Homilia do II Domingo da Quaresma - ano A - Frei João Santiago
II Domingo da Quaresma - (Mateus 17, 1-9)
Com a narração da Transfiguração de Jesus, São Mateus nos descreve a vida íntima, interior, de Jesus. O rosto de Nosso Senhor se mostrou luminoso assim como suas vestes. O rosto, a face, isto é, o próprio Jesus, apareceu em sua plenitude de vida, divindade e glória. Na humanidade de Jesus Cristo a luz de Deus se faz presente nesta terra. A Transfiguração é como uma antecipação de como será a ressurreição, é também uma antecipação de como nós seremos, nós que adotamos o mesmo estilo de vida do Senhor Jesus, nós que escolhemos a vontade do Pai como nossa vontade, nós que abraçamos a Cruz, o amor, o serviço.
Todo percurso, todo caminho, tem um final. O fim de todo aquele que abraça a Cruz de Jesus, a vida como serviço amoroso, é a Transfiguração. E quem não abraça a Cruz tem como fim....
Não importa a situação que venhamos a estar, pois importa que estejamos em Deus no “alto da montanha”. Existe uma “luz”, um sentido, que faz com que “encaremos” as situações e vejamos as coisas e as pessoas em suas verdades, por mais que absurdas elas pareçam ser. O sentido da vida existe, pode ser contemplado. A Transfiguração de Jesus aponta para a nossa Transfiguração. De fato, trazemos em nós uma beleza e temos a possibilidade de fazer nossa vida brilhar e resplandecer intensamente.
- “Seis dias depois, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão, e conduziu-os à parte a uma alta montanha” (v. 1). Seis dias depois, isto é, no sétimo dia. A transfiguração representa o sétimo dia, o dia de repouso, o repouso, o objetivo final de toda a criação, o sentido da vida e da morte, o sentido de toda labuta de Deus e dos homens. Jesus transfigurado, glorioso, é o modelo de tudo: “... a criação aguarda ansiosamente a manifestação dos filhos de Deus. ... Pois sabemos que toda a criação geme e sofre como que dores de parto até o presente dia. Não só ela, mas também nós .. aguardando a adoção, a redenção do nosso corpo” (Rm 8, 19-23)
Fomos criados para sermos transfigurados, gloriosos e também para facilitar a glória de toda a criação. Podemos fazer a nossa parte. O nosso destino não é só nascer, envelhecer e morrer. Dependendo de como vivemos, a vida pode significar que a cada ano que passa mais glorioso vamos ficando (os cabelos brancos não deixam de brilhar) até alcançar a luz de Deus, a perfeita imagem do Filho.
- “Lá se transfigurou na presença deles: seu rosto brilhou como o sol, suas vestes tornaram-se resplandecentes de brancura. 3.E eis que apareceram Moisés e Elias conversando com ele” (vv. 2-3). “Lá se transfigurou na presença deles”. Transfigurou-se ou metamorfoseou-se é um convite a aprendermos a olhar e considerar as pessoas, a vida, para além da mera aparência. Jesus, naquele dia, mandou a seguinte mensagem a Pedro, Tiago e João: eu assumi a minha vida como uma prestação amorosa de serviço (a cruz) e por isso eu tenho o rosto iluminado como o sol e até as minhas vestes são resplandecentes.
- O caminho para a transfiguração, para o brilho maior, é a fidelidade em viver a própria missão, a própria jornada que nos leva a ser aquilo para o qual fomos criados. Abraçar a própria profecia dá uma vitalidade e uma força que não se pagam. A própria profecia, a felicidade de cada um, na verdade, é um dom e uma tarefa. É um dom, porque cada um recebeu um chamado. Então, sou chamado a me curvar a esse chamado. De outro lado, esse chamado irá provocar-me e assim, dando meu “sim”, poderei fazer emergir em mim uma coisa que não conheço: a minha originalidade, o meu rosto resplandecente. “Ao vencedor darei o maná escondido, bem como lhe darei uma pedra branca, e sobre essa pedra branca estará grafado um novo nome, o qual ninguém conhece, a não ser aquele que o recebe” (Ap 2, 17).
Um dia Jesus falou de sua própria profecia: “Desde então, Jesus começou a manifestar a seus discípulos que precisava ir a Jerusalém e sofrer muito da parte dos anciãos, dos príncipes dos sacerdotes e dos escribas; seria morto e ressuscitaria ao terceiro dia” (Mt 16, 21). Que todos nós, subindo a montanha, conhecendo o pensamento de Deus e realizando a nossa missão, a nossa cruz, possamos ir nos transfigurando, recebendo a nossa pedra branca.
- Jesus aparece radiante, belo, todo transfigurado. Isso significa que o ser humano que faz de sua vida uma doação é isso mesmo: belo, radiante e transfigurado. O ato de amor nunca é feio. O gesto de uma enfermeira que cuida de um paciente com esmero jamais será considerado um gesto feio: o amor sempre é belo, radiante, luminoso. Por isso se diz que o segredo da morte de Cristo é a Transfiguração. Aquele morto ali na cruz era glorioso. Ali estava pendurado um homem verdadeiro: isso é belo e glorioso. Um mundo real brilhante se esconde ao nosso lado, dentro de nós também, e não vemos, pois fugimos.
- “Pedro tomou, então, a palavra e disse-lhe: ‘Senhor, é bom estarmos aqui. Se queres, farei aqui três tendas: uma para ti, uma para Moisés e outra para Elias”” (v. 4). É bom, é belo, estarmos aqui. Não é nada agradável estarmos longe daqui. Fomos criados para estamos diante do rosto luminoso, bondoso e glorioso de Jesus. Diante deste rosto nos sentimos em casa, pois, afinal, é este rosto que buscamos ao longo de nossos dias. Encontrar um rosto assim significa que, finalmente, podemos repousar, sossegar, descansar: “Algum dia, enfuno as velas do meu barco, vou-me embora de mim e te habito”.
- “Falava ele ainda, quando veio uma nuvem luminosa e os envolveu. E daquela nuvem fez-se ouvir uma voz que dizia: ‘Eis o meu Filho muito amado, em quem pus toda a minha afeição; ouvi-o’. Ouvindo esta voz, os discípulos caíram com a face por terra e tiveram medo. Mas Jesus aproximou-se deles e tocou-os, dizendo: ‘Levantai-vos e não temais’. Eles levantaram os olhos e não viram mais ninguém, senão unicamente Jesus” (vv. 5-8).
Uma nuvem luminosa é símbolo de Deus, de sua presença, pois Deus é luz, é fecundidade, é vida. Deus se faz presente com sua voz, com sua Palavra. A “Voz”, Deus mesmo, pede que escutemos o seu Filho amado a fim de nos transfigurarmos também. É bem verdade que os discípulos caíram por terra, ficaram com medo, apavorados. De fato, Jesus, antes da Transfiguração, tinha-lhes falado a respeito da Cruz.
A minha transfiguração começa quando eu inicio a escutar o Filho, Jesus, e deixo de escutar a mim mesmo. Quando eu creio e “aposto” a minha vida na Palavra de Jesus, quando suas palavras fazem a diferença em minha vida eu então começo uma transformação, a minha transformação. Começo a usufruir de um amor que vence todo egoísmo, de uma alegria que supera toda tristeza, de uma paz que supera toda inquietação; começo a ser capaz de exercer a paciência que vence todo desespero; e começo a praticar a benevolência, a fidelidade, a mansidão e o domínio de si que vencem toda dureza de coração, toda maldade, escravidão e infidelidade (Cf. Gal 5, 22). Então, o meu “destino” final será refletir em meu próprio rosto o Rosto do Filho que é o Rosto do Pai.
Jesus tinha anunciado que seria preso e morto (cf. Mt 16, 21ss). Os discípulos temem. Jesus, para encorajá-los, mostra-lhes sua glória, seu poder, como que dizendo: “Não temam a cruz, pois nesta, na cruz, há uma glória, uma beleza”!
- Enquanto o sangue circular não há infarto, não há morte. Infarto é sangue que não circula. Na transfiguração, saiu vida, luz, saiu glória do corpo de Jesus. No Getsêmani saiu sangue dos poros (do corpo) de Jesus. “O sangue a Deus pertence”. Sangue é vida divina, é a vida a nós doada e que é chamada a se doar, a continuar a ciranda da vida dando vida a quem precisar. Viver só para si é mortal, é “infartante”. Abraçar a Cruz seria dar de volta o sangue a mim doado, seria viver. Quem assume a Cruz, a vida como doação – assim como Jesus - assume porque se vê “dominado” pelo desejo de viver. Na verdade, tudo indica que não tememos a Cruz, mas tememos, sim, o chamado, a voz divina, a Palavra, a vida, o amor, a entrega sem reservas. E fugindo dessa grandiosidade que seria viver, amar e brilhar, terminamos a vida como num labirinto de medos, medo de tudo, ou derrotados como em um “xeque-mate”.