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Homilia do V Domingo da Quaresma / Frei João Santiago

Publicado por Frei João de Araújo Santiago | 06/04/2019 - 11:24

V Domingo da Quaresma (João 8, 1-11)

“Arrancarei de vós o coração de pedra e vos abençoarei com um coração de carne” (Ez 36, 26)

- “Os mestres da Lei e os fariseus trouxeram-lhe uma mulher surpreendida em adultério. .... Disseram a Jesus: ‘Na Lei, Moisés nos ordena apedrejar tais mulheres. Que dizes tu sobre isso’?” (vv. 3-5).

Se Jesus confirmasse o que diz a lei de Moisés, nada de novo estaria trazendo a esta nossa velha humanidade, e estaria contra a lei romana que previa só aos romanos executarem a pena capital. Se simplesmente se insurgisse contra a lei de Moisés, seria réu também ele, estaria contra a lei de Israel, contra o gosto popular que se orgulhava da Lei religiosa frente àquela lei romana, e estaria desautorizando o tribunal dos fariseus e escribas. Jesus, portanto, corria sérios riscos de ser condenado à lapidação por motivo de insubordinação às leis religiosas. Na verdade, Jesus era o verdadeiro imputado, era a Ele que tinham de mira. De fato, lemos no v. 6: “Perguntavam-lhe isso, a fim de pô-lo à prova e poderem acusá-lo”, e momentos depois a verdadeira intenção se faz mais clara: “... “pegaram então em pedras para lhas atirar. Jesus, porém, se ocultou e saiu do templo” (Jo 8, 5). 

- “Mas Jesus inclinou-se e começou a escrever no chão com o dedo” (v. 6). Há quem veja tal atitude de Jesus como evocações do profeta Jeremias: “ ... todos aqueles que se apartam de mim serão escritos na poeira; porque abandonam o Senhor, a fonte das águas vivas” (Jr 17, 13);  “Gravarei nele (Israel) a minha lei, hei de escrevê-la em seus corações. Eu serei o seu Deus e eles serão o meu povo” (Jr 31,33).

Mas podemos também tecer outra afirmação.

Fizeram a Jesus uma pergunta. Ele respondeu inclinando-se e escrevendo no chão com o dedo. Fez-se silêncio, fez-se uma pausa, Jesus não desafiou aqueles homens atiçando-lhes o ânimo, mas, inclinando-se fazia com que eles inclinassem o olhar para ele, e com a cabeça voltada para baixo eram convidados a olharem para dentro de si.

Estavam no templo, Jesus escreveu, com o dedo, sobre as pedras do pavimento do templo, o que lembrava o “dedo” de Deus que escreveu a “lei” sobre as pedras (“Pedras da Lei”). Para além da “lei” tem Aquele que a escreveu. Olhemos e consideremos para o Autor da “lei”, pois quem escreve é mais do que o escrito. Só podemos entender as Escrituras se conhecermos quem as escreveu, de quem eram aqueles dedos que as escreveram. Quem é Deus que escreveu as Escrituras tão cheias de leis que podemos nos perder em meio a elas? Deus é misericórdia e perdão, prefere a vida e não a morte. Inclinado e escrevendo com o dedo no chão, Jesus convidava aqueles homens a enxergarem “Alguém” para além das leis que punem o pecado, a enxergarem Aquele que perdoa os pecadores. A “lei” foi dada a favor do pecador, não para matá-lo, mas para que se converta e viva: “... a letra mata, mas o Espírito comunica a vida” (2Cor 3, 6).

Para nós cristãos o gesto de Jesus explicitamente nos revela que Ele é a nova “lei” e o verdadeiro intérprete das Sagradas Escrituras, conforme Ele mesmo no revelou: Amar o Senhor Deus e Amar o próximo resumem toda a Lei e os Profetas (cf. Mt 22, 37-40).

- “Visto que continuavam a interrogá-lo, ele se levantou e lhes disse: ‘Se algum de vocês estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar-lhe a pedra’. Inclinou-se novamente e continuou escrevendo no chão” (vv. 7-8).

 Fez-se silêncio. Uma coisa é pensar e falar de acordo com um grupo ou uma multidão: cada um é apoiado pelos outros, deixando de pensar com a própria cabeça (“Maria-vai-com-as-outras”). Outra coisa é cada um voltar-se para si mesmo, para a própria consciência, saindo do grupo para entrar em si. Diante das palavras: “Se algum de vocês estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar-lhe a pedra", fez-se silêncio, cada um olhou para si e para a própria história de vida; cada um teve que dar a própria “resposta”: “lanço ou não lanço a pedra que tenho em minhas mãos?” Cada um foi chamado a responder por si. Não é sinal de maturidade pensar “os outros fazem assim, também eu o faço”. Você jogaria a pedra porque outros jogam? Jesus dizendo “Se algum de vocês estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar-lhe a pedra”, põe cada um diante da sua própria verdade, realidade e consciência. E cada um descobrirá que carrega em si pecados e males, e descobrirá que não possui somente um coração de pedra, mas que deseja também ser perdoado e compreendido (Quem bem julga a si mesmo não condena mais ninguém). Descobrem uma fonte de vida dentro deles que desmonta mãos armadas de morte; fonte que salva vidas. Aceitemos que todos somos pecadores. Eu, você, aquela pessoa conhecida e também aquela desconhecida tem a mesma dilaceração interior. Na dor, na busca de perdão e de redenção, na necessidade somos todos iguais. No silêncio, Jesus os convida a ver que por detrás de cada um há uma historia, fatos, uma pessoa com os seus sentimentos, com as suas dificuldades, com os seus problemas, com a sua dignidade. De fato, desistiram de condenar a mulher. Jesus conseguiu escrever algo de bom em seus corações.  

- “Os que o ouviram foram saindo, um de cada vez, sentindo-se acusados pela sua própria consciência,começando com os mais velhos” (v. 9). Os mais velhos representam a sabedoria, eram os mais indicados na comunidade para julgarem algumas situações e são eles os que mais rapidamente entendem que certas leis não podem ser aplicadas “cegamente”, considerando somente a lei em si, mas que muitas vezes quem acusa também tem culpa (Quem bem julga a si mesmo não condena mais ninguém). Cabia aos idosos o dever de julgar e são eles os que se descobrem mais pecadores (A “justiça judaica” se descobriu injusta).

Primeiramente agem em grupo enquanto a sensação e os holofotes se dirigiam para aquela mulher.: “... trou­xeram-lhe uma mulher ... Puseram-na no meio da multidão e disseram a Jesus ... Como eles insistissem ...”. Depois, cada um age como pessoa adulta e verdadeira: “... foram saindo, um de cada vez”. Não mais se reúnem em torno da mulher. A sensação e os holofotes não mais se dirigem para aquela mulher, mas cada um dirige o holofote para a própria consciência e vida. Um a um foram saindo. E foram para onde? Cada um foi para a própria vida, olhar mais a esposa, os filhos, o próprio trabalho, pedir perdão a Deus dos próprios pecados, ser mais verdadeiro, etc.

Onde há grupo humano, existe o esquema do “bode expiatório”.  No esquema do “bode expiatório”, o mal precisa ser eliminado. Mas como ele se instaura ou é presente em toda pessoa, e como não podemos eliminar a todos e nem queremos ser eliminados, terminamos por escolher eliminar alguém para pagar por todos e assim satisfazer ao desejo de justiça e dá aquela sensação de que o mal foi eliminado e, assim, cada um se sente mais ou menos tranquilo na própria consciência sem jamais reconhecer o mal presente também em si próprio. Então, para tentar fazer as pazes com a minha consciência, elejo alguém ou um grupo que será o mal. Vejam-se os casos de linchamentos dentro das prisões quando um preso tenha sido condenado por infringir a lei Maria da Penha, por exemplo. Claro que os outros detentos não são inocentes, mas tentam apaziguar a própria consciência condenando um outro.

- “Então Jesus ergueu a face e perguntou-lhe: ‘Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?’ ‘Ninguém, Senhor’, disse ela. Declarou Jesus: ‘Eu também não te condeno. Agora vai e não peques mais’" (vv. 10-11).

Importa não fugir da consciência do pecado e do mal, mas entender que o reconhecimento do mal causado se torna lugar do acontecer do perdão. É fazendo experiência do perdão que experimentamos nosso Deus como amor incondicional: eu me vejo como pessoa amada infinitamente por Deus. Tal visão se torna minha verdade mais profunda tal como aconteceu com aquela mulher que deve ter dito a si mesma: “eu sou uma perdoada, amada por Deus, viverei para sempre como uma perdoada, amada”.

Sempre pensamos que o arrependimento vem primeiro e depois vem o perdão. Mas o verdadeiro arrependimento somente acontece diante do perdão: o Senhor nos ama por primeiro, está sempre convertido em nossa direção. O meu arrependimento nasce diante da grandeza do amor de Deus. Após Jesus manifestar sua grandeza, Pedro gritou: “Afasta-te de mim, sou pecador”.

Ela (a mulher) e Ele (Jesus): ela foi aquela que recebeu a Ele, a misericórdia, o amor gratuito de Deus. Podemos viver nesta essência: sou mísero diante da misericórdia, o resto passa e vai embora (“Jesus ficou sozinho, com a mulher diante dele”) e eu posso escolher ser mísero ou orgulhoso (o verdadeiro pecado).

... vai e não peques mais”.  O perdão nos faz livres. O perdão significa que sou aceito, sou querido, perdoado, sou homem novo. O perdão me faz conhecer de Quem é o dedo que escreve a “lei”. “Não peques mais” se torna uma promessa: amado, perdoado e livre, não condenado, eu viverei convertido para aquele que para mim, por primeiro, se converteu, se abaixou.

A mulher do Evangelho de hoje é símbolo de todo cristão que tem um novo coração refeito pelo Espírito Santo, sanado pelo perdão, que se torna uma esposa fiel.

Sobre o autor
Frei João de Araújo Santiago

Frade Capuchinho, da Província Nossa Senhora do Carmo. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Mestre em Teologia Espiritual. Tem longa experiência como professor, seja no Brasil, como na África, quando esteve como missionário. Por vários anos foi formador seja no Postulantado, como no Pós Noviciado de Filosofia. Atualmente mora em Açailândia-MA. Já escreveu vários livros e muitos artigos.