedesse e agradasse ao Diabo e às expectativas da multidão, certamente teria perdido a própria missão e a própria estrada, passaria o resto da vida sempre buscando “amores” (aplausos e reconhecimentos) a fim de se sentir amado e valioso; e não teria se alimentado daquela realidade que realmente nos deixa feliz e contente: o amor do Pai que nos ama por primeiro.
“Não tentarás o Senhor teu Deus”. Pode acontecer: quando o desespero cai sobre nós somos tentados a tentar a Deus, isto é, pedi uma prova de que Ele realmente está presente, é eficaz, nos ama e nos acompanha. Não coloquemos Deus à prova (vou me jogar para ver se Deus é Deus mesmo e me ampara), basta-nos a certeza de seu amor por nós. O demoníaco insinua essa dúvida: será mesmo que o Senhor é fiel? O Diabo insinua na mente das pessoas que se as coisas não acontecem como foram pedidas a Deus, Deus não existe, e insinua também que podemos tentar tirar vantagens egoístas de nossa relação com Deus: Deus ao meu bel prazer. Havia uma criança que duvidava do amor dos pais para com ela. A criança sempre aprontava só para ver a reação dos pais. E, assim, sempre tentava aos pais, isto é, sempre os colocava à prova. Jesus não tentou ao seu Pai, não o pôs à prova, simplesmente porque não duvidava do seu amor para com Ele, e até mesmo no momento da morte não duvidou, mas confiou: “Em tuas mãos entrego o meu espírito”.
- “O demônio transportou-o uma vez mais, a um monte muito alto, e lhe mostrou todos os reinos do mundo e a sua glória, e disse-lhe: 9. ‘Eu te darei tudo isto se, prostrando-te diante de mim, me adorares’. 10.Respondeu-lhe Jesus: ‘Para trás, Satanás, pois está escrito: Adorarás o Senhor, teu Deus, e só a ele servirás’. 11.Em seguida, o demônio o deixou, e os anjos aproximaram-se dele para servi-lo” (vv. 8-11).
Adoração ao Diabo. O Diabo propõe a Jesus um reino por conquistar e dominar, um tipo de glória e sucesso perversos enquanto anulam e reduzem os demais a meros objetos (coisas) e mão de obra barata. No entanto, existe uma outra glória, uma outra adoração. Nosso Senhor entende que a vida de um homem é para a felicidade e que o caminho da felicidade é lavar os pés daquela outra pessoa que se está diante (Cf. Jo 13), e é assim que se adora a Deus. É gloriosa e adoradora do Senhor a mulher quando sentada e calma amamenta seu filho. É glorioso e adorador de Deus um pai de família que mantém sua casa com o suor do seu rosto. Viver sugando, não promovendo o outro, é atitude demoníaca. É demoníaco, malvado, protagonista do mal e encarnação do mal o líder que se presta a querer tomar em suas mãos a vida do outro; e se encontra “possuída” a pessoa que se deixa enganar por um líder de tal espécie.
- “Em seguida, o demônio o deixou, e os anjos aproximaram-se dele para servi-lo” (v. 11). Com a Graça de Deus podemos, sim, viver em paz e reconciliados com as nossas fomes, as nossas necessidades de coisas e bens e a nossa precisão de pessoas e de Deus. Na verdade, as coisas criadas por Deus e as nossas necessidades materiais e espirituais podem ser tornar verdadeiros anjos (mensageiros) de Deus, isto é, as coisas são servirão mais para um mero consumir, acumular ou devorar, mas para a partilha, um agradecimento, um ato eucarístico (Ação de Graças).