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Homilia do IV Domingo do Tempo Comum - ano B / Frei João Santiago

Publicado por Frei João de Araújo Santiago | 27/01/2018 - 18:41

IV Domingo do Tempo Comum - ano B

Marcos 1, 21-28

".... Jesus entrou na sinagoga e pôs-se a ensinar. 22.Maravilhavam-se da sua doutrina, porque os ensinava como quem tem autoridade e não como os escribas. 23.Ora, na sinagoga deles achava-se um homem possesso de um espírito imundo, que gritou: 24."Que tens tu conosco, Jesus de Nazaré? Vieste perder-nos? Sei quem és: o Santo de Deus! 25.Mas Jesus intimou-o, dizendo: "Cala-te, sai deste homem!" 26.O espírito imundo agitou-o violentamente e, dando um grande grito, saiu. 27.Ficaram todos tão admirados, que perguntavam uns aos outros: "Que é isto? Eis um ensinamento novo, e feito com autoridade; além disso, ele manda até nos espíritos imundos e lhe obedecem!" 28.A sua fama divulgou-se logo por todos os arredores da Galiléia."

 Pontos de Meditação

-  A “Palavra” (verbo, ação de Deus) quando ouvida provoca resistências alucinantes ("Que tens tu conosco, Jesus de Nazaré? Vieste perder-nos?”). A Palavra, no entanto, também é capaz de vencer os nossos “nãos”, nossas resistências e paralisias à esta mesma Palavra (“Cala-te, sai deste homem!”).

O temor da luz e da verdade

- Não esqueçamos que o homem endemoniado estava participando muito bem daquele momento social e religioso. Isso quer dizer que podemos criar cumplicidades com nossos demônios interiores. De fato, ele parecia um homem religioso. Estranho - mas é verdade: podemos passar a viver “muito bem” e “em paz” e conciliar dentro de nós Deus e o Diabo. Rezamos e espraguejamos. Dizemos verdades e mentiras. Amamos e odiamos. Fazemos o bem a uns e o mal a outros. Ajudamos a uns e tiramos o alheio de outros. A Palavra forte de Jesus vem para destruir tal castelo de areia: “Que tens tu conosco, Jesus de Nazaré? Vieste perder-nos?”

 

“Eu não vim trazer espada, mas guerra”

- “.... achava-se um homem possesso de um espírito imundo”. Espírito imundo casa muito bem com tudo que cheira à morte, que separa o homem da vida comunitária e também de um verdadeiro culto a Deus.  Estando na sinagoga – lugar religioso – podemos pensar duas situações: ou o espírito imundo se encontra num lugar que não deveria estar ou a sinagoga se tornou imunda, se corrompeu, se tornou lugar de espírito imundo. O fato é que quando Jesus chega o mal aparece. De fato se diz que ele “gritou” raivosamente por ter sido descoberto e por se ver “perdente” diante da Palavra, presença e ação forte de Jesus.

 

“Seduziste-me Senhor, e eu me deixei seduzir numa luta desigual, dominaste-me, Senhor, e foi Tua a vitória ...” (Jer 20, 7).

- "Que tens tu conosco, Jesus de Nazaré? Vieste perder-nos?”. Por que o homem, que é só um, fala no plural? Será que são muitos demônios? Ou será que o homem e o demônios estão coligados? Tantos demônios podem habitar num ser humano. E o pior é que podemos engoli-los satisfatoriamente, prazerosamente. Tantos demônios: insolência, soberba, luxúria, preguiça, baixa-estima, agressividade em fatos e palavras, rancor, mentiras, corrupção, homicídio em fatos e pensamentos, vingança, roubalheira, desonestidade, maquinações, tramoias, fofocas, difamações, carreirismo....

“Vieste perder-nos?”, grita o endemoniado. Por que será que resistimos tanto? Parece até que nos identificamos com o mal ou com males que habitam em nós. Parece até que imaginamos que deixando situações desonestas (seja no campo moral, familiar, social) estaremos perdidos, sem saber como viver a partir de então. O Senhor com sua Palavra destrói somente o mal que possa estar em nós, jamais destrói a nós mesmos. Cabe a cada um a decisão: viver mascarado e associado aos demônios internos ou descobrir nossa verdadeira face e identidade. Não sejamos de cabeça dura e nem de coração de pedra!!!

Quem me domina? Como saber? Quem rouba meu tempo, preocupações, pensamentos, juízos, sentimentos e afetos? Outro dia vi um noivo enciumado que disse não ser problemas fazer 600 km para dar uns murros na cara do rapaz que elogiara sua noiva.

 

“...aquele que crê em mim fará obras maiores do que as que faço”

- “Cala-te, e sai desse homem”. Jesus cala o demônio, deixa-o “murcho”. Para quê? Para que o homem liberto e livre apareça, se expresse, faça sua vida, caminho para o seu destino maior. O homem é filho de Deus e não pode ser reduzido a mera morada de demônios. Que sejamos conduzidos pelo Espírito de Deus e tenhamos cuidado quando outros tentam falar em nós. Tantos líderes (religiosos, psicológicos, afetivos, políticos) tentam conduzir vidas. Já vi casais separados porque a mulher tirou dinheiro do marido para ofertar na igreja. Já ouvi dizer que para ter saúde precisa-se que mate-se alguém. Não é novidade nenhuma que as novelas e artistas indicam modas que as doces ovelhas (povo) as seguem assim tão facilmente sem nenhum juízo crítico.

O espírito imundo agitou-o violentamente e, dando um grande grito, saiu”. O mal não perde facilmente o seu “cliente”. A liberdade espiritual não é fácil. Não é fácil querer ser responsável, tomar decisão pelo bem e pelo Reino, assumir os compromissos com a família, com os estudos e com o trabalho. Por vezes podemos preferir a condição de escravos de espíritos maus, infelizmente. Ao mesmo tempo somos animados pela graça de Deus, pela sua Palavra que é mais forte: “... dando um grande grito, saiu”. Lembremos de São Francisco que se fez um combatente e venceu batalhas até ao ponto de dizer:  “o que era amargo tornou-se doce e o doce tornou-se  amargo”. A Palavra vem ao nosso encontro de muitas maneiras: tinha a águia que pensava ser galinha. Estava em torpor, embasbacada. Veio um vento forte e ela na reação ao vento descobriu ser águia. Saiu do torpor. Só um vendaval, uma procela instaurada pode desfazer o torpor e acordar o embasbacado.

Muitas são as Palavras de Jesus para se sair do torpor. Escolhemos uma: “Vereis o céu aberto ....”; e preferimos outra: “Em verdade, em verdade vos digo: aquele que crê em mim fará também as obras que eu faço, e fará ainda maiores do que estas” (João). Ora, Jesus “ressuscitou” Lázaro, um morto. Fazer algo mais do que isso?!  São Paulo nos ensina que é possível se sair do torpor: sendo escravos uns dos outros, isto é, amando (cf. Gálatas, 5, 13ss).

 

Concluindo

- Jesus, o leão da tribo de Judá, segundo São Marcos, é uma pessoa, a Palavra potente de Deus que entra, interfere e intervém em nosso íntimo e coração (centro das nossas decisões e escolhas) a fim de nos iluminar, tirar-nos da cegueira. Livrando o homem do demônio, Jesus, restitui o homem a si mesmo, tornando-o livre para que volte a fazer o bem, volte a amar como é amado pelo Criador. Sem a Palavra, sem a ação do Salvador sobre nós, passaremos por este mundo, mas passaremos como fantoches manipulados e manipuladores.

Maravilhavam-se da sua doutrina, porque os ensinava como quem tem autoridade e não como os escribas. Jesus e sua doutrina. Jesus e seu Evangelho (sua boa notícia). Não importa qual seja a situação, uma boa notícia. À Zaqueu disse: “Vou na tua casa”. Ao condenado, disse: “Hoje estarás no paraíso”. À mulher pecadora: “Não te condeno. Vá em paz e não peques mais”. Para além de meras regras religiosas e litúrgicas, que são necessárias, todo ser humano que ser justificado, salvo, amado por Deus. Quer um sentido maior para viver. Por isso Jesus causava “maravilhas”, pois não reduzia a religião nem as pessoas, mas levava seja a fé, sejam as pessoas, a um horizonte maior: talvez estamos por demais intoxicados, entorpecidos e indiferentes em um horizonte por demais limitado de nossa contemporaneidade.  Quem vai nos tirar desse torpor, desse atolamento no narcisismo e nos bens deste mundo? Só a Beleza!  O Belo eleva o homem ao seu organismo interior e encaminha-o até ao Criador, tornando o homem mais expansivo de si, livre dos engodos de “bens-fetiches” (“Bens-fetiches”, isto é, substitutos compensatórios. Tais “bens” podem frear a expansão da pessoa. Aqui temos os apegos à cargos, à pessoas, à coisas e objetos, etc.). Deus é luz, é o Belo, é a Beleza. Quem ouvia a Jesus percebia a beleza escandalosa que  saia de seus lábios. E você, percebe?

Sobre o autor
Frei João de Araújo Santiago

Frade Capuchinho, da Província Nossa Senhora do Carmo. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Mestre em Teologia Espiritual. Tem longa experiência como professor, seja no Brasil, como na África, quando esteve como missionário. Por vários anos foi formador seja no Postulantado, como no Pós Noviciado de Filosofia. Atualmente mora em Açailândia-MA. Já escreveu vários livros e muitos artigos.