Homilia do III Domingo da Páscoa - ano B / Frei João Santiago
III Domingo da Páscoa
Lucas 24, 35-48
- “Eles também começaram a contar o que tinha acontecido no caminho e como o reconheceram ao partir o pão” (v. 35). O Evangelho deste domingo atesta que os discípulos de Emaús reconheceram o Senhor Ressuscitado ao “partir do pão”. É bem verdade que tinham escutado a Palavra, mas o reconheceram somente quando aconteceu o “partir do pão”. Oxalá em nossa celebração eucarística a Palavra nos impulsione, crie em nós fome de Eucaristia. Queira Deus que vivamos unidos, pois assim facilitaremos o trabalho do Espírito Santo, da Graça de Deus, que nos faz viver, perceber, o Ressuscitado no “partir do pão”. “Pão partido” não se come sozinho, come-se em comum, numa atmosfera de harmonia entre o céu e a terra, entre Deus e os homens. Precisamos desse “Pão”, desse ambiente que nos domina, nos abraça e só nos faz bem. Sem esse Pão, sem esta celebração, buscaremos em outros lugares alimentos que não saciam (“Águas em cisternas rachadas”).
Jesus Nosso Senhor doando-se à nós a sua vida, partindo o pão que é Ele mesmo, nos leva a gostar de amar, cuidar e zelar os irmãos mais fracos, assim como amando, cuidando e zelando dos irmãos mais fracos somos levados a gostar do Pão da Vida, a gostar de ser amados por Ele, o nosso verdadeiro alimento.
- “Jesus apresentou-se no meio deles e disse: ‘A paz esteja convosco’” (v. 36). Talvez ainda não conhecemos o poder da vida comum enquanto harmoniosa convivência. O texto fala de“... no meio deles”. Podemos até dizer que a nossa entrega e confiança recíprocas provoca a estadia de uma Vida nova em nosso meio, do Ressuscitado e sua paz entre nós. “Como é bom e agradável quando os irmãos convivem em união!
É como óleo precioso derramado sobre a cabeça, que desce pela barba, a barba de Arão, até a gola das suas vestes. É como o orvalho do Hermom quando desce sobre os montes de Sião. Ali o Senhor concede a bênção da vida para sempre” (Sl 133, 1-3). “A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma. ... tudo entre eles era comum. ... Nem havia entre eles nenhum necessitado” – pois repartiam o que possuíam (At 4, 32-35).
- O mundo grego e que muitos ainda acreditam. “Assustados e cheios de medo, julgavam estar vendo um espírito. Mas ele lhes disse: ‘Por que estais perturbados e por que estas dúvidas em vossos corações? Vede minhas mãos e pés; sou eu mesmo! Tocai-me e vede: um espírito não tem carne nem ossos como eu tenho’”. Existe uma crença que afirma que depois da morte aquilo que era uma criatura, cidadão, gente, se dissolve, se torna fragmento, poeira, pura matéria orgânica depositada na terra, no mar, ou no ar. Há outra crença que fala do corpo que se decompõe ficando o espírito da pessoa em algum lugar ou reencarnando em outros corpos. Diante de tais mentalidades e crenças, Lucas insiste por demais na presença real de Jesus, o Ressuscitado. Quem visita aos discípulos não é um espírito ou um fantasma. Quem os visita é a mesma pessoa que estivera com eles durante três anos. É o mesmo Jesus antes de sofrer a morte de cruz. Lucas nos catequiza, nos ensina, “combate” a idéia e crença de uma imortalidade desencarnada. Podemos muito bem parafrasear as palavras de Jesus aos discípulos: “Vede minhas mãos e pés; sou eu mesmo! Tocai-me e vede: um espírito ou fantasma não tem carne nem ossos como eu tenho. Tendes aqui alguma coisa para comer?”. São Lucas atesta que de fato lhe ofereceram um pedaço de peixe assado, e que Jesus tomou e comeu o peixe diante deles.
Claro que Jesus após a Ressurreição passou a ter um corpo diferenciado, chamado por São Paulo de “corpo glorioso”, corpo vivificado pelo Espírito. Falando de ressurreição da carne, do corpo, São Lucas quer nos transmitir a fé da Igreja, a fé de que somos salvos, redimidos, realmente (corpo e alma). Afirmar a ressurreição da carne é afirmar que eu, você, ressuscitados, não perdemos nosso “eu”, nossa identidade, nossa pessoa, nossa vida, nossos irmãos em Cristo. A salvação, a redenção, é eficaz, é verdadeira: Deus não perde suas criaturas e sua criação. Daí que o corpo sofre redenção também, se torna glorioso. “... o vosso corpo é o templo do Espírito Santo” (1Cor 6, 19).
- “Vede minhas mãos e pés; sou eu mesmo! Tocai-me” (v. 39). Não basta só falar, urge atitude! O Vitorioso sobre a morte traz marcas: mãos e pés feridos. O Senhor nos convidando a olhar suas mãos e pés deseja que consideremos a verdade de que Ele é amor por nós, é ferido de amor por nós. Marcas ou feridas que venceram a morte, pois o amor é mais forte do que o ódio, a luz mais do que as trevas, o perdão mais do que o rancor, a esperança mais do que o desespero, o bem mais do que o mal, a fidelidade mais do que o pecado. Importa perseverar nessas marcas. “Tocai-me”, disse Jesus. Grande convite! Quem tocar naquelas feridas e marcas conhecerá o abismo amoroso do Altíssimo Deus, partilhará da sua intimidade e de seu destino, padecerá das mesmas feridas e marcas e dirá como Tomé: “Meu Senhor e meu Deus!”. E quem não quiser ver mãos e pés do Cristo e nem tocá-lo? Como fica? Certamente verá e tocará a si mesmo, a alguma coisa, algumas pessoas e tais realidades serão o seu “Deus e o seu Senhor”.
- Ainda sobre as mãos e os pés marcados pelas ações que aliviaram tantas dores (A mulher que sofria por 12 anos de hemorragia, a mulher pega em flagrante adultério, o paralítico, o cego de nascença, Lázaro que já fedia, a multidão faminta e sem rumo e sentido na vida, etc.). Jesus nos diria: “Vede minhas mãos e meus pés; tocai-me”: deixai-vos conduzir por eles (mãos e pés), pois eles vos levarão, vos levarão ao mundo do Espírito do Ressuscitado, e vós sereis ressuscitados também, tereis a Vida que há entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo”. Os pés e mãos de Jesus nos podem levar a conhecer (“tocai-me”, pois tocar é conhecer) a Vida que se faz presente quando nossos pés e mãos se dirigem ao outro irmão que precisa de apoio, presença, atenção e companhia. Não foi por acaso que São Francisco disse que o amargo (encontrar leprosos) tinha se tornado doce.
“Ver e tocar”. Nossos sentidos se deixam levar: para onde estão sendo levados ou para onde estamos sendo levados? Alguém até diz que estamos sendo roubados, nossas almas estão sendo roubadas. Para onde estará sendo levada aquela criancinha que não mais recebe o olhar da mãe e não mais olha para ela, pois olha e é “olhado” quase sempre pelo “celular”? E o que dizer das “smart tv” que nos dominam com suas imagens espetaculares e maravilhosas acompanhadas com sonoridade toda envolvente e dominadora? Quem nos está levando e para onde? Diante de tudo isso o Evangelho nos convida a olhar mãos e pés reais e feridos, a tocar no Senhor, comer do seu Pão. É convite a adentrar em outro mundo, o mundo real da vida, das pessoas, dos olhares suplicantes ou de simpatia, o mundo do comer juntos, da partilha de vida, da confiança recíproca, do debruçar humano junto aos enfermos e em precisão de uma mão, de um olhar, de um alívio, de uma compreensão.
“Somos o que comemos”, diz o provérbio, como se o alimento que ingerimos tivesse o poder de “manipular” nossa disposição ou não, nossa saúde ou nossa enfermidade, nossa força ou fraqueza mental. Assim podemos dizer também que pautaremos nossa vida de acordo com o que vemos e tocamos, pois, não tem jeito, nossos sentidos são levados, atraídos.
- “Deus escreve sempre certo, porém na sua linguagem”, e, assim, por vezes, não conseguimos ler, entender os caminhos do Senhor. Faz bem e é reconfortador entender a nossa própria historia, o fio que ouro que explica tudo e todos que aconteceram em nossas vidas. Precisamos de um significado, um porquê! O Senhor ressurge em nós e nós ressurgimos, nos erguemos quando a luz de um sentido maior desponta em nosso horizonte. Não é o nada, nem o absurdo ou o acaso que nos dominam, pois a Luz do Ressuscitado tira de cada situação uma maravilha maior. Tendo descoberto tudo isso só nos resta “passar adiante”: Então Jesus abriu-lhes a inteligência para compreenderem as Escrituras, e lhes disse: ‘Assim estava escrito que o Cristo haveria de sofrer e ao terceiro dia ressuscitar dos mortos e, começando por Jerusalém, em seu nome seria pregada a todas as nações a conversão para o perdão dos pecados. Vós sois testemunhas disso’”.