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Homilia do I Domingo da Quaresma - ano B / Frei João Santiago

Publicado por Frei João de Araújo Santiago | 17/02/2018 - 10:19

I Dom Quaresma Marcos 1, 12-15

“Sejais simples como as pombas e espertos como serpentes” (Jesus Cristo).

"E logo o Espírito o impeliu para o deserto. 13. Aí esteve quarenta dias. Foi tentado pelo demônio e esteve em companhia dos animais selvagens. E os anjos o serviam. 14. Depois que João foi preso, Jesus dirigiu-se para a Galiléia. Pregava o Evangelho de Deus, e dizia: 15. "Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo; fazei penitência e crede no Evangelho."" 

- Pode nos parecer estranho, mas é isso mesmo: o Espírito forçou, impeliu, “empurrou” a Jesus a fim de que ele adentrasse no deserto e, no deserto, afrontasse tentações, a maldade, e para que ele entrasse na vida real dos homens e tomasse decisões como cabe a um adulto.  "Ora, quem se alimenta de leite não é capaz de compreender uma doutrina profunda, porque é ainda criança. Mas o alimento sólido é para os adultos, para aqueles que a experiência já exercitou na distinção do bem e do mal" (Hebreus, 5, 13-14).

- Do que sou eu capaz? “No mundo tereis tribulações”, disse Jesus. Os desafios, a dureza da vida e suas contrariedades, as dificuldades, tem sentido. Todo o deserto da vida, com suas tentações e contrariedades, exige do cristão. O segredo é encarar o diabo, suas tentações e as dificuldades como uma prova. Com num exame de escola a prova ou o teste revela se eu sei ou não, assim a provação revela aquilo que eu trago dentro de mim e ao mesmo tempo, como cristão, sou chamado a superar, não a fugir, mas a vencer. "Lembra-te de todo o caminho por onde o Senhor te conduziu durante esses quarenta anos no deserto, para humilhar-te e provar-te, e para conhecer os sentimentos de teu coração, e saber se observarias ou não os seus mandamentos” (Dt 8, 2).

- No deserto Jesus foi tentado: “Usa tua liderança para ludibriar, surrupiar, enganar, abusar... ; usa tua posição de filho de Deus para beneficio próprio não se importando o preço que os outros devam pagar; usa teus conhecimentos para humilhar os incautos, desprovidos, simples e pobres”. Jesus não fugiu da tentação. A tentação revelou-lhe tudo do que ele era capaz: capaz de aderir ao mal e capaz de aderir ao bem. Jesus teve que tomar uma decisão. Decidiu escutar a Palavra: "... Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus ... Não tentarás o Senhor teu Deus ...  Adorarás o Senhor teu Deus, e só a ele servirás” (Mt 4, 4-10).

- O deserto faz bem. Jesus deixou-se conduzir pelo Espírito, adentrou no deserto, foi tentanto, afrontou as tentações, venceu-as com a Palavra. Já não era o mesmo, mas homem resoluto e forte. Basta ler Mateus 4, 11ss para se aperceber que: as forças celestes estavam com ele; que a morte do seu primo João Batista não se torna impedimento para ele; que se torna “luz” que vence as trevas e a morte que maltraram a humanidade; que o Reino é anunciado como já aqui presente e não como algo para um “depois”; que contagia, cativa (chama discípulos) anima e leva esperança a quem espera (“Vinde após mim e vos farei pescadores de homens”); que é seguido por multidões, e que cura doentes e possessos. Que ao término desta “Quaresma” tenhamos nós atravessado “mares e desertos”. Que cada um faça sua “páscoa”: renascidos e resolutos em promover a paz e o bem. Que marido e mulher se entendam mais, que conheçamos mais nosso Salvador, que cada um de nós aprenda mais a dialogar, que não nos traiamos, mas sejamos homens e mulheres fiéis ao melhor que temos dentro de nós (nossa condição de filhos do Pai e irmão dos demais). Que tudo isso seja nossa dedicação, pois “É o tempo que tu te dedicas à tua rosa que faz com ela seja importante” (do Pequeno Príncipe).

 

 

- Nem todos querem ir ao deserto. Uma tentação é horrível. Podemos nos dizer honestos e ao mesmo tempo nos descobrir tentados se alguém nos fizer uma proposta de desonestidade. O que pensaremos de nós mesmos? A tentação revela o que trazemos no coração! O segredo é reconhecer a tentação que nos humilha, e, ao mesmo tempo, afrontá-la com a Palavra, tomar uma decisão de vida, não de morte: “O publicano, porém, mantendo-se à distância, não ousava sequer levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador!” (Lc 18, 13). O publicano descobriu sua verdade (era um pecador) e, ao mesmo tempo, buscou nova vida, foi ao encontro do Senhor a fim de receber perdão e nova vida.

- “... esteve em companhia dos animais selvagens. E os anjos o serviam”. “Paixões desordenadas” (maus pensamentos, imoralidades, furtos, homicídios, adultérios,  as ambições desmedidas, as maldades, o engano, a devassidão, a inveja, a difamação, a arrogância e a insensatez - cf. Mc 7, 21-22) são representadas por estes animais selvagens presentes no deserto. Quem vive o deserto, escuta seu interior, se alimenta da Palavra alcança a graça da pacificação: já não se deixa levar pelas paixões desordenadas tal como um barco sem leme em mar agitado, mas, ao contrário, as dominam com a ajuda dos anjos (o mundo divino).  Quem passa pelo deserto reconhece as forças bestiais que habitam dentro de si, não aponta mais o dedo para os outros, se torna mais forte, pois usa a força dos animais selvagens (paixões) a favor da promoçao do homem novo, restaurado. “Tudo concorre para o bem daqueles que amam a Deus” (Rm 8, 28).

- "Completou-se o tempo e o Reino de Deus se faz próximo, presente, bem aqui; fazei penitência e crede no Evangelho" (v. 15).  O Reino de Deus se faz próximo, presente, vizinho, bem aqui. Só falta aceitá-lo, escolhê-lo e “agarrá-lo” como projeto de vida para que ele aconteça no ordinário e extraordinário, nas pequenas e grandes coisas. Por que não aceitá-lo? Escolhê-lo signfica conversão. Conversão é se projetar para uma novidade que quer nascer. Algo que representa realmente uma novidade se chama “inédito”. Jesus anuncia um “Reino” inédito: amo e sou amado realmente; falo e sou ouvido, acolhido; sou reconhecido, valho e vejo-me no direito de existir. Tudo isso é inédito. Há uma paz que não é deste mundo (cf. Jo 14, 27). Também isso é inédito. Viver o presente é uma marca do Reino. Simbolo disso são as crianças que se regozijam com o pai e a mãe como se não houvesse nem passado, nem futuro e nem coisa alguma: é o eterno no presente. Das crianças é o Reino dos Céus; como criança é que se entra no Reino; os anjos das crianças veem sempre a face do Pai do Céu (cf. Mc 10, 13-16; Mt 18, 10).

- Conversão também é tomar uma posição positiva (dizer “sim”) diante de Jesus e suas propostas. E, assim, a minha vida se vê aferrata e conduzida a uma decisão. Chega um momento na vida que urge levar a sério ou rejeitar uma “proposta de vida”. Interessa-me a proposta do Cristo Jesus, ou não tem nada a ver comigo?

- Se conversão é fazer um “giro”, uma mudança de rota, para onde nos giramos? Para quais projetos e sonhos estamos consumindo nossos dias? Qual a nossa narrativa (Estou aqui, sou assim. Mas espero que.... Quem sabe quando eu for para...)? Qual o nosso tesouro presente dia e noite no nosso coração? Converter-se é fazer o giro e apontar-se em direção ao Reino: que “meu Pai do céu” se torne “Pai nosso”, e que cada pessoa desta terra seja considerada por mim como minha família. Oxalá que nossas comunidades se convertam: que cada um se torne transparente e renuncie ao jogo impuro de segundas intenções e de aproveitamento dos menos incautos.

- Conversão como adesão. Quer queiramos ou não, vivemos a cada dia apoiados. Apoiados nos afazeres. Apoiados num futuro melhor. Apoiados em alguém. Apoiados numa posse, no dinheiro. Alguém, infelizmente, se apoia em furtos e roubos. Outros se apoiam nas drogas e prostituição. Apoiados nisso ou naquilo levamos a vida que escolhemos. Jesus disse: “Crede no Evangelho”. “Crede” é o convite a apoiar os pés sobre o sólido, não sobre o quebradiço. Que eu leve minha vida, planeje meu trabalho e minha família, sem deixar de ter os pés bem firmes sobre a Rocha, pois, como diz o salmo, a alma se apoia em Deus. Ele é a rocha que me apoio e por isso me salva da queda, do mal e me defende. Quem não se apoia nEle, cai mais cedo ou mais tarde em suas mentiras, vaidades e deslealdades. Muitos se apoiam na opressão e na rapina: serão dispersos com poeira ao vento (cf. Salmo 62). Para nós cristãos, a Rocha estável é o Evangelho, Jesus Cristo. O Evangelho não é uma idéia, uma experiência mística, mas é relação, os pés, as raízes, a árvore toda aderida a uma Pessoa, relação com Jesus Cristo.

Sobre o autor
Frei João de Araújo Santiago

Frade Capuchinho, da Província Nossa Senhora do Carmo. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Mestre em Teologia Espiritual. Tem longa experiência como professor, seja no Brasil, como na África, quando esteve como missionário. Por vários anos foi formador seja no Postulantado, como no Pós Noviciado de Filosofia. Atualmente mora em Açailândia-MA. Já escreveu vários livros e muitos artigos.