Tamanho do Texto:
A+
A-

Homilia do VI Domingo do Tempo Comum - ano A - Frei João Santiago

Publicado por Frei João de Araújo Santiago | 15/02/2020 - 09:25

VI Domimgo do Tempo Comum - ano A

(Mateus 5, 17-37)

Certa feita Santo Agostinho se perguntou acerca de onde estaria a “cidade de Deus, a cidade do Bem”. Imaginou, primeiramente, que a “cidade de Deus” estaria somente entre nós, os cristãos, e que a “cidade dos homens ou do mal”, estaria fora de nós, entre os pagãos ou coisas assim. Os judeus também assim pensaram. Pensaram que a prática da Lei faria com que eles tivessem as promessas e que a Lei os profetas bastariam para fazer acontecer o Reino de Deus entre eles: O Messias dominará até os confins da terra. Seus adversários lamberão o pó. Todos os reis hão de adorá-lo (cf. Salmo 71 ou 72). Os judeus chegaram a pensar que cada Judeu teria 2.480 escravos (cf. Talmud), e que o trono de Davi estaria firme para sempre (cf. 2Samuel 7, 16).

Santo Agostinho, mais tarde, pensando melhor e meditando as Palavras de Jesus, “viu” que a “cidade de Deus” e a “cidade dos Homens” duelam dentro de cada coração, dentro de nós.

O Evangelho de hoje nos convida e desafia a construir o Reino tal como Jesus interpreta a “lei”. Diria que Mateus 5, 17-37 (O Evangelho de hoje) nos lança a um projeto de vida, a um projeto de penitência e conversão e nos revela que não basta eu me ater e me justificar porque estou dentro da legalidade, mas que eu faça atenção ao meu mundo interior e minhas intenções e faça atenção aos apelos dos rostos humanos que a mim se mostram no dia-a-dia.

Não julgueis que vim abolir a lei ou os profetas. Não vim para os abolir, mas sim para levá-los à perfeição. Pois em verdade vos digo: passará o céu e a terra, antes que desapareça um jota, um traço da lei (v. 17-18). Que Deus, o seu Reino, triunfará, Jesus não mostra nenhuma dúvida, mas, ao mesmo tempo, revela que falta algo na lei e nos profetas, e Ele veio nos ensinar (levar à perfeição).

- “Digo-vos, pois, se vossa justiça não for maior que a dos escribas e fariseus, não entrareis no Reino dos céus” (v. 20). A justiça do fariseu é aquela chamada também de formalismo. Apega-se a uma lei para se justificar e assim tranquilamente se é indiferente com as pessoas de carne e osso com as quais se convive. A outra pessoa não conta tanto. A justiça do fariseu é perigosa porque a pessoa termina ficando insensível e com o coração de pedra. Jesus muito combateu tal “justiça”. Ouvindo Mateus 25, 32ss somos chamados a adentrar em outra justiça que salva enquanto Jesus pede atitudes interiores, pede que o coração se torne sensível e de carne, deixando de ser endurecido. Aqui justiça é adentrar no rosto do outro.

- “Ouvistes o que foi dito aos antigos: ‘Não matarás, mas quem matar será castigado pelo juízo do tribunal’. Mas eu vos digo: ‘todo aquele que se irar contra seu irmão será castigado pelos juízes. Aquele que disser a seu irmão: Raca (vil, desprezível), será castigado pelo Grande Conselho. Aquele que lhe disser: Louco (excluído), será condenado ao fogo da Geena’” (vv. 21-22).

Não basta não matar, importa querer bem ao outro.

Todo ser humano, desde a sua concepção no ventre da mãe, é imagem de Deus, tem alta dignidade. Rebaixar, vilipendiar, desprezar, diminuir, humilhar o outro é gravíssimo, pois quem assim pratica está se instalando no lugar do Altíssimo, está vilipendiando a imagem do grande Deus. Podemos nos tranquilizar por não termos tirado a vida física de alguém, mas ao mesmo tempo nos permitimos espancar os pequenos, julgar e sentenciar os outros como desprezíveis, baixar a estima alheia, usar e abusar das pessoas, etc. Jesus, aqui, nos dá um grande “puxão de orelha” enquanto quer nos acordar para tal realidade: a vida pertence a Deus, o outro não está ao meu dispor, o outro não é um Zé-ninguém por desprezar, mas filho do Altíssimo.

“Ir para a Geena”. Geena era o lixão de Jerusalém. Tal lixão queimava de dia e noite exalando odores nauseabundos. Símbolo da perdição. O ensinamento é esse: quando eu elimino alguém, eu estou semeando algo para mim: estou me excluindo da ciranda da vida e aos poucos vou entrando em um estado de falta de vida, de alegria, de felicidade, de fé, de esperança e de caridade. Se o outro por mim é excluído e considerado desprezível, se apercebendo ou não, eu estarei me precipitando em uma “Geena de vida”.

Se estás, portanto, para fazer a tua oferta diante do altar e te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa lá a tua oferta diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com teu irmão; só então vem fazer a tua oferta” (vv. 23-24).

Talvez jamais venhamos a entender a revolução dessa passagem de Jesus. A coisa mais importante e sagrada para um piedoso judeu era fazer a oferta, o sacrifício no templo. Nada mais era tão importante, nem a própria vida. Jesus diz que há, sim, outra coisa tão importante quanto uma prática religiosa.

Hoje em dia, para o “mundão”, o mais importante tem a ver com o culto do corpo perfeito e sarado, com o mundo do sucesso a qualquer custo e prazeres de vários tipos, com o mundo econômico e financeiro. Para outros o mais importante pode ser a paz interior, a segurança, a saúde.

Quando falamos do mais importante, estamos falando de qual redenção nos faz viver.  No romance “Lolita”, o professor apaixonado pela moça (Lolita) mata o cidadão que tinha levado Lolita da vida dele. E antes de matá-lo diz: “Você roubou minha redenção”! Lolita era a sua redenção, a “coisa” mais importante de sua vida.

Pois é..... o nosso Salvador e Redentor nos ensina o caminho da redenção, do encontro com Deus, daquilo que deve se tornar o mais importante: “... vai primeiro reconciliar-te com teu irmão”.

Por vezes não temos nada contra ninguém, mas alguém tem algo contra nós. A justiça do fariseu diria: “Não é problema meu”. Mas, a justiça cristã diz: de alguma maneira a ciranda da vida está cortada, está faltando alguém (“... vai primeiro reconciliar-te com teu irmão). São João diz que alguém passou da morte para a vida, entrou no santuário eterno, entrou no mundo divino, no seio da Santíssima Trindade (fez sua oferta no altar do Senhor). Quem é este alguém? Aquele que ama (Cf. 1Jo 3, 14).

O ápice da “lei” de Deus se realiza quando eu começo a viver, praticar, os mesmos sentimentos vividos por Jesus, nosso Senhor. Enquanto a multidão gritava “crucifica-o”, Ele buscava a reconciliação: “Pai, perdoa-lhes”.  Que jamais cesse em nossas almas a disposição para a reconciliação.

- “Entra em acordo sem demora com o teu adversário, enquanto estás em caminho com ele, para que não suceda que te entregue ao juiz, e o juiz te entregue ao seu ministro e sejas posto em prisão. Em verdade te digo: dali não sairás antes de teres pago o último centavo” (vv. 25-26).  Quando eu elimino alguém (não entro em acordo) eu estou semeando algo para mim. Quando eu não perdoo corro sério perigo de passar a habitar a região do rancor e até do ódio, e, assim, terminar fazendo da própria vida uma prisão asfixiante sem liberdade: a vida é perdida, entro numa rua sem saída. E qual seria a saída? Entrar em acordo com o adversário (Processo de purgatório).

A vida tem sentido! O sentido da vida é entrar em acordo com o meu antagonista, é criar reconciliação com o adversario. O meu adversario é o outro, o outro que nao domino e que tambem nao me domina. Se ele é “outro”, e se eu sou “outro” para ele, então cada um de nós é chamado a sair de si para ir ao encontro do outro, para criar reconciliação, para que o outro se torne irmão. Grande chamado a Palavra nos faz. Quanta violencia entre pessoas, entre religiões, entre concepções de vida, entre classes, entre povos e entre geraçoes por causa de nossa nao aceitação de que o outro é realmente “outro”, diferente de mim.

Nao esqueçamos: o adversario sempre leva o seu antagonista ao juiz, enquanto o irmao sempre leva o outro ao “pai”.  Afinal, somos chamados a sermos filhos e irmãos, nao adversarios uns dos outros. Afinal, Deus quer ser nosso Pai, e nao mero Juiz. Nos quer receber como filhos e irmaos e nao adversarios em querelas.

Jesus nos revela que nas vicissitudes da vida só uma coisa nos deixa sem razao diante do “Pai-Juiz”: o fato de nao entrarmos em acordo.

“Ouvistes que foi dito aos antigos: ‘Não cometerás adultério’. Eu, porém, vos digo: ‘todo aquele que lançar um olhar de cobiça para uma mulher, já adulterou com ela em seu coração’ (vv. 27-28). A lei antiga já protegia a família (o amor do homem, da mulher e dos filhos). A Palavra do Senhor nos exorta a preservar esse amor e deixar em paz toda mulher casada, todo homem casado.

O homem casado ou não (o mesmo pode valer para a mulher casada ou solteira) é chamado a não cometer adultério, a não trair o amor de família. Por vezes a traição pode significar também a falta de ternura, delicadeza, atenção, insensibilidade, falta de diálogo, etc. Nosso Senhor pede que elevemos o nível de nossa humanidade não reduzindo a outra e o outro a um objeto de posse e de cobiça. A outra pessoa é um mistério, não é objeto de minha cobiça. Não reduzamos a pessoa a um objeto de obtenção de prazer.

- “Se teu olho direito é para ti causa de queda, arranca-o e lança-o longe de ti, porque te é preferível perder-se um só dos teus membros, a que o teu corpo todo seja lançado na Geena. E se tua mão direita é para ti causa de queda, corta-a e lança-a longe de ti, porque te é preferível perder-se um só dos teus membros, a que o teu corpo inteiro seja atirado na Geena” (vv. 29-30).

Jesus não está se referindo ao fato de contemplar a beleza de uma mulher, mas da má intenção (olho) e da má ação (mão). Refere-se ao pensamento obsessivo sobre uma mulher, obsessão essa que obscurece o bem, e que cria desastres e até tragédias familiares, entre outras. Daí o mandamento: “... arranca-o, lança-o, corta-a, lança-a”. Ou seja, chega um momento que o cristão, diante do mal, tem que ser violento e decidido para não se deixar levar pelos próprios caprichos, taras e vontades próprias. E se isso não fizer certamente morrerá, se perderá, será reduzido à solidão, pois longe e distante estará de vínculos duradouros e verdadeiros. Lembro-me de um senhor casado que preferiu renunciar a um melhor emprego do que ficar longe de sua esposa, pois temia o pior: na distância, trair sua esposa. Esse irmão entendeu muito bem que as circunstâncias tem grande peso em nossas atitudes.

- “Foi também dito: ‘Todo aquele que rejeitar sua mulher, dê-lhe carta de divórcio’. Eu, porém, vos digo: ‘todo aquele que rejeita sua mulher, a faz tornar-se adúltera, a não ser que se trate de matrimônio falso; e todo aquele que desposa uma mulher rejeitada comete um adultério’” (vv. 31-32).

A carta de divórcio era só um documento que revelava um drama: o drama do repúdio. Repudiava-se primeiro. Os homens da época inventaram o divorcio para justificar a dureza de coração, o repúdio à esposa. Para Jesus, não deve haver repúdio entre os filhos de Deus que constituem família, pois deve haver sempre união.

Na época de Jesus, por exemplo, o homem tinha o direito de repudiar sua esposa simplesmente porque ela tinha deixado cozinhar demais ou de menos a comida. E, assim, a mulher ficava exposta à prostituição ou à fome.

Imagine-se como vivia uma mulher assim tão temerosa de ser repudiada? Vivia disposta a suportar de tudo para não ser mandada embora.

O “repúdio”: expressão de uma lei farisaica. Jesus convida a ir mais além, a superar a formalidade da lei (“Tenho esse direito”) e olhar o humano (a mulher) que se tem diante. Aqui a palavra de Jesus se mostra explicitamente como palavra de salvação enquanto luta para aliviar a dor dos menos favorecidos (no caso, na época, as mulheres).

Sobre o autor
Frei João de Araújo Santiago

Frade Capuchinho, da Província Nossa Senhora do Carmo. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Mestre em Teologia Espiritual. Tem longa experiência como professor, seja no Brasil, como na África, quando esteve como missionário. Por vários anos foi formador seja no Postulantado, como no Pós Noviciado de Filosofia. Atualmente mora em Açailândia-MA. Já escreveu vários livros e muitos artigos.