Homilia do V Domingo da Quaresma / Frei João Santiago
V Domingo da Quaresma (João 8, 1-11)
“Arrancarei de vós o coração de pedra e vos abençoarei com um coração de carne” (Ez 36, 26)
- “Os mestres da Lei e os fariseus trouxeram-lhe uma mulher surpreendida em adultério. .... Disseram a Jesus: ‘Na Lei, Moisés nos ordena apedrejar tais mulheres. Que dizes tu sobre isso’?” (vv. 3-5).
Se Jesus confirmasse o que diz a lei de Moisés, nada de novo estaria trazendo a esta nossa velha humanidade, e estaria contra a lei romana que previa só aos romanos executarem a pena capital. Se simplesmente se insurgisse contra a lei de Moisés, seria réu também ele, estaria contra a lei de Israel, contra o gosto popular que se orgulhava da Lei religiosa frente àquela lei romana, e estaria desautorizando o tribunal dos fariseus e escribas. Jesus, portanto, corria sérios riscos de ser condenado à lapidação por motivo de insubordinação às leis religiosas. Na verdade, Jesus era o verdadeiro imputado, era a Ele que tinham de mira. De fato, lemos no v. 6: “Perguntavam-lhe isso, a fim de pô-lo à prova e poderem acusá-lo”, e momentos depois a verdadeira intenção se faz mais clara: “... “pegaram então em pedras para lhas atirar. Jesus, porém, se ocultou e saiu do templo” (Jo 8, 5).
- “Mas Jesus inclinou-se e começou a escrever no chão com o dedo” (v. 6). Há quem veja tal atitude de Jesus como evocações do profeta Jeremias: “ ... todos aqueles que se apartam de mim serão escritos na poeira; porque abandonam o Senhor, a fonte das águas vivas” (Jr 17, 13); “Gravarei nele (Israel) a minha lei, hei de escrevê-la em seus corações. Eu serei o seu Deus e eles serão o meu povo” (Jr 31,33).
Mas podemos também tecer outra afirmação.
Fizeram a Jesus uma pergunta. Ele respondeu inclinando-se e escrevendo no chão com o dedo. Fez-se silêncio, fez-se uma pausa, Jesus não desafiou aqueles homens atiçando-lhes o ânimo, mas, inclinando-se fazia com que eles inclinassem o olhar para ele, e com a cabeça voltada para baixo eram convidados a olharem para dentro de si.
Estavam no templo, Jesus escreveu, com o dedo, sobre as pedras do pavimento do templo, o que lembrava o “dedo” de Deus que escreveu a “lei” sobre as pedras (“Pedras da Lei”). Para além da “lei” tem Aquele que a escreveu. Olhemos e consideremos para o Autor da “lei”, pois quem escreve é mais do que o escrito. Só podemos entender as Escrituras se conhecermos quem as escreveu, de quem eram aqueles dedos que as escreveram. Quem é Deus que escreveu as Escrituras tão cheias de leis que podemos nos perder em meio a elas? Deus é misericórdia e perdão, prefere a vida e não a morte. Inclinado e escrevendo com o dedo no chão, Jesus convidava aqueles homens a enxergarem “Alguém” para além das leis que punem o pecado, a enxergarem Aquele que perdoa os pecadores. A “lei” foi dada a favor do pecador, não para matá-lo, mas para que se converta e viva: “... a letra mata, mas o Espírito comunica a vida” (2Cor 3, 6).
Para nós cristãos o gesto de Jesus explicitamente nos revela que Ele é a nova “lei” e o verdadeiro intérprete das Sagradas Escrituras, conforme Ele mesmo no revelou: Amar o Senhor Deus e Amar o próximo resumem toda a Lei e os Profetas (cf. Mt 22, 37-40).
- “Visto que continuavam a interrogá-lo, ele se levantou e lhes disse: ‘Se algum de vocês estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar-lhe a pedra’. Inclinou-se novamente e continuou escrevendo no chão” (vv. 7-8).
Fez-se silêncio. Uma coisa é pensar e falar de acordo com um grupo ou uma multidão: cada um é apoiado pelos outros, deixando de pensar com a própria cabeça (“Maria-vai-com-as-outras”). Outra coisa é cada um voltar-se para si mesmo, para a própria consciência, saindo do grupo para entrar em si. Diante das palavras: “Se algum de vocês estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar-lhe a pedra", fez-se silêncio, cada um olhou para si e para a própria história de vida; cada um teve que dar a própria “resposta”: “lanço ou não lanço a pedra que tenho em minhas mãos?” Cada um foi chamado a responder por si. Não é sinal de maturidade pensar “os outros fazem assim, também eu o faço”. Você jogaria a pedra porque outros jogam? Jesus dizendo “Se algum de vocês estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar-lhe a pedra”, põe cada um diante da sua própria verdade, realidade e consciência. E cada um descobrirá que carrega em si pecados e males, e descobrirá que não possui somente um coração de pedra, mas que deseja também ser perdoado e compreendido (Quem bem julga a si mesmo não condena mais ninguém). Descobrem uma fonte de vida dentro deles que desmonta mãos armadas de morte; fonte que salva vidas. Aceitemos que todos somos pecadores. Eu, você, aquela pessoa conhecida e também aquela desconhecida tem a mesma dilaceração interior. Na dor, na busca de perdão e de redenção, na necessidade somos todos iguais. No silêncio, Jesus os convida a ver que por detrás de cada um há uma historia, fatos, uma pessoa com os seus sentimentos, com as suas dificuldades, com os seus problemas, com a sua dignidade. De fato, desistiram de condenar a mulher. Jesus conseguiu escrever algo de bom em seus corações.
- “Os que o ouviram foram saindo, um de cada vez, sentindo-se acusados pela sua própria consciência,começando com os mais velhos” (v. 9). Os mais velhos representam a sabedoria, eram os mais indicados na comunidade para julgarem algumas situações e são eles os que mais rapidamente entendem que certas leis não podem ser aplicadas “cegamente”, considerando somente a lei em si, mas que muitas vezes quem acusa também tem culpa (Quem bem julga a si mesmo não condena mais ninguém). Cabia aos idosos o dever de julgar e são eles os que se descobrem mais pecadores (A “justiça judaica” se descobriu injusta).
Primeiramente agem em grupo enquanto a sensação e os holofotes se dirigiam para aquela mulher.: “... trouxeram-lhe uma mulher ... Puseram-na no meio da multidão e disseram a Jesus ... Como eles insistissem ...”. Depois, cada um age como pessoa adulta e verdadeira: “... foram saindo, um de cada vez”. Não mais se reúnem em torno da mulher. A sensação e os holofotes não mais se dirigem para aquela mulher, mas cada um dirige o holofote para a própria consciência e vida. Um a um foram saindo. E foram para onde? Cada um foi para a própria vida, olhar mais a esposa, os filhos, o próprio trabalho, pedir perdão a Deus dos próprios pecados, ser mais verdadeiro, etc.
Onde há grupo humano, existe o esquema do “bode expiatório”. No esquema do “bode expiatório”, o mal precisa ser eliminado. Mas como ele se instaura ou é presente em toda pessoa, e como não podemos eliminar a todos e nem queremos ser eliminados, terminamos por escolher eliminar alguém para pagar por todos e assim satisfazer ao desejo de justiça e dá aquela sensação de que o mal foi eliminado e, assim, cada um se sente mais ou menos tranquilo na própria consciência sem jamais reconhecer o mal presente também em si próprio. Então, para tentar fazer as pazes com a minha consciência, elejo alguém ou um grupo que será o mal. Vejam-se os casos de linchamentos dentro das prisões quando um preso tenha sido condenado por infringir a lei Maria da Penha, por exemplo. Claro que os outros detentos não são inocentes, mas tentam apaziguar a própria consciência condenando um outro.
- “Então Jesus ergueu a face e perguntou-lhe: ‘Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?’ ‘Ninguém, Senhor’, disse ela. Declarou Jesus: ‘Eu também não te condeno. Agora vai e não peques mais’" (vv. 10-11).
Importa não fugir da consciência do pecado e do mal, mas entender que o reconhecimento do mal causado se torna lugar do acontecer do perdão. É fazendo experiência do perdão que experimentamos nosso Deus como amor incondicional: eu me vejo como pessoa amada infinitamente por Deus. Tal visão se torna minha verdade mais profunda tal como aconteceu com aquela mulher que deve ter dito a si mesma: “eu sou uma perdoada, amada por Deus, viverei para sempre como uma perdoada, amada”.
Sempre pensamos que o arrependimento vem primeiro e depois vem o perdão. Mas o verdadeiro arrependimento somente acontece diante do perdão: o Senhor nos ama por primeiro, está sempre convertido em nossa direção. O meu arrependimento nasce diante da grandeza do amor de Deus. Após Jesus manifestar sua grandeza, Pedro gritou: “Afasta-te de mim, sou pecador”.
Ela (a mulher) e Ele (Jesus): ela foi aquela que recebeu a Ele, a misericórdia, o amor gratuito de Deus. Podemos viver nesta essência: sou mísero diante da misericórdia, o resto passa e vai embora (“Jesus ficou sozinho, com a mulher diante dele”) e eu posso escolher ser mísero ou orgulhoso (o verdadeiro pecado).
“... vai e não peques mais”. O perdão nos faz livres. O perdão significa que sou aceito, sou querido, perdoado, sou homem novo. O perdão me faz conhecer de Quem é o dedo que escreve a “lei”. “Não peques mais” se torna uma promessa: amado, perdoado e livre, não condenado, eu viverei convertido para aquele que para mim, por primeiro, se converteu, se abaixou.
A mulher do Evangelho de hoje é símbolo de todo cristão que tem um novo coração refeito pelo Espírito Santo, sanado pelo perdão, que se torna uma esposa fiel.