Homilia do I Domingo da Quaresma - ano B / Frei João Santiago
I Dom Quaresma Marcos 1, 12-15
“Sejais simples como as pombas e espertos como serpentes” (Jesus Cristo).
"E logo o Espírito o impeliu para o deserto. 13. Aí esteve quarenta dias. Foi tentado pelo demônio e esteve em companhia dos animais selvagens. E os anjos o serviam. 14. Depois que João foi preso, Jesus dirigiu-se para a Galiléia. Pregava o Evangelho de Deus, e dizia: 15. "Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo; fazei penitência e crede no Evangelho.""
- Pode nos parecer estranho, mas é isso mesmo: o Espírito forçou, impeliu, “empurrou” a Jesus a fim de que ele adentrasse no deserto e, no deserto, afrontasse tentações, a maldade, e para que ele entrasse na vida real dos homens e tomasse decisões como cabe a um adulto. "Ora, quem se alimenta de leite não é capaz de compreender uma doutrina profunda, porque é ainda criança. Mas o alimento sólido é para os adultos, para aqueles que a experiência já exercitou na distinção do bem e do mal" (Hebreus, 5, 13-14).
- Do que sou eu capaz? “No mundo tereis tribulações”, disse Jesus. Os desafios, a dureza da vida e suas contrariedades, as dificuldades, tem sentido. Todo o deserto da vida, com suas tentações e contrariedades, exige do cristão. O segredo é encarar o diabo, suas tentações e as dificuldades como uma prova. Com num exame de escola a prova ou o teste revela se eu sei ou não, assim a provação revela aquilo que eu trago dentro de mim e ao mesmo tempo, como cristão, sou chamado a superar, não a fugir, mas a vencer. "Lembra-te de todo o caminho por onde o Senhor te conduziu durante esses quarenta anos no deserto, para humilhar-te e provar-te, e para conhecer os sentimentos de teu coração, e saber se observarias ou não os seus mandamentos” (Dt 8, 2).
- No deserto Jesus foi tentado: “Usa tua liderança para ludibriar, surrupiar, enganar, abusar... ; usa tua posição de filho de Deus para beneficio próprio não se importando o preço que os outros devam pagar; usa teus conhecimentos para humilhar os incautos, desprovidos, simples e pobres”. Jesus não fugiu da tentação. A tentação revelou-lhe tudo do que ele era capaz: capaz de aderir ao mal e capaz de aderir ao bem. Jesus teve que tomar uma decisão. Decidiu escutar a Palavra: "... Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus ... Não tentarás o Senhor teu Deus ... Adorarás o Senhor teu Deus, e só a ele servirás” (Mt 4, 4-10).
- O deserto faz bem. Jesus deixou-se conduzir pelo Espírito, adentrou no deserto, foi tentanto, afrontou as tentações, venceu-as com a Palavra. Já não era o mesmo, mas homem resoluto e forte. Basta ler Mateus 4, 11ss para se aperceber que: as forças celestes estavam com ele; que a morte do seu primo João Batista não se torna impedimento para ele; que se torna “luz” que vence as trevas e a morte que maltraram a humanidade; que o Reino é anunciado como já aqui presente e não como algo para um “depois”; que contagia, cativa (chama discípulos) anima e leva esperança a quem espera (“Vinde após mim e vos farei pescadores de homens”); que é seguido por multidões, e que cura doentes e possessos. Que ao término desta “Quaresma” tenhamos nós atravessado “mares e desertos”. Que cada um faça sua “páscoa”: renascidos e resolutos em promover a paz e o bem. Que marido e mulher se entendam mais, que conheçamos mais nosso Salvador, que cada um de nós aprenda mais a dialogar, que não nos traiamos, mas sejamos homens e mulheres fiéis ao melhor que temos dentro de nós (nossa condição de filhos do Pai e irmão dos demais). Que tudo isso seja nossa dedicação, pois “É o tempo que tu te dedicas à tua rosa que faz com ela seja importante” (do Pequeno Príncipe).
- Nem todos querem ir ao deserto. Uma tentação é horrível. Podemos nos dizer honestos e ao mesmo tempo nos descobrir tentados se alguém nos fizer uma proposta de desonestidade. O que pensaremos de nós mesmos? A tentação revela o que trazemos no coração! O segredo é reconhecer a tentação que nos humilha, e, ao mesmo tempo, afrontá-la com a Palavra, tomar uma decisão de vida, não de morte: “O publicano, porém, mantendo-se à distância, não ousava sequer levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador!” (Lc 18, 13). O publicano descobriu sua verdade (era um pecador) e, ao mesmo tempo, buscou nova vida, foi ao encontro do Senhor a fim de receber perdão e nova vida.
- “... esteve em companhia dos animais selvagens. E os anjos o serviam”. “Paixões desordenadas” (maus pensamentos, imoralidades, furtos, homicídios, adultérios, as ambições desmedidas, as maldades, o engano, a devassidão, a inveja, a difamação, a arrogância e a insensatez - cf. Mc 7, 21-22) são representadas por estes animais selvagens presentes no deserto. Quem vive o deserto, escuta seu interior, se alimenta da Palavra alcança a graça da pacificação: já não se deixa levar pelas paixões desordenadas tal como um barco sem leme em mar agitado, mas, ao contrário, as dominam com a ajuda dos anjos (o mundo divino). Quem passa pelo deserto reconhece as forças bestiais que habitam dentro de si, não aponta mais o dedo para os outros, se torna mais forte, pois usa a força dos animais selvagens (paixões) a favor da promoçao do homem novo, restaurado. “Tudo concorre para o bem daqueles que amam a Deus” (Rm 8, 28).
- "Completou-se o tempo e o Reino de Deus se faz próximo, presente, bem aqui; fazei penitência e crede no Evangelho" (v. 15). O Reino de Deus se faz próximo, presente, vizinho, bem aqui. Só falta aceitá-lo, escolhê-lo e “agarrá-lo” como projeto de vida para que ele aconteça no ordinário e extraordinário, nas pequenas e grandes coisas. Por que não aceitá-lo? Escolhê-lo signfica conversão. Conversão é se projetar para uma novidade que quer nascer. Algo que representa realmente uma novidade se chama “inédito”. Jesus anuncia um “Reino” inédito: amo e sou amado realmente; falo e sou ouvido, acolhido; sou reconhecido, valho e vejo-me no direito de existir. Tudo isso é inédito. Há uma paz que não é deste mundo (cf. Jo 14, 27). Também isso é inédito. Viver o presente é uma marca do Reino. Simbolo disso são as crianças que se regozijam com o pai e a mãe como se não houvesse nem passado, nem futuro e nem coisa alguma: é o eterno no presente. Das crianças é o Reino dos Céus; como criança é que se entra no Reino; os anjos das crianças veem sempre a face do Pai do Céu (cf. Mc 10, 13-16; Mt 18, 10).
- Conversão também é tomar uma posição positiva (dizer “sim”) diante de Jesus e suas propostas. E, assim, a minha vida se vê aferrata e conduzida a uma decisão. Chega um momento na vida que urge levar a sério ou rejeitar uma “proposta de vida”. Interessa-me a proposta do Cristo Jesus, ou não tem nada a ver comigo?
- Se conversão é fazer um “giro”, uma mudança de rota, para onde nos giramos? Para quais projetos e sonhos estamos consumindo nossos dias? Qual a nossa narrativa (Estou aqui, sou assim. Mas espero que.... Quem sabe quando eu for para...)? Qual o nosso tesouro presente dia e noite no nosso coração? Converter-se é fazer o giro e apontar-se em direção ao Reino: que “meu Pai do céu” se torne “Pai nosso”, e que cada pessoa desta terra seja considerada por mim como minha família. Oxalá que nossas comunidades se convertam: que cada um se torne transparente e renuncie ao jogo impuro de segundas intenções e de aproveitamento dos menos incautos.
- Conversão como adesão. Quer queiramos ou não, vivemos a cada dia apoiados. Apoiados nos afazeres. Apoiados num futuro melhor. Apoiados em alguém. Apoiados numa posse, no dinheiro. Alguém, infelizmente, se apoia em furtos e roubos. Outros se apoiam nas drogas e prostituição. Apoiados nisso ou naquilo levamos a vida que escolhemos. Jesus disse: “Crede no Evangelho”. “Crede” é o convite a apoiar os pés sobre o sólido, não sobre o quebradiço. Que eu leve minha vida, planeje meu trabalho e minha família, sem deixar de ter os pés bem firmes sobre a Rocha, pois, como diz o salmo, a alma se apoia em Deus. Ele é a rocha que me apoio e por isso me salva da queda, do mal e me defende. Quem não se apoia nEle, cai mais cedo ou mais tarde em suas mentiras, vaidades e deslealdades. Muitos se apoiam na opressão e na rapina: serão dispersos com poeira ao vento (cf. Salmo 62). Para nós cristãos, a Rocha estável é o Evangelho, Jesus Cristo. O Evangelho não é uma idéia, uma experiência mística, mas é relação, os pés, as raízes, a árvore toda aderida a uma Pessoa, relação com Jesus Cristo.