Homilia do IV Domingo da Quaresma / Frei João Santiago
IV Dom Quaresma (João 3, 14-21)
De qual veneno mortal nos cura a Cruz?
"Como Moisés levantou a serpente no deserto, assim deve ser levantado o Filho do Homem, para que todo homem que nele crer tenha a vida eterna. Com efeito, de tal modo Deus amou o mundo, que lhe deu seu Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna ...”
É preciso nascer novamente, do alto! Não é saudável simplesmente ir vivendo de qualquer maneira. Parece até que vivemos fugindo ou nos defendendo dos outros, de nós mesmos e da própria Origem (Deus). Parece até que vivemos atacando os demais, a nós mesmos e ao próprio Senhor. É preciso nascer de novo! A serpente de bronze no deserto curou aos hebreus do veneno mortal. De qual veneno mortal nos cura a Cruz? O Filho de Deus elevado no alto da cruz nos cura do veneno que empesta, estraga, envenena a nossa vida. Vida envenenada, vida estragada: vida que não vive, vida que carrega culpa e é explorada, vida que odeia e inveja, vida desesperada e que se embriaga, vida em tormentas e que se fanatiza, vida em vícios e que se apaga, vida em carências e que usa e abusa, vida no ter e poder, vida que esmaga, oprime, suborna e explora, vida que....
A cura pela raiz. O Pai Eterno, sem reservas e sem a mínima desconfiança, se oferta, se entrega ao Filho, gera o Filho. O Filho por sua vez aceita, acata e acolhe totalmente o Pai. E acolhe o Pai Eterno sem nenhuma reserva e sem a mínima desconfiança. Reina entre Eles o amor, isto é, o Espírito Santo. Lembro-me de uma vez na sacristia. Um casal veio com sua filha pedir uma benção, pois a mocinha (11 anos) deveria fazer uma cirurgia muito delicada, uma intervenção na região craniana. Olhei para o olhar daquela criança. Não havia a mínima expressão de ansiedade, de medo ou coisa parecida. Ela, ali, entre pai e mãe, se sentia assim: entre pai e mãe, totalmente amada e para ela só havia aquilo, isto é, um amor real daquelas duas pessoas que a trouxeram ao mundo. É verdade que havia a conversa que ela andaria em um hospital, faria uma cirurgia, etc. Mas, diante daquele aconchego real e verdadeiro por parte do pai e mãe, toda aquela conversa pouco significava. Ter a certeza de ser amada fazia com que aquela mocinha se sentisse em paz, mesmo diante do perigo. Outro dia, caminhando pelas ruas do centro de uma cidade vi um bebê sendo levado nos braços pela mãe. O bebê dormia, completamente “largado e jogado” nos ombros da mãe. Enquanto a multidão parecia ansiosa por afazeres, preocupada com assaltos, atenta com o trânsito perigoso, o bebê só repousava..... Não foi por acaso que Jesus pediu-nos que contemplasse a criança como modelo do Reino (Das crianças é o Reino dos Céus; como criança é que se entra no Reino; os anjos das crianças veem sempre a face do Pai do Céu - cf. Mc 10, 13-16; Mt 18, 10). Contemplando e vivendo a Trindade Santa, contemplando e vivendo as experiências amorosas dos humanos, podemos concluir que a força do amor é real, é capaz de nos livrar dos venenos que tentam estragar nossas vidas.
- "Como Moisés levantou a serpente no deserto, assim deve ser levantado o Filho do Homem”.Levantado é o mesmo que dizer colocado no alto, na cruz. É também o mesmo que dizer “glorificado”. Então... Jesus quando crucificado mostrou a sua “glória”. Na cruz, o “peso” de Deus, sua glória, seu fulgor, seu brilho, sua majestade, sua potência, sua divindade e esplendor apareceram. No alto da cruz, o Senhor estava reinando, estava sendo ele mesmo em sua forma plena, pois estava amando, estava dando a vida (corpo e sangue) pela humanidade pecadora (o mundo). Jesus crucificado revela aquilo que Deus realmente é: amor que se dá, gera vida. Somos convidados a conhecer esta novidade: Jesus mostra sua potência maior quando crucificado, pois dando a vida pelos seus irmãos (que somos nós, pois somos filhos do Pai d´Ele), Jesus estava realizando o que lhe era (e é) mais próprio. Assim como é próprio de um rei, reinar; assim como é próprio de um leão ser carnívoro, assim também o momento alto da vida de Jesus foi a cruz. Foi seu maior sucesso, seu momento sublime, sua maior vontade, seu alimento, sua vida, seu sustento vital (“Meu alimento é fazer a vontade do Pai”, disse ele). Somos católicos! Professamos que Jesus de Nazaré revelou-nos o verdadeiro rosto de Deus. Ora, foi contemplando Jesus crucificado que chegamos, como Igreja, a dizer: “Deus é amor”, é oferta de si. O amor venceu, ressuscitou. A potência maior é fazer da vida uma oferta (ninguém tem maior amor, maior força e vida, que vence a morte, do que quem ama). E, assim, nos livramos do veneno que tenta empestar nossas vidas.
- “Com efeito, de tal modo Deus amou o mundo, que lhe deu seu Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna”. O Filho único se fez nosso irmão, tomou o nosso lugar na cruz. Naquele dia nos tornamos filhos de Deus, amados pelo Pai (que nos deu seu único Filho) e pelo Filho (que assumiu nossas dores). É como se Jesus nos dissesse no alto da cruz: “O Pai ama, me deu a vocês. Eu amo vocês, aceitei. Faço-me um de vocês. Seremos irmãos para sempre”. O desejo de estar conosco foi maior, maior do que os sofrimentos oriundos de tal decisão. Somos convidados a participar dessa ciranda de amor que há entre o Pai e o Filho no Espírito Santo. Somos convidados a respirar a condição de filhos que clamam: “E, porque sois filhos, Deus enviou aos vossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: Aba, Pai” (Gal 4, 6). Ter encontrado o Pai amoroso que o Filho nos deu a conhecer, nos faz filhos. É como filhos que nos livramos do veneno mortal que tenta devastar nossas vidas.
- Diante de toda essa narrativa, de todo esse espetáculo evangélico, somos provocados a acreditar, a crer, a aderir e a mergulhar de cabeça no quase inacreditável amor que Deus tem pelo homem, na paixão de Deus pelo homem. Mergulhando nesse oceano amoroso, contemplando a cruz, só nos resta aceitar “ser filhos”. Seremos livres do veneno mortal que estraga nossas vidas.
- “... todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna”. A vida eterna que posso já viver saboreando no meu dia-a-dia é simplesmente viver como filho (e não como revoltado contra a vida, a família, o bem, a entrega, o amor). Qual a marca do Filho que nos ensina a ser filho? O Filho conhece os segredos do Pai. O Filho repassa a outros tais segredos. O Filho é manso de coração, alivia aflições e fardos, e faz uma alma repousar. Aprendamos a ser filhos e viveremos como tais. Viveremos do mesmo amor que o Pai tem para com o seu único Filho. Por isso podemos dizer que asalvação de uma vida, da minha vida, é crer no amor. O amor é o pão da vida cotidiana. De que se viverá se não se vive de amor? Viverá certamente, melhor, sobreviverá de cinismo, de teimosia, de pirraça, de morte e de tristeza. Chico Buarque já cantava: “A gente vai levando....”. E sobreviveremos morrendo de egoísmo, de ódio, de violência, de agressão, de indiferença, de desconfiança, de traição, de suspeitas, de exploração, de abuso, de perversões, de vícios, de mentiras, de enganos. Mas isso não é tudo! Há outra opção possível.
- Há outra opção porque podemos viver de um pão melhor, de eucaristia. A vida não pode se resumir a um viver diante barricadas e trincheiras, sempre em defensivas e em medos. O anúncio que Jesus fez a Nicodemos é de que sou chamado a adentrar no mundo do Pai, do Filho e do Espírito Santo, mundo amoroso. Eis nossa origem verdadeira. “Naquele dia eu serei gente”.