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Homilia do II Domingo do Advento Frei João Santiago

Publicado por Frei João de Araújo Santiago | 08/12/2018 - 17:24

II Domingo do Advento (Lucas 3, 1-6)

No ano décimo quinto do reinado do imperador Tibério, sendo Pôncio Pilatos governador da Judeia, Herodes, tetrarca da Galileia, seu irmão Filipe, tetrarca da Itureia e da província de Traconites, e Lisânias, tetrarca da Abilina, sendo sumos sacerdotes Anás e Caifás, veio a palavra do Senhor no deserto a João, filho de Zaca­rias”.

A Palavra do Senhor “passando”, evitando de passar, por Roma e Tibério, pela Judeia e Pilatos, pela Galileia e Herodes, pela Itureia e Filipe (irmão de Herodes), pela Abilina e Lisânias, pelos sacerdores Anás e Caifás,encontra o seu “repouso”, sua estadia no “deserto” e em “João”, filho de Zacarias.

Vamos ao deserto! Certas palavras, certos lugares e certos odores ou perfumes nos remetem, nos fazem lembrar, nos trazem à memória um momento da vida ou pessoas que conhecemos. A palavra “deserto” fazia com que o povo, na época de João Batista, lembrasse-se do tempo no qual saíram da terra da escravidão (Egito) e se endereçaram para a liberdade passando pelo deserto. A palavra “deserto”, portanto, fazia nascer no coração uma inquietação, parecia acordar “palavras dormidas” e sonhos esquecidos, parecia abrir portas e janelas fechadas, abrir gavetas e visitar quartos abandonados.

Alguém diz que todo homem tem seu preço. É uma frase vergonhosa, pois está querendo dizer que o ser humano é sempre capaz de trair os outros, trair o seu próprio Deus e trair a si mesmo. Depois de ter deixado a terra da escravidão, o próprio povo de Deus no deserto estava disposto a se vender por uma comida melhor (“...até os próprios israelitas tornaram a queixar-se, e diziam: "Ah, se tivéssemos carne para comer! Nós nos lembramos dos peixes que comíamos de graça no Egito, e também dos pepinos, das melancias, dos alhos porós, das cebolas e dos alhos. Mas agora perdemos o apetite; nunca vemos nada, a não ser este maná" (Num 11, 4-6). Podemos opinar se realmente todo homem tem seu preço, mas o certo é que há um drama. O drama é que, por covardia ou pusilanimidade, relutamos em ir ao deserto, deixar de mão certas situações, deixar o jogo do “toma-lá-da-cá”, e relutamos em tomar decisões verdadeiras e acertadas. E tudo isso por falta de abandono em Deus, por mero capricho, por pensar só nas próprias vantagens e por preguiça espiritual.

A missão de João Batista é anunciar a “palavra” e oferecer um batismo de conversão a fim de muitos se disporem a encontrar o Messias que vem. A nova terra prometida é o próprio Jesus.

A palavra “cai”, visita, repousa, neste homem, que vive no deserto, vestido de pele de camelo, com um cinto de couro na cintura e que come gafanhotos. A “palavra” não encontra espaço nos palácios dos que governam tiranicamente e nem no templo dos sacerdotes Anás e Caifás. O mundo oculto, o mundo do além, o mundo religioso e de tantas comunidades religiosas, igrejas, sinagogas, templos e mesquitas não necessariamente têm a ver com a Palavra de Deus.

A Palavra se faz presente no “deserto”. No deserto não pode haver jogo de poder, pois para se sobreviver um deve ajudar o outro, senão se morre. No deserto há silencio, acolhida da “voz interior”, pois dissipações, rumores, barulhos e vãs preocupações não existem. Vive-se com e no essencial. No deserto não se pode relaxar, mas sempre caminhar: quem não caminha, morre. No deserto o homem experimenta o seu limite, se descobre um ser carente e necessitado e vê toda a sua vida depender de um simples copo d´água, o que gera uma grande oportunidade do homem se tornar humilde e aceitar que não se basta sozinho, mas que precisa dos demais. E, assim, no deserto, o homem se descobre homem (húmus=terra) e descobre Deus como um apelo que nasce do mais profundo de si.

O deserto também é lugar de prova, de escolhas decisivas, onde não se podem adiar as perguntas sérias da vida. Foi no deserto que Jesus tomou decisões: “Não viverei só procurando “pão”, mas acima de tudo, aberto às expectativas do Pai sobre mim”; “Jamais deixarei de fazer o bem, mesmo que me façam o mal; “Adorarei, beijarei (ad-orar), me entregarei de corpo e alma somente ao Senhor e jamais a quaisquer que sejam esplendor, vaidades e glórias mundanas” (cf. Mt 4, 1-11).

A “palavra” é Deus mesmo em seu querer, em seu desejo, em sua expectativa para comigo e sua Igreja. Quando entro no deserto faço silêncio, torno-me receptivo, e a expectativa que Deus salvador tem para comigo é acolhida por mim e eu me torno a morada da Palavra, passando a viver respirando o respiro de Deus, respondendo às suas expectativas. Um homem que se tornou “deserto” é um homem que foi raptado, fisgado, pelo Espírito Santo, não é mais detido, retido, por nada e por ninguém que possam impedi-lo de escutar a “Voz” e de responder ao chamado, pois está sempre em abandono, deixando lugares para conquistar outros lugares: “Como a corça anseia pelas águas vivas, assim minha alma suspira por vós, ó meu Deus” (Sl 41); “Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirei da terra do Egito; abre bem a tua boca, e ta encherei, saciarei” (Sl 81).

- “Ele percorria toda a região do Jordão, pregando o batismo de arrependimento para a remissão dos pecados, como está escrito no livro das palavras do profeta Isaías (40,3ss): Uma voz clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas. Todo vale será aterrado, e todo monte e outeiro serão arrasados; se tornará direito o que estiver torto, e os caminhos escabrosos serão aplainado" (vv. 3-5).

Batismo. Usamos água para o batismo. Água sobre mim ou eu nas águas, lembra a verdade que eu sou mortal, pois água também mata. Batizando-me reconheço o meu limite mortal e de como sou destinado a ser enterrado, inumado. Submetido às águas, abandono meus delírios de onipotência, de grandeza, e reconheço que sou um “pobre mortal” e irmão de todos os outros mortais. Dou fim e cabo de nefastas fantasias e imagens que possa ter de eu mesmo, e, assim, conquisto uma liberdade e pacificação comigo e com os demais que convivo.

“Água” também é símbolo de vida. O batismo não deixa de ser um protesto contra a morte, pois quero um renascimento, uma vida nova e a vida do Eterno em mim. No batismo mantenho vivo, vicejante, o desejo de Deus, de Vida eterna, a plenitude de vida. Quando eu renovo minhas promessas batismais, mantenho pulsante a pulsão de vida que nunca se dá por satisfeita, tenha o que tiver, possua o que possuir. No fundo, o homem é um pedido de “água viva”, é um anseio de infinito, tem em si a marca de Deus, e por isso Jesus falou de uma “água”, do seu Espírito, “pronto” para eternizar o homem: “... aquele que beber da água que eu lhe der nunca terá sede, porque a água que eu lhe der se fará nele uma fonte de água que jorra para a vida eterna” (Jo 4, 4).

Batismo de arrependimento, de conversão, de tomar outro rumo na vida. Em geral, travamos uma luta desesperada para postergar a morte através de mil invencionices, estratagemas, fantasias e paixões. Uma poesia fala bem disso: “Só navegar eu preciso. Já não vivo mais sem ti. Desamor não dá aviso. Vida minha te perdi. Minha verdade de homem se nega e desatina. Eu morro por tua fome. Perdição que não termina. Meu coração sem poesia vai desistindo de amar. ... Trocar de alma talvez. Sentir outro sentimento. Virar meu corpo ao revés. Abrir novo ferimento. Meu destino não descansa com a dor que ninguém sabe. Dançar e dançar essa dança até que um dia eu desabe”.

O rumo certo, porém, é realizar uma conversão, e largar decididamente e definitivamente as tentativas inúteis, os labirintos nos quais nos metemos, o marasmo de ir “empurrando com a barriga” e sempre ficando na mesma, dando voltas para se encontrar onde de nunca se saiu.

Vamos “jogar nossa vida” na direção da conversão. O texto fala de arrependimento dos pecados e de pedido de perdão. Por vezes limitamos a conversão a uma forte emoção religiosa, a um passar de igreja para outra igreja, a deixar alguns usos e costumes. Mas a conversão radical é outra, é aceitar nossa Origem, ter gratidão para com o nosso Criador, adorar o nosso Deus, tecer e costurar laços de comunhão, de solidariedade, entendendo que formamos, sim, o Corpo de Cristo formando por muitos irmãos que reconhecem um Pai de todos. Atitudes sérias de conversão: “E a multidão interrogava João Batista, dizendo: ‘Que faremos, pois?’ E, respondendo ele, disse-lhes: ‘Quem tiver duas túnicas, reparta com o que não tem, e quem tiver alimentos, faça da mesma maneira’. E chegaram também uns publicanos, para serem batizados, e disseram-lhe: ‘Mestre, que devemos fazer?’ E ele lhes disse: ‘Não peçais mais do que o que vos está ordenado’. E uns soldados o interrogaram também, dizendo: ‘E nós que faremos?’ E ele lhes disse: ‘A ninguém trateis mal nem defraudeis, e contentai-vos com o vosso salário’ (Lc 3, 1-14).

- “Uma voz clama no deserto: ‘Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas’" (v. 4).

Tempo do advento, tempo de espera. Exílio. Sempre nos sentiremos em exílio. Jamais justificaremos os males presentes em nosso mundo, pois dentro de nós palpita o Eterno (“... o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis” – Rm 8, 26), o que nos faz ter a santa inquietação por sermos melhores e almejarmos por Jesus e sua beleza. João Batista nos exorta a endireitar as veredas: abandonemos aqueles pensamentos obscenos, cruéis e agressivos que querem conduzir-nos ao abismo. Que possamos reagir à lei do menor esforço e não deixemos que as feridas do passado nos paralisem e nos deixem “vendo a banda passar”, a vida passar: “Não se ponha o sol sobre o vosso ressentimento. Não deis lugar ao demônio" (Ef 4, 26-27).

 - “Todo vale será aterrado, e todo monte e outeiro serão arrasados; se tornará direito o que estiver torto, e os caminhos escabrosos serão aplainados” (v. 5).

“Vale aterrado”. A promessa é que o Messias Jesus preenche nossos vazios e carências, nossa falta de ternura e busca de acudimento. Desta maneira, superamos a frenética busca de admiração, de exibicionismo, de entorpecimento em sensações, em bebidas, em drogas, em sexo desenfreado.

“Montes e colinas abaixados”. Por vezes somos orgulhosos, invejosos do sucesso alheio, e tecemos julgamentos fáceis, consideramos sempre o nosso fazer como o melhor.).  

“Caminhos escabrosos”. Que caminho escabroso é aquele marcado pela frieza nos relacionamentos humanos e pela desistência em amar e ser amigo, devido, quem sabe, a traições sofridas, e, assim, relutamos em arregaçar as mangas, pois perdemos a força, a esperança e nos entregamos, completamente resignados, ao peso da vida.

- “Toda carne verá a salvação de Deus” (v. 6). Com o “natal” do Senhor Jesus, a carne, o humano frágil, foi assumido, foi aceito, acolhido. Não fujamos de nossa fragilidade. Assim como as águas do rio são “felizes” em desembocar no mar, assim o homem mortal, a carne, é feliz quando “desemboca” em Deus, no Todo Poderoso. Nas relações amorosas, os parceiros se disfarçam (roupas, maquiagens, perfumes...), pois não são seguros do amor do outro. Deus ama incondicionalmente a humanidade: Ele nos salva, acolhe-nos em nossas necessidades, precisões, sonhos, desejos, aspirações, fragilidades, tropeços. “Deixai que as crianças venham a mim; não as impeçais, porque o Reino de Deus pertence aos que são como elas” (Mc 10, 14). Importa que nos deixemos ser acolhidos.

Sobre o autor
Frei João de Araújo Santiago

Frade Capuchinho, da Província Nossa Senhora do Carmo. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Mestre em Teologia Espiritual. Tem longa experiência como professor, seja no Brasil, como na África, quando esteve como missionário. Por vários anos foi formador seja no Postulantado, como no Pós Noviciado de Filosofia. Atualmente mora em Açailândia-MA. Já escreveu vários livros e muitos artigos.