Homilia do III Domingo da Quaresma / Frei João Santiago
III Domingo da Quaresma (Lucas 13, 1-9)
“Comerão do fruto dos seus erros e se saciarão com seus planos”: cada um sofrerá as consequências dos seus atos (Prov 1, 31).
A primeira leitura deste domingo (Ex 3, 1-8ª. 13-15) nos traz algo extraordinariamente belo, o encontro entre Moisés e Javé, que se mostra na sarça ardente (é uma planta espinhosa da família das fabáceas, gênero Acácia). Javé adverte, avisa, exorta: “Moisés, Moisés ... Não te aproximes! Tira as sandálias dos pés porque o lugar onde estás é terra santa”. As sandálias eram confeccionadas de couro, e, o couro, mesmo tendo sido eliminado dele escórias de carne e nervos, e até depois de curtido, não deixa de ser resto cadavérico, presença de morte. Aqui entendemos porquê Javé pede a Moisés de tirar as sandálias. Significado: Javé é Santo, é outro, não se corrompe, não se compactua com nossos crimes, mentiras, falsidades, enganos, roubos, adultérios, etc.
- “1.Neste mesmo tempo, contavam alguns o que tinha acontecido a certos galileus, cujo sangue Pilatos misturara com os seus sacrifícios. 2.Jesus toma a palavra e lhes pergunta: ‘Pensais vós que esses galileus foram maiores pecadores do que todos os outros galileus, por terem sido tratados desse modo? 3.Não, digo-vos. Mas se não vos arrependerdes, perecereis todos do mesmo modo”.
Pelo o que aconteceu àqueles galileus podemos imaginar o quanto nefando terá aparecido aos piedosos judeus o crime de Pilatos: misturar sangue de pessoas assassinadas por ele ao sacrifício ritual oferecido a Javé. Se um simples par de sandálias de couro é considerado impuro, quanto mais impuro será o sangue de várias pessoas assassinadas: é um pecado abominável misturar uma oferenda a Javé com o fruto (sangue) de um crime. Os judeus se sentiram ultrajados e viram a religião escarnecida por aquele pagão romano chamado Pilatos. Contam o fato para Jesus, esperando que Jesus fique revoltado e reaja (quem sabe organizando uma rebelião), mas Jesus sabe o que há dentro do homem, e não veio para passar um paliativo, mas um remédio de verdade: não basta fazer uma rebelião, trocar a liderança, trocar de governo, e continuar a roda de violência e mentira de governos. Não basta mudar as lideranças se o esquema corrupto é o mesmo. Por isso, o conselho é: “... se não vos arrependerdes, perecereis todos do mesmo modo”. De fato, não se converteram e no ano setenta da era cristã o general Tito entrou em Jerusalém e acabou com tudo e todos.
Aqueles galileus massacrados não eram nem piores nem melhores do que os sobreviventes. Jesus põe em evidência a raiz do mal. A raiz do mal é a falta de conversão, não são os romanos e nem Pilatos. Infelizmente, aqueles galileus rebeldes que afrontaram o poder de Pilatos queriam aquilo que os romanos e Pilatos queriam e por isso entraram em conflito. De fato, queriam o poder, o domínio, riquezas, violência, importância. Na lógica da conversão a Deus o que conta é ser filho do Pai, irmão dos demais e a partilha dos bens. Tal lógica nem os romanos e nem os rebeldes galileus possuíam.
Havia um homem que caminhava com dois alforjes: um diante de si, cheia dos defeitos dos outros, e a outra atrás de si, contendo os próprios defeitos. Claro que ele caminhava (“levava a vida”) olhando somente o alforje diante de si, isto é, olhando somente os defeitos alheios, e esquecia os seus. Este homem, planejando eliminar os males da vida, pensou de eliminar a sacola da frente e esqueceu aquela que carregava nas costas. Em outras palavras: tendemos a ver somente os males do outro, e, assim, o mal ou o problema será sempre “o outro”. Ora, na verdade, o mal presente na história dos homens e causado por estes tem tudo a ver com a ambição e cobiça em possuir, ter e dominar. Jesus nos ensina que o mal não é o outro, é o modo de viver de quase todos nós que vivemos dominados por um egoísmo (“eu sou o centro de tudo”) que mata, deleta e afomeia os demais. Jamais eliminaremos o mal presente na história e em nossas relações (familiares, comunitárias e entre nações) enquanto amamos as mesmas coisas que ama o nosso opositor ou inimigo: estaremos sempre brigando pelas mesmas coisas, pois, no fundo, somos iguais na busca pela própria justiça, pelo poder e posses.
Então... diante daquela carnificina e sacrilégio cometidos por Pilatos, diante do mal presente, Jesus nos ajuda a entender que devemos, sim, mudar nosso sistema de vida, passar a entender melhor o que é viver, a dar-se conta do quanto é necessário a conversão para não haver malquerença, destruição, mortes, mágoas, ódios, sede de vingança, perseguição... Se não nos convertemos nos esganaremos reciprocamente. Posso reclamar e criticar os péssimos políticos, por exemplo, e, ao mesmo tempo, me manter em pecado com minhas ações. Levando uma vida pecaminosa (A concupiscência da carne, a cobiça dos olhos e a ostentação dos bens ou soberba da vida), no fundo, alimento a manutenção da maldade que eu mesmo critico. Jesus nos solicitar a atingir o mal pela raiz, a nos converter.
- “4.Ou cuidais que aqueles dezoito homens, sobre os quais caiu a torre de Siloé e os matou, foram mais culpados do que todos os demais habitantes de Jerusalém? 5.Não, digo-vos. Mas se não vos arrependerdes, perecereis todos do mesmo modo’. Desastre na Torre de Siloé. Morrem dezoito de família. Castigo dos Céus? Jesus diz: “Não!”. Acidentes fazem parte desse nosso mundo natural e humano. Jesus só nos adverte de não morrermos sem antes experimentarmos a conversão (deixar de fazer o mal e praticar o bem) e a grande confiança no Pai (“Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito!”).
Perecer, iremos! Depende de que maneira. Perecer de mero acaso, de mera fatalidade ou morrer como oportunidade de entregar-se a quem se ama? Importa viver convertidos. Podemos afirmar que as mortes devido à queda da torre de Siloé foram fatalidades. Neste sentido, podemos afirmar que a morte é um “acontecimento que acontece como e quando acontece”. O mal maior não está nesta “imperfeição” da criação na qual acidentes e fatalidades acontecem. O mal maior está no pecado que torna possível que a morte apavore e maltrate o humano (“O aguilhão da morte é o pecado”, diz São Paulo). A morte, portanto, fere porque há o pecado, e se não houvesse o pecado a morte seria vivida como novo nascimento e um retorno ao doce lar, não um horror. Por isso, Jesus disse: “... se não vos arrependerdes, perecereis todos do mesmo modo”: perecereis afrontando a morte como uma desgraça.
As tragédias naturais e os acidentes de percurso devem nos fazer pensar e decidir. É verdade que temos boas intenções e bons valores. Empenhamos-nos para que nossos filhos tenham boas oportunidades na vida, zelamos pela nossa saúde, emprego e sucessos. Tudo isso é louvável. Ao mesmo tempo, porém, o peso do real deve se impor e não ser esquecido, isto é: a vida é breve e precária. Trata-se de não esquecer a fragilidade, de encontrar o sentido maior da vida e de dar o justo às coisas (“Ensina-nos, ó Senhor, a contar os nossos dias” – Sl 90, 12). Infelizmente, não sabemos dar o justo valor às coisas, isto é, nos gastamos, nos preocupamos de forma obsessiva por coisas, cargos, situações que passam como as folhas que secam, e, ao mesmo tempo, não damos a mínima importância a valores perenes, tais como: nossa vida com Deus, a solidariedade e a compaixão, o amor e a justiça, a verdade e a honestidade, a família e a comunidade. E quando assistimos ou ficamos sabendo de eventos trágicos ou acidentes, tendemos somente a querer saber dos detalhes, das últimas notícias sobre o acontecido, sendo levado por mera curiosidade, evitando a todo custo a tomada de consciência que pode nos levar a avaliar nossa conduta, a rever como estamos pautando o nosso viver e se perguntar sobre o que nos ensina e quais as advertências que este ou aquele evento chocante nos trazem.
- “6.Disse-lhes também esta comparação: ‘Um homem havia plantado uma figueira na sua vinha, e, indo buscar fruto, não o achou. 7.Disse ao viticultor’: ‘Eis que três anos há que venho procurando fruto nesta figueira e não o acho. Corta-a; para que ainda ocupa inutilmente o terreno?’. 8.‘Mas o viticultor respondeu’: ‘Senhor, deixa-a ainda este ano; eu lhe cavarei em redor e lhe deitarei adubo. 9.Talvez depois disso dê frutos. Caso contrário, mandarás cortá-la’”.
Enquanto nas parábolas da vinha é o comunitário que está em causa, nesta parábola da figueira, sou eu que estou em causa. Nosso Senhor nos fala de um prazo. Isso... Precisamos de um prazo. A vida vai nos ensinando, vamos aprendendo com as quedas e importa gerar e produzir frutos, dons: frutos de amor a Deus, de justiça, compaixão, concórdia, solidariedade, alegria, paz, esperança, de lavar os pés cansados do irmão. O viticultor é Jesus que corrige aquela concepção de um “Deus” implacável e justiceiro que não dá chance nenhuma, que não espera. O viticultor aduba a terra, o Senhor vem ao nosso encontro com suas palavras e trabalha a fim de que os frutos, os figos, surjam. Como é bom o figo! Figo é símbolo de paz, de serenidade, de doçura, de encontro com os amigos que se encontram para degustar o doce da vida. Demos frutos, demos e geremos contentamento em nosso ambiente. Coisa feia é gerar fastígio ao nosso redor. Na vida e nos seus percalços Deus vai nos solicitando com gemidos inefáveis para produzirmos frutos.... Ao mesmo tempo a Palavra nos adverte: o prazo, como todo prazo, termina. Será bom termos feitos de nós um belo fruto; será – no mínimo – lastimoso termos feitos de nós um fruto mais ou menos murcho.