Tamanho do Texto:
A+
A-

Homilia do III Domingo da Quaresma / Frei João Santiago

Publicado por Frei João de Araújo Santiago | 24/03/2019 - 07:07

III Domingo da Quaresma  (Lucas 13, 1-9)

Comerão do fruto dos seus erros e se saciarão com seus planos”: cada um sofrerá as consequências dos seus atos (Prov 1, 31).

A primeira leitura deste domingo (Ex 3, 1-8ª. 13-15) nos traz algo extraordinariamente belo, o encontro entre Moisés e Javé, que se mostra na sarça ardente (é uma planta espinhosa da família das fabáceas, gênero Acácia). Javé adverte, avisa, exorta: “Moisés, Moisés ... Não te aproximes! Tira as sandálias dos pés porque o lugar onde estás é terra santa”.  As sandálias eram confeccionadas de couro, e, o couro, mesmo tendo sido eliminado dele escórias de carne e nervos, e até depois de curtido, não deixa de ser resto cadavérico, presença de morte. Aqui entendemos porquê Javé pede a Moisés de tirar as sandálias. Significado: Javé é Santo, é outro, não se corrompe, não se compactua com nossos crimes, mentiras, falsidades, enganos, roubos, adultérios, etc.

- “1.Neste mesmo tempo, contavam alguns o que tinha acontecido a certos galileus, cujo sangue Pilatos misturara com os seus sacrifícios. 2.Jesus toma a palavra e lhes pergunta: ‘Pensais vós que esses galileus foram maiores pecadores do que todos os outros galileus, por terem sido tratados desse modo? 3.Não, digo-vos. Mas se não vos arrependerdes, perecereis todos do mesmo modo”.

Pelo o que aconteceu àqueles galileus podemos imaginar o quanto nefando terá aparecido aos piedosos judeus o crime de Pilatos: misturar sangue de pessoas assassinadas por ele ao sacrifício ritual oferecido a Javé. Se um simples par de sandálias de couro é considerado impuro, quanto mais impuro será o sangue de várias pessoas assassinadas: é um pecado abominável misturar uma oferenda a Javé com o fruto (sangue) de um crime. Os judeus se sentiram ultrajados e viram a religião escarnecida por aquele pagão romano chamado Pilatos. Contam o fato para Jesus, esperando que Jesus fique revoltado e reaja (quem sabe organizando uma rebelião), mas Jesus sabe o que há dentro do homem, e não veio para passar um paliativo, mas um remédio de verdade: não basta fazer uma rebelião, trocar a liderança, trocar de governo, e continuar a roda de violência e mentira de governos. Não basta mudar as lideranças se o esquema corrupto é o mesmo. Por isso, o conselho é: “... se não vos arrependerdes, perecereis todos do mesmo modo. De fato, não se converteram e no ano setenta da era cristã o general Tito entrou em Jerusalém e acabou com tudo e todos.

Aqueles galileus massacrados não eram nem piores nem melhores do que os sobreviventes. Jesus põe em evidência a raiz do mal. A raiz do mal é a falta de conversão, não são os romanos e nem Pilatos. Infelizmente, aqueles galileus rebeldes que afrontaram o poder de Pilatos queriam aquilo que os romanos e Pilatos queriam e por isso entraram em conflito. De fato, queriam o poder, o domínio, riquezas, violência, importância. Na lógica da conversão a Deus o que conta é ser filho do Pai, irmão dos demais e a partilha dos bens. Tal lógica nem os romanos e nem os rebeldes galileus possuíam.

Havia um homem que caminhava com dois alforjes: um diante de si, cheia dos defeitos dos outros, e a outra atrás de si, contendo os próprios defeitos. Claro que ele caminhava (“levava a vida”) olhando somente o alforje diante de si, isto é, olhando somente os defeitos alheios, e esquecia os seus. Este homem, planejando eliminar os males da vida, pensou de eliminar a sacola da frente e esqueceu aquela que carregava nas costas. Em outras palavras: tendemos a ver somente os males do outro, e, assim, o mal ou o problema será sempre “o outro”. Ora, na verdade, o mal presente na história dos homens e causado por estes tem tudo a ver com a ambição e cobiça em possuir, ter e dominar. Jesus nos ensina que o mal não é o outro, é o modo de viver de quase todos nós que vivemos dominados por um egoísmo (“eu sou o centro de tudo”) que mata, deleta e afomeia os demais.  Jamais eliminaremos o mal presente na história e em nossas relações (familiares, comunitárias e entre nações) enquanto amamos as mesmas coisas que ama o nosso opositor ou inimigo: estaremos sempre brigando pelas mesmas coisas, pois, no fundo, somos iguais na busca pela própria justiça, pelo poder e posses.

Então... diante daquela carnificina e sacrilégio cometidos por Pilatos, diante do mal presente, Jesus nos ajuda a entender que devemos, sim, mudar nosso sistema de vida, passar a entender melhor o que é viver, a dar-se conta do quanto é necessário a conversão para não haver malquerença, destruição, mortes, mágoas, ódios, sede de vingança, perseguição... Se não nos convertemos nos esganaremos reciprocamente. Posso reclamar e criticar os péssimos políticos, por exemplo, e, ao mesmo tempo, me manter em pecado com minhas ações. Levando uma vida pecaminosa (A concupiscência da carne, a cobiça dos olhos e a ostentação dos bens ou soberba da vida), no fundo, alimento a manutenção da maldade que eu mesmo critico. Jesus nos solicitar a atingir o mal pela raiz, a nos converter.

 

- “4.Ou cuidais que aqueles dezoito homens, sobre os quais caiu a torre de Siloé e os matou, foram mais culpados do que todos os demais habitantes de Jerusalém? 5.Não, digo-vos. Mas se não vos arrependerdes, perecereis todos do mesmo modo’. Desastre na Torre de Siloé. Morrem dezoito de família. Castigo dos Céus? Jesus diz: “Não!”. Acidentes fazem parte desse nosso mundo natural e humano. Jesus só nos adverte de não morrermos sem antes experimentarmos a conversão (deixar de fazer o mal e praticar o bem) e a grande confiança no Pai (“Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito!”).

Perecer, iremos! Depende de que maneira. Perecer de mero acaso, de mera fatalidade ou morrer como oportunidade de entregar-se a quem se ama? Importa viver convertidos. Podemos afirmar que as mortes devido à queda da torre de Siloé foram fatalidades. Neste sentido, podemos afirmar que a morte é um “acontecimento que acontece como e quando acontece”. O mal maior não está nesta “imperfeição” da criação na qual acidentes e fatalidades acontecem. O mal maior está no pecado que torna possível que a morte apavore e maltrate o humano (“O aguilhão da morte é o pecado”, diz São Paulo). A morte, portanto, fere porque há o pecado, e se não houvesse o pecado a morte seria vivida como novo nascimento e um retorno ao doce lar, não um horror. Por isso, Jesus disse: “... se não vos arrependerdes, perecereis todos do mesmo modo”: perecereis afrontando a morte como uma desgraça.

As tragédias naturais e os acidentes de percurso devem nos fazer pensar e decidir. É verdade que temos boas intenções e bons valores. Empenhamos-nos para que nossos filhos tenham boas oportunidades na vida, zelamos pela nossa saúde, emprego e sucessos. Tudo isso é louvável. Ao mesmo tempo, porém, o peso do real deve se impor e não ser esquecido, isto é: a vida é breve e precária. Trata-se de não esquecer a fragilidade, de encontrar o sentido maior da vida e de dar o justo às coisas (“Ensina-nos, ó Senhor, a contar os nossos dias” – Sl 90, 12). Infelizmente, não sabemos dar o justo valor às coisas, isto é, nos gastamos, nos preocupamos de forma obsessiva por coisas, cargos, situações que passam como as folhas que secam, e, ao mesmo tempo, não damos a mínima importância a valores perenes, tais como: nossa vida com Deus, a solidariedade e a compaixão, o amor e a justiça, a verdade e a honestidade, a família e a comunidade. E quando assistimos ou ficamos sabendo de eventos trágicos ou acidentes, tendemos somente a querer saber dos detalhes, das últimas notícias sobre o acontecido, sendo levado por mera curiosidade, evitando a todo custo a tomada de consciência que pode nos levar a avaliar nossa conduta, a rever como estamos pautando o nosso viver e se perguntar sobre o que nos ensina e quais as advertências que este ou aquele evento chocante nos trazem.

- “6.Disse-lhes também esta comparação: ‘Um homem havia plantado uma figueira na sua vinha, e, indo buscar fruto, não o achou. 7.Disse ao viticultor’: ‘Eis que três anos há que venho procurando fruto nesta figueira e não o acho. Corta-a; para que ainda ocupa inutilmente o terreno?’. 8.‘Mas o viticultor respondeu’: ‘Senhor, deixa-a ainda este ano; eu lhe cavarei em redor e lhe deitarei adubo. 9.Talvez depois disso dê frutos. Caso contrário, mandarás cortá-la’”.

Enquanto nas parábolas da vinha é o comunitário que está em causa, nesta parábola da figueira, sou eu que estou em causa. Nosso Senhor nos fala de um prazo. Isso... Precisamos de um prazo. A vida vai nos ensinando, vamos aprendendo com as quedas e importa gerar e produzir frutos, dons: frutos de amor a Deus, de justiça, compaixão, concórdia, solidariedade, alegria, paz, esperança, de lavar os pés cansados do irmão. O viticultor é Jesus que corrige aquela concepção de um “Deus” implacável e justiceiro que não dá chance nenhuma, que não espera. O viticultor aduba a terra, o Senhor vem ao nosso encontro com suas palavras e trabalha a fim de que os frutos, os figos, surjam. Como é bom o figo! Figo é símbolo de paz, de serenidade, de doçura, de encontro com os amigos que se encontram para degustar o doce da vida. Demos frutos, demos e geremos contentamento em nosso ambiente. Coisa feia é gerar fastígio ao nosso redor. Na vida e nos seus percalços Deus vai nos solicitando com gemidos inefáveis para produzirmos frutos.... Ao mesmo tempo a Palavra nos adverte: o prazo, como todo prazo, termina. Será bom termos feitos de nós um belo fruto; será – no mínimo – lastimoso termos feitos de nós um fruto mais ou menos murcho. 

Sobre o autor
Frei João de Araújo Santiago

Frade Capuchinho, da Província Nossa Senhora do Carmo. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Mestre em Teologia Espiritual. Tem longa experiência como professor, seja no Brasil, como na África, quando esteve como missionário. Por vários anos foi formador seja no Postulantado, como no Pós Noviciado de Filosofia. Atualmente mora em Açailândia-MA. Já escreveu vários livros e muitos artigos.