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Homilia do II Domingo da Quaresma - ano A - Frei João Santiago

Publicado por Frei João de Araújo Santiago | 07/03/2020 - 08:36

II Domingo da Quaresma - (Mateus 17, 1-9)

Com a narração da Transfiguração de Jesus, São Mateus nos descreve a vida íntima, interior, de Jesus. O rosto de Nosso Senhor se mostrou luminoso assim como suas vestes. O rosto, a face, isto é, o próprio Jesus, apareceu em sua plenitude de vida, divindade e glória. Na humanidade de Jesus Cristo a luz de Deus se faz presente nesta terra. A Transfiguração é como uma antecipação de como será a ressurreição, é também uma antecipação de como nós seremos, nós que adotamos o mesmo estilo de vida do Senhor Jesus, nós que escolhemos a vontade do Pai como nossa vontade, nós que abraçamos a Cruz, o amor, o serviço.

Todo percurso, todo caminho, tem um final. O fim de todo aquele que abraça a Cruz de Jesus, a vida como serviço amoroso, é a Transfiguração. E quem não abraça a Cruz tem como fim....

Não importa a situação que venhamos a estar, pois importa que estejamos em Deus no “alto da montanha”. Existe uma “luz”, um sentido, que faz com que “encaremos” as situações e vejamos as coisas e as pessoas em suas verdades, por mais que absurdas elas pareçam ser. O sentido da vida existe, pode ser contemplado. A Transfiguração de Jesus aponta para a nossa Transfiguração. De fato, trazemos em nós uma beleza e temos a possibilidade de fazer nossa vida brilhar e resplandecer intensamente.

- “Seis dias depois, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão, e conduziu-os à parte a uma alta montanha” (v. 1). Seis dias depois, isto é, no sétimo dia. A transfiguração representa o sétimo dia, o dia de repouso, o repouso, o objetivo final de toda a criação, o sentido da vida e da morte, o sentido de toda labuta de Deus e dos homens. Jesus transfigurado, glorioso, é o modelo de tudo: “... a criação aguarda ansiosamente a manifestação dos filhos de Deus. ... Pois sabemos que toda a criação geme e sofre como que dores de parto até o presente dia. Não só ela, mas também nós .. aguardando a adoção, a redenção do nosso corpo” (Rm 8, 19-23)

Fomos criados para sermos transfigurados, gloriosos e também para facilitar a glória de toda a criação. Podemos fazer a nossa parte. O nosso destino não é só nascer, envelhecer e morrer. Dependendo de como vivemos, a vida pode significar que a cada ano que passa mais glorioso vamos ficando (os cabelos brancos não deixam de brilhar) até alcançar a luz de Deus, a perfeita imagem do Filho.

- “Lá se transfigurou na presença deles: seu rosto brilhou como o sol, suas vestes tornaram-se resplandecentes de brancura. 3.E eis que apareceram Moisés e Elias conversando com ele” (vv. 2-3).   “Lá se transfigurou na presença deles”. Transfigurou-se ou metamorfoseou-se é um convite a aprendermos a olhar e considerar as pessoas, a vida, para além da mera aparência. Jesus, naquele dia, mandou a seguinte mensagem a Pedro, Tiago e João: eu assumi a minha vida como uma prestação amorosa de serviço (a cruz) e por isso eu tenho o rosto iluminado como o sol e até as minhas vestes são resplandecentes.

- O caminho para a transfiguração, para o brilho maior, é a fidelidade em viver a própria missão, a própria jornada que nos leva a ser aquilo para o qual fomos criados. Abraçar a própria profecia dá uma vitalidade e uma força que não se pagam. A própria profecia, a felicidade de cada um, na verdade, é um dom e uma tarefa. É um dom, porque cada um recebeu um chamado. Então, sou chamado a me curvar a esse chamado. De outro lado, esse chamado irá provocar-me e assim, dando meu “sim”, poderei fazer emergir em mim uma coisa que não conheço: a minha originalidade, o meu rosto resplandecente. “Ao vencedor darei o maná escondido, bem como lhe darei uma pedra branca, e sobre essa pedra branca estará grafado um novo nome, o qual ninguém conhece, a não ser aquele que o recebe” (Ap 2, 17).

Um dia Jesus falou de sua própria profecia: “Desde então, Jesus começou a manifestar a seus discípulos que precisava ir a Jerusalém e sofrer muito da parte dos anciãos, dos príncipes dos sacerdotes e dos escribas; seria morto e ressuscitaria ao terceiro dia” (Mt 16, 21).  Que todos nós, subindo a montanha, conhecendo o pensamento de Deus e realizando a nossa missão, a nossa cruz, possamos ir nos transfigurando, recebendo a nossa pedra branca.                          

- Jesus aparece radiante, belo, todo transfigurado. Isso significa que o ser humano que faz de sua vida uma doação é isso mesmo: belo, radiante e transfigurado. O ato de amor nunca é feio. O gesto de uma enfermeira que cuida de um paciente com esmero jamais será considerado um gesto feio: o amor sempre é belo, radiante, luminoso. Por isso se diz que o segredo da morte de Cristo é a Transfiguração. Aquele morto ali na cruz era glorioso. Ali estava pendurado um homem verdadeiro: isso é belo e glorioso. Um mundo real brilhante se esconde ao nosso lado, dentro de nós também, e não vemos, pois fugimos.

- “Pedro tomou, então, a palavra e disse-lhe: ‘Senhor, é bom estarmos aqui. Se queres, farei aqui três tendas: uma para ti, uma para Moisés e outra para Elias”” (v. 4)É bom, é belo, estarmos aqui. Não é nada agradável estarmos longe daqui. Fomos criados para estamos diante do rosto luminoso, bondoso e glorioso de Jesus. Diante deste rosto nos sentimos em casa, pois, afinal, é este rosto que buscamos ao longo de nossos dias. Encontrar um rosto assim significa que, finalmente, podemos repousar, sossegar, descansar: “Algum dia, enfuno as velas do meu barco, vou-me embora de mim e te habito”.

- “Falava ele ainda, quando veio uma nuvem luminosa e os envolveu. E daquela nuvem fez-se ouvir uma voz que dizia: ‘Eis o meu Filho muito amado, em quem pus toda a minha afeição; ouvi-o’. Ouvindo esta voz, os discípulos caíram com a face por terra e tiveram medo. Mas Jesus aproximou-se deles e tocou-os, dizendo: ‘Levantai-vos e não temais’. Eles levantaram os olhos e não viram mais ninguém, senão unicamente Jesus” (vv. 5-8).

Uma nuvem luminosa é símbolo de Deus, de sua presença, pois Deus é luz, é fecundidade, é vida. Deus se faz presente com sua voz, com sua Palavra. A “Voz”, Deus mesmo, pede que escutemos o seu Filho amado a fim de nos transfigurarmos também. É bem verdade que os discípulos caíram por terra, ficaram com medo, apavorados. De fato, Jesus, antes da Transfiguração, tinha-lhes falado a respeito da Cruz.

A minha transfiguração começa quando eu inicio a escutar o Filho, Jesus, e deixo de escutar a mim mesmo. Quando eu creio e “aposto” a minha vida na Palavra de Jesus, quando suas palavras fazem a diferença em minha vida eu então começo uma transformação, a minha transformação. Começo a usufruir de um amor que vence todo egoísmo, de uma alegria que supera toda tristeza, de uma paz que supera toda inquietação; começo a ser capaz de exercer a paciência que vence todo desespero; e começo a praticar a benevolência, a fidelidade, a mansidão e o domínio de si que vencem toda dureza de coração, toda maldade, escravidão e infidelidade (Cf. Gal 5, 22). Então, o meu “destino” final será refletir em meu próprio rosto o Rosto do Filho que é o Rosto do Pai.

Jesus tinha anunciado que seria preso e morto (cf. Mt 16, 21ss). Os discípulos temem. Jesus, para encorajá-los, mostra-lhes sua glória, seu poder, como que dizendo: “Não temam a cruz, pois nesta, na cruz, há uma glória, uma beleza”!

- Enquanto o sangue circular não há infarto, não há morte. Infarto é sangue que não circula. Na transfiguração, saiu vida, luz, saiu glória do corpo de Jesus. No Getsêmani saiu sangue dos poros (do corpo) de Jesus. “O sangue a Deus pertence”. Sangue é vida divina, é a vida a nós doada e que é chamada a se doar, a continuar a ciranda da vida dando vida a quem precisar. Viver só para si é mortal, é “infartante”. Abraçar a Cruz seria dar de volta o sangue a mim doado, seria viver. Quem assume a Cruz, a vida como doação – assim como Jesus - assume porque se vê “dominado” pelo desejo de viver. Na verdade, tudo indica que não tememos a Cruz, mas tememos, sim, o chamado, a voz divina, a Palavra, a vida, o amor, a entrega sem reservas. E fugindo dessa grandiosidade que seria viver, amar e brilhar, terminamos a vida como num labirinto de medos, medo de tudo, ou derrotados como em um “xeque-mate”. 

Sobre o autor
Frei João de Araújo Santiago

Frade Capuchinho, da Província Nossa Senhora do Carmo. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Mestre em Teologia Espiritual. Tem longa experiência como professor, seja no Brasil, como na África, quando esteve como missionário. Por vários anos foi formador seja no Postulantado, como no Pós Noviciado de Filosofia. Atualmente mora em Açailândia-MA. Já escreveu vários livros e muitos artigos.