Homilia do VI Domingo do Tempo Comum - ano C / Frei João Santiago
VI Domingo do Tempo Comum - ano C
(Lucas 6, 17. 20-26)
- “Descendo com eles, parou numa planície. Aí se achava um grande número de seus discípulos e uma grande multidão de pessoas vindas da Judeia, de Jerusalém, da região marítima, de Tiro e Sidônia, que tinham vindo para ouvi-lo e serem curadas de suas enfermidades" (v. 17).
Pessoas em grande número foram parar naquela planície para ouvir e serem curadas de suas enfermidades. Enfermidades que são curadas pela Palavra e palavras do Senhor Jesus, Deus entre nós. A Palavra de Deus, Deus mesmo agindo e sendo visto, mudou para sempre São Cirilo: “Constantino Cirilo caiu doente; e quando já havia muitos dias que suportava a enfermidade, teve uma visão de Deus e começou a cantar: ‘O meu espírito alegrou-se e o meu coração exultou, quando me disseram: Vamos para a casa do Senhor’. Depois de ter revestido as vestes de cerimônia, assim permaneceu todo aquele dia, cheio de alegria e dizendo: ‘A partir de agora, já não sou servo nem do imperador nem de homem algum na terra, mas unicamente do Deus todo-poderoso. Eu não existia, mas agora existo e existirei para sempre. Amém’. No dia seguinte, vestiu o santo hábito monástico e, acrescentando luz à luz, impôs-se o nome de Cirilo” (Da Vida eslava de Constantino in Ofício das Leituras).
Todos nós temos nossas próprias palavras e pareceres que muitas vezes não passam de opiniões que herdamos de nossos pais (no bem e no mal), que são produtos de nossos delírios de grandeza, que são eivadas de rancor, de medo e de ignorância.
E se pudéssemos ver as coisas com o olhar puro e verdadeiro de Deus, com suas santas palavras?
O Evangelho deste domindo nos traz outra “Palavra” que nos cura do mal radical.
- "Então, ele ergueu os olhos para os seus discípulos e disse: ‘Bem-aventurados vós que sois pobres, porque vosso é o Reino de Deus!’” (v. 20).
“Bem-aventurado”, feliz, é todo homem ou mulher que descobre a beleza de viver não sendo autossuficiente, mas em recebendo e ofertando o que se é e o que se tem. “Bem-aventurado” é uma expressão usada para alguém que venceu uma partida, um desafio, uma batalha. É receber uma congratulação, os parabéns, uma homenagem. É estimular uma pessoa que esteja no caminho certo para que continue em tal rota e caminho. “Pobre”, nesta passagem (“ptochoi” em grego), não é o contrário de rico que tem tanto, mas é aquele que apesar de ter labutado tanto, nada possui (o outro tipo de “pobre”, na verdade, consegue algo), e que por isso vive de “dons” e de ajudas, em dependência de outros, vive dos outros e não das coisas. O discípulo de Jesus é feliz, “bem-aventurado”, não porque não possui (como se o ter ou não ter fosse o decisivo), mas porque o Reino de Deus reina sobre ele. De fato, o “pobre” que é “bem-aventurado” vive porque está inserido na ciranda amorosa de tantos irmãos que o ajudam: tal ajuda é expressão do Reino de Deus nesta terra. Se no reino desse mundo os poderosos reinam sobre os outros, no Reino de Deus, Deus reina servindo, doando até doar a si mesmo. Aprendamos, portanto, a nos deixar servir por Deus e pelos irmãos, permitir que o Senhor reine sobre nós. E que os bens que venhamos a usufruir não se tornem posses, mas motivo de encontro com os demais e motivo de agradecimento ao Senhor do céu e da terra.
Os discípulos de Jesus escolheram aquela condição de “pobres” que permite que as pessoas se encontrem, pratiquem a comunhão de bens e adorem a Deus em espírito e verdade. Fora da condição de “pobres”, só nos resta cair no fetiche: coisas valiosas, bens, que se tornam a razão da minha alegria, felicidade, sem os quais não posso viver. O fetiche faz com que uma coisa, um bem, se torne uma divindade.
Possuir bens sem que eles se tornem motivo de entrar em relação com os demais nos faz adentrar no mundo do fetiche: a coisa, um bem, se torna uma divindade, o outro se torna um descartável qualquer, e Deus se torna um estranho.
“Bem-aventurados vós que agora tendes fome, porque sereis saciados! Bem-aventurados vós que agora chorais, porque vos alegrareis!” (v. 21).
Numa sociedade injusta, Jesus anuncia uma verdade dramática. Jamais passar fome será um ideal de vida. Jesus não fala isso. Nosso Senhor anuncia decididamente, porém, que é preferível até mesmo passar fome “do que” tirar o alimento dos outros. Jesus anuncia a saciedade aos famintos. Sentir-se satisfeito é um repouso que todo ser humano busca. Satisfeito tem a ver com realização, com descanso, com um sonho realizado, com a superação de toda ansiedade. A “bem-aventurança” acontece com quem espera, na justiça e na partilha, de ser saciado, não com quem provoca a fome, tira o salário justo do trabalhador, desvia bens, dinheiro e alimento destinados aos pobres. Quem semeia a maldade, faz o mal, jamais colherá satisfação, saciedade, mas, sim, insatisfação e ânsia de possuir cada vez mais, o que gera um ciclo infernal de eterna solidão em meio a coisas e bens, sem jamais experimentar a comunhão, a amizade.
Há um perigo para os que causam a fome e a carestia na terra, que põem suas seguranças em ter e possuir tirando dos demais e desprezam as pessoas reais deste mundo: o perigo de começar a sentir uma fome que nada deste mundo satisfaz (fome de sentido, fome de esperança, fome de fé, fome de amor). Certos limites não podem ser ultrapassados, pois uma vez ultrapassados, não tem mais como voltar atrás: “Eis que vêm dias, diz o Senhor DEUS, em que enviarei fome sobre a terra; não fome de pão, nem sede de água, mas de ouvir as palavras do SENHOR (o sentido da vida). E irão errantes de um mar até outro mar, e do norte até ao oriente; correrão por toda a parte, buscando a palavra do Senhor, mas não a acharão” ( Amós 8, 11). Sabemos que a causa da fome no mundo é a injustiça. A injustiça tem o poder de esconder a verdade, o sentido do viver. Praticar a injustiça, promover a fome, não deixa de ter suas consequências que beiram o desespero, pois escondem a verdade, a vida se torna sombria, escura, sem saída: “Porque do céu se manifesta a ira de Deus sobre toda a impiedade e injustiça dos homens, que detêm a verdade em injustiça” (Rom 1, 18).
Jesus, anunciando “bem-aventurança” aos se alimentam com dificuldades, está nos convidando a fazer uma grande descoberta: a minha fome, a fome do irmão, a nossa fraqueza, necessidade e dependência do alimento, pode ser ocasião de encontro e comunhão, oportunidade de sentir alegria e consolo no exercício de aliviar a fome, seja porque outro me ajudou, seja porque eu ajudei a outro. “Os cristãos tinham tudo em comum”, dizem os Atos dos Apóstolos.
Bem-aventurados vós que agora chorais, porque vos alegrareis! A comunidade cristã é e será sempre lugar para todos, especialmente para os que mais precisam. Que ninguém chore sozinho, que haja sempre um grupo de irmãos e irmãs para tornar todo pranto em alegria. Um dia Jesus chorou sobre Jerusalém. Os cristãos choram por ver tanta rebeldia e resistência em nosso meio: conhecemos a Palavra, sabemos o certo, mas insistimos em praticar a indiferença aos demais, visando somente e exclusivamente os próprios interesses.
- “Bem-aventurados sereis quando os homens vos odiarem, vos expulsarem, vos ultrajarem, e quando repelirem o vosso nome como infame por causa do Filho do Homem! Alegrai-vos naquele dia e exultai, porque grande é o vosso galardão no céu. Era assim que os pais deles tratavam os profetas” (vv. 22-23).
- “Mas ai de vós, ricos, porque tendes a vossa consolação! Ai de vós, que estais fartos, porque vireis a ter fome! Ai de vós, que agora rides, porque gemereis e chorareis! Ai de vós, quando vos louvarem os homens, porque assim faziam os pais deles aos falsos profetas!" (vv. 24-26).
Ai de vós: expressão muito usada quando uma pessoa estava em luto porque tinha “perdido” um ente querido. Podemos traduzir tal expressão como “sinto muito”, “meus pêsames”, “é uma pena”, “infelizmente”. Não se trata de expressar desprezo, vingança ou desforra (“toma”, “bem feito”). Toda ação tem um reação. O que eu planto, eu colho. Pautar a vida apostando a vida e o trabalho somente em vista do possuir, fazendo pouco caso das pessoas e até mesmo dos familiares, produz um retorno de dor, de luto. Quem se consolar como o “Tio Patinhas” que se banhava em suas moedas de ouro, é digno de dó, de pena, de pesar, pois pode até mesmo se consolar, mas jamais conhecerá a satisfação, a plenitude, a alegria dos filhos de Deus que conhecem a graça da vitória sobre o mal e a morte: “Nós sabemos que fomos trasladados da morte para a vida, porque amamos nossos irmãos. Quem não ama permanece na morte” (1Jo 3, 14).