Homilia do III Domingo da Páscoa - ano A - Frei João Santiago
III Domingo da Páscoa (Lucas 24, 13-35)
O Evangelho desse domingo nos apresenta “Os discípulos de Emaús”. Narra-se que eles discutiam pelo caminho e o próprio Jesus se fazia presente ao lado deles. Mas eles não o reconheceram. Jesus perguntando-lhes sobre o que discutiam, eles contam sobre uma decepção que sentem e vivem. Esperavam que Jesus saísse vitorioso, mas até onde sabem é que foi crucificado, e, apesar de conversas acerca dele está vivo, ninguém o viu ressuscitado. E aí Jesus intervém: "Ó gente sem inteligência! Como sois tardos de coração para crerdes em tudo o que anunciaram os profetas! Porventura não era necessário que Cristo sofresse essas coisas e assim entrasse na sua glória? E começando por Moisés, percorrendo todos os profetas, explicava-lhes o que dele se achava dito em todas as Escrituras”. Na hora da ceia Jesus “Aconteceu que, estando sentado conjuntamente à mesa, ele tomou o pão, abençoou-o, partiu-o e serviu-lho. Então se lhes abriram os olhos e o reconheceram... mas ele se tornou invisível aos seus olhos”.
Acreditamos que o Evangelho deste Domingo nos convoca a entrar no mistério pascal, no mistério do Vivo ou Vivente para sempre. Temos nossas dificuldades tais como as dos discípulos:
- Jesus caminhando ao lado deles e seus olhos não o viam. Viam delírios, medos, ideias preconcebidas, desilusões, não a realidade (vv. 21-24). Por vezes não vemos as pessoas, mas o que esperamos delas, o que queremos ou não queremos delas. Os discípulos estavam por demais atolados em si mesmos, em suas crenças, nas próprias opiniões, no próprio jeito de ser, julgar e pensar. A nossa cegueira tem origem, também, em falsas narrativas acerca de Deus, acerca dos outros e de nós mesmos. A Palavra de Deus tem que fazer esta violência sobre nós, nos abater, saquear de nós aquilo que domina sobre o nosso olhar e exorcizar o nosso coração, e nos fazer renascer para uma nova visão. Os discípulos não conheciam a Jesus, pois não o amavam (pois quem ama conhece), mas esperavam que Ele, Jesus, fosse o que eles queriam: Messias que trucida adversários.
- Os discípulos se apresentam como que com “olhos vendados” (rostos escuros – v. 16), símbolo de uma morte interna, pois sem o “olhar” não há comunicação, interação, mas só solidão. Parecem vaguear em um mundo sem sentido, sem Deus, sem luz, sem resposta, sem esperança, sem caridade. Para quem vive assim pouco importa se o mundo acabe ou não. Aqui temos o reino da desolação, do tédio, do cansaço, da tristeza, da depressão. Realmente, sem a luz que irradia do crucificado, a vida, mais cedo ou tarde, apresentar-se-á como um cenário desolador.
- Jesus caminhando ao lado deles e seus olhos não o viam. Os discípulos esperavam que Ele, Jesus, fosse o que eles queriam: Messias que trucida adversários. Ora, se Deus esmagou os egípcios em favor do seu povo, como agora pode ser revelar como Crucificado? Se Ele fez justiça matando os primogênitos de nossos adversários com o seu anjo exterminador, como agora faz justiça preferindo perdoar, justificar e ser, Ele mesmo, sacrificado? É difícil entender a Cruz! É quase impossível! A Cruz, portanto, se torna motivo de uma profunda conversão no modo de pensar e se relacionar com Deus.
- Não basta saber! Apesar de saberem muito (Cf. vv. 19-24) e de terem Jesus caminhando ao lado deles, não o veem, não o experimentam. Quando estou afogado na minha tristeza, no meu fracasso, sentindo-me traído por todos e pela vida, ruminando no meu interior, em briga com os outros (“... discutiam pelo caminho” – v. 15)) .... não posso ver o “Vivente”.
Como se faz para sair desse labirinto, desse atoleiro, dessa falta de luz? Os discípulos sairão dessa fossa e dessa prisão. E sairão quando Jesus passar-lhes o seu amor. Jesus, procurando passar-lhes o amor de Deus, conta-lhes a história do amor de Deus para com eles (A história de salvação, isto é, as iniciativas de Deus ao longo dos tempos - criação, perdão, resgate, salvação, milagres - em favor do seu povo). O ápice dessa história é a entrega de Deus, na cruz, por eles, por nós, por todos. Só a certeza de que alguém morreu ou possa morrer por mim faz-me encontrar um sentido maior na vida para além da própria vida. A Cruz é o testemunho do Amor de Deus: uma coisa é dizer: “Amo você”, outra é: morrer por quem se ama. A Cruz testemunha o quanto é real o amor de Deus por nós.
A Cruz revela que para além do que possa acontecer conosco, o que mais importa é a gente se centrar e perseverar na aceitação do nosso corpo mortal e em acatar o “Amor” como a coisa mais importante na vida e que dá sentido até quando um inocente é sacrificado. Importa crer, apostar a vida, no Deus revelado por Jesus de Nazaré, pois quando se crer na força bruta, não se pode crer no amor, não se pode ver o Ressuscitado, pois só o amor, não a força bruta, vence a morte, traz alegria e satisfação ao viver (cf. 1Jo 3, 14; 4, 1ss).
A catequese, a Palavra, de Jesus sobre a Cruz
A Palavra vem nos iluminar, abrir nossas mentes, nos fazer visualizar uma saída.... (vv. 25-27).
- São Lucas narra que o Senhor se faz peregrino ao lado dos desolados peregrinos, escutando e acolhendo seus lamentos. Mesmo quando não O vemos, o Senhor escuta nossos lamentos e aflições.
- Jesus, no Evangelho deste domingo, nos catequiza e revela que a Palavra, no fim das contas, diz que Deus se interessa por nós. E o sentido de tudo o que fez é sua paixão por nós. Isto nos faz entender quem é Ele e quem somos nós.
- Os discípulos não entendem que a acatar a Cruz é um entrar na glória. A Cruz é um trabalho de Deus. É o amor de Deus testemunhado, explícito, escancarado, enquanto entra em solidariedade com a situação de todos os homens e seus sofrimentos, com o homem perdido, com o malfeitor e até com quem O condena, mata, crucifica. O remédio para toda perversidade será sempre o amor. Amor para quem não se sente amado. A Cruz vence: o amor é mais forte do que qualquer mal.
- Toda a vida de Cristo foi marcada pela Cruz. Todos os milagres em favor da humanidade sofredora, Jesus realizou motivado pelo mesmo amor que o levará até a Cruz. Nada pôde deter aquele coração amante, nem a morte: Ele ressuscitou!
- Como se poderia dizer para este mundo marcado por tanta dor e morte o quanto somos amados infinitamente por Deus? A Cruz faz isso, diz muito a este mundo acerca do “mistério” de Deus e acerca do nosso “mistério”. A Cruz fala de um amor procurado por todos e, também, do quanto podemos amar.
- A Palavra nos encaminha até Ele. A Palavra lida a partir do Crucificado e Ressuscitado nos faz passar da desolação ao brilho nos olhos, da tristeza à luz, à alegria, à comunhão com os demais.
- Encontrar a Palavra muda o coração (a percepção íntima das coisas), a vida, o olhar; faz com que se encare a realidade de outro modo. A grande marca de quem encontra a Palavra é passar da solidão ou egoísmo e alcançar os demais como irmãos por promover (amor). Aqui temos a nossa páscoa, a ressurreição, o entrar no mundo do divino, no reino do Eterno. Aqui temos o verdadeiro milagre.
- A Cruz como expressão do amor de Deus revela que o amor é forte, é capaz de “carregar sobre si”, vencendo, assim, o mal com o bem.
- Jesus faz com que os discípulos compreendam que a Cruz não foi um “acaso” e nem uma falência, mas uma manifestação do amor, amor extremo e explícito para um mundo marcado por malícia. Tal Cruz, tal amor divino muda a forma de compreender Deus e a vida.
- A catequese de Jesus nos ensina que a “mão” de Deus pousa onde dizemos “impossível”, “absurdo”. Como é bom receber uma “boa-notícia”, pois afinal buscamos um sentido, uma explicação. Para o cristão há uma certeza de que Deus não perdeu o controle da história: ressuscitou seu Filho. Pode, portanto, nos livrar de qualquer sensação de afogamento, de insensatez de vida.
- A crucificação do meu Deus revela que meus adversários não são vingados: a salvação é para todos!
- A Cruz revela “o poder de Deus” (cf. 1 Cor 1, 24), que é diferente do poder humano. O poder humano sempre significa uma segurança na própria força (poder, dinheiro, influência, força bruta). O “poder de Deus” nos desmonta e desarma, pois é confiança e certeza de que a verdade e o bem tem força maior. É poder de salvação, crença no bem e por este bem vai até à Cruz para salvar o homem.
- Revela a lógica da gratuidade, isto é, o homem não tem como se redimir sozinho, nem mesmo se autopunindo.
Depois de iluminados pela palavra estamos prontos para experimentar o Cristo vivo. Pelo “partir do pão”.
Lucas descreve que ao ouvir a Palavra e no “partir do pão”, o coração se abrasa, os ouvidos se abrem, a mente começa a entender, os olhos se abrem, o reconhecimento acontece. Os pés tomam outra direção, vão para a comunidade reunida, para Jerusalém, lugar da vida, não Emaús, lugar de desespero. A boca não servirá mais para discussões, mas para afirmar: “Nós O reconhecemos ao partir o pão. Ele vive!” (Cf. v. 35).
Por que o “partir do pão” pode ser considerado a marca de Cristo? Eu posso destruir o outro como que devorando um pedaço de pão (“... comerás todos os povos que o Senhor, teu Deus, te der” – Dt 7, 16,). No entanto, o pão pode deixar de ser o outro, posso deixar de devorar o outro, posso fazer um sacrifício, posso deixar de ser violento. Desta forma, eu me nego a devorar o outro e dou o deleite ao Senhor, dou-Lhe pão (Cf. Gn 18, 5-6).
O pão é símbolo da vida, daquilo que me faz viver (é um alimento); é minha sobrevivência e Jesus “sabia” que uns procuram a vida esmagando outros, sobrevivem enquanto devoram o outro, fazem do outro o próprio pão. Que regozijo se desfruta quando se destrona, devora, engole um inimigo!!! Jesus, dizendo aos discípulos: “Tomai todos e comei” e “Se vocês não comerem a carne do Filho do Homem não terão a vida em vós, pois a minha carne é verdadeira comida e meu sangue verdadeira bebida” (Jo 6, 53-58) é como se dissesse: “Parem de se digladiarem, parem de se matarem, parem de se fazerem mal uns aos outros e..... se alimentem de mim, pois eu me sacrifico por vocês a fim de vocês não mais se agredirem, se devorarem. Parem de se verem como uma potência que só se satisfaz comparando-se e vencendo os outros, e se descubram, alimentando-se de mim, vivos e ressuscitados”.
O “partir do pão” - amar se desfazendo em alimento para os demais - nos faz passar da morte para a vida, faz com que Cristo reviva em nós. Com o “partir do pão” temos a Vida e o Vivo dentro de nós. Comer e beber o corpo e o sangue de Cristo é "comer" o amor, o mesmo amor que fez Jesus subir ao calvário, e do Calvário desaguar no oceano do Eterno, desaguar como Ressuscitado.