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Homilia do VII Domingo do Tempo Comum - ano A - Frei João Santiago

Publicado por Frei João de Araújo Santiago | 22/02/2020 - 09:48

VII Domingo do Tempo Comum - ano A

(Mateus, 5, 38-48)

Por quanta agressão passamos todos nós (Agressão física, moral, psíquica, emocional. Roubos, traição, difamação, mentiras, guerras, etc. )? Como lidar com quem nos ofendeu ou ofende? E como combater o mal, a agressão, em nosso meio e dentro de nós? A Palavra de Deus neste “Domingo do Senhor” vem em nosso socorro.

- “Tendes ouvido o que foi dito (na lei): ‘Olho por olho, dente por dente’. Eu, porém, vos digo: não resistais ao mau. Se alguém te ferir a face direita, oferece-lhe também a outra. Se alguém te citar em justiça para tirar-te a túnica, cede-lhe também a capa” (vv. 38-40).  

Toda lei existe para “apontar, identificar” o mal e a pena para quem o cometeu, mas não resolve tudo, pois o mal ainda fica em forma de mágoa, de vingança, de penar, de luto, de choro, de ódio, de futuras guerras e outras formas de mal e sofrimento. Jesus nos convida a desenvolver em nós o espírito do Filho que quer bem aos demais a fim de vencer o mal reinante entre os homens, entre nós.

Temos a tendência a nos opor ao malvado, não ao mal, ou seja, tendemos a nos opor ao pecador e não ao pecado. De fato, tranquilamente nos sentimos bem depois de uma desforra, depois que nosso inimigo se deu mal, depois de uma vingança “realizada com sucesso”, isto é, tendemos a conviver bem com o desejo de revanche - que é um mal -, e não lutamos contra tal desejo tanto quanto contra alguém que nos feriu. Nosso Deus, ao contrário, não quer a morte do pecador, mas que se converta e viva para que o mal não triunfe, para que todos vivam.

Tudo isso significa que o “mal é mal, é pecado,” e que por isso devo repudiá-lo, e, ao mesmo tempo, devo querer o bem do irmão que faz o mal, o pecado, porque ele é a primeira vítima do mal.

Um dia, alguém muito pérfido disse a si mesmo que aumentaria o mal no mundo e que aumentaria o número de pessoas más no mundo. Escolheu uma senhora boa, gentil e pacífica. Provocou-lhe ao máximo depositando sempre lixo na frente da casa daquela gentil e pacífica senhora. Um dia, a senhora reagiu à altura do pérfido cidadão: juntou o máximo de lixo que pôde e lançou-o por sobre o muro, praticamente na porta da sala daquele cidadão. Resultado: se eu me oponho ao malvado com malvadez, eu terei “ferido” à ele da mesmo forma que ele me feriu e seremos dois malvados, dois praticantes do mal. A justiça foi feita? Do ponto de vista de Nosso Senhor, a justiça não foi feita, pois a maldade terá aumentado e o número de praticantes do mal também. Com as Palavras de Jesus eu sou chamado a me opor ao mal, a não ceder à tentação do mal e do homem malvado. Só desta maneira o mal é vencido dentro e fora de mim.

“Se alguém te ferir a face direita, oferece-lhe também a outra”.

Comumente eu só consigo ferir a face direita de alguém se eu usar o dorso ou as costas da minha mão direita. Bater com o dorso da mão acontecia quando um mais forte (patrão ou militar romano) queria humilhar o mais fraco (um escravo ou um simples “cidadão”) e mandar um recado tal como: “Fique em seu lugar! Submeta-se a mim!”. Jesus, neste caso, pede ao discípulo que ofereça a face esquerda. Neste caso, o agressor não conseguirá usar o dorso, e, caso queira bater novamente, terá que dar um soco. Ora, agredir o oponente com um soco era um gesto que só se admitia entre “iguais” (um soldado bateria assim em outro soldado, mas jamais num camponês, pois seria reconhecer a este como tendo sua mesma dignidade). E, deste modo, oferecendo-lhe a outra face, a face esquerda, o agredido reivindicava a dignidade que lhe cabia. Convidava também ao seu agressor a reivindicar a verdadeira dignidade dele de irmão e não de agressor, a examinar sua consciência, a se perguntar pelo motivo para tanta agressão. E tudo isso aconteceria sem uso de violência, sem devolver a agressão. O próprio Jesus, um dia, passou por isso: “... um dos guardas presentes deu uma bofetada em Jesus, dizendo: ‘É assim que respondes ao sumo sacerdote?’ Replicou-lhe Jesus:‘Se falei mal, prova-o, mas se falei bem, por que me bates?’” (Jo 18, 22-23).

Mazen Juliani era um farmacêutico palestino de 32 anos, pai de três filhos. No dia 5 de junho de 2001 enquanto tomava café foi alvejado por um bala e veio a óbito. Um judeu tinha disparado a arma. A família decide doar os órgãos. Avisaram à esposa que havia um judeu na lista de espera por um coração doado. A esposa respondeu: “Não quero que o meu coração morra junto ao meu marido”. Poderia ela refugiar-se no seu ódio, endurecer-se no ressentimento, mas, ao contrário, não. Hoje o judeu Yigal Cohen vive com um coração palestino. Ela cumpriu a recomendação de Jesus: ofereceu a outra face.

“Se alguém te citar em justiça para tirar-te a túnica, cede-lhe também a capa”.

O contexto desse dito de Jesus nos mostra uma situação calamitosa na qual, devido a dívidas injustas, o pobre terminava espoliado até de suas vestes.

O que fazer para que quem nos envergonhe reveja suas atitudes? Como ajudá-lo a tomar consciência do mal que faz? Ora, aquele que foi obrigado a tirar a túnica é convidado, pelas palavras de Jesus, a entregar também a capa. Resultado? Ficou pelado. Isso mesmo! Porque a túnica era a veste interna, íntima e a capa era a roupa externa.  Na cultura em que Jesus viveu, não era assim tão escandaloso ficar nu: escandaloso era olhar para alguém que estivesse pelado. E, talvez, envergonhado diante da cena, aquele que tinha pedido a túnica veria a consequência dos seus atos e de como degradou o outro até ao ponto de deixá-lo pelado. Jesus, assim, ensina-nos a afrontar a injustiça sem usar violência, nos pede que sejamos criativos na promoção do bem e que acreditemos no poder das nossas respostas e reações perante certas situações que parecem sem saída, que parecem ter o poder de nos levar a odiar.   Importa não comportar-se como vítima, e nem ceder à violência, mas em todas as circunstâncias fazer reinar o bem não se deixando envenenar pelo ressentimento e procurando também o bem do agressor: que ele “repense” suas malvadezas.

“Se alguém vem obrigar-te a andar mil passos com ele, anda dois mil” (v. 41).

Acontecia muito na época que os soldados romanos obrigavam “os pequenos” a carregarem bagagens. A lei romana, no entanto, proibia que se obrigasse alguém a carregá-las por mais de 1 km. Isso para evitar revoltas do povo. Imagine você o quanto embaraçado e constrangido ficaria o soldado romano se o “pobre coitado” continuasse a carregar a bagagem por mais de 1 km. Ficaria temeroso de sofrer uma punição do seu superior e se sentiria obrigado a pedir a bagagem de volta. Mais uma vez criar-se-ia uma situação na qual o opressor seria chamado a refletir sobre sua atitude de déspota e de humilhação. Ele, de repente, se encontraria na situação de pavor e medo pela possível punição, e seria convidado, assim, a imaginar os medos pelos quais o pobre da época passava. Toda aquela situação levaria o “opressor” a viver o ponto de vista do outro, a imaginar-se na situação de quem sofre.

Com estes exemplos vimos que o discípulo de Jesus é chamado - ao mesmo tempo -  a não reagir violentamente, a não toma a atitude de passividade (“Não tem jeito, o mundo é assim mesmo, deixa pra lá”) e nem esperar que Deus resolva tudo num passe de mágica.

- “Tendes ouvido o que foi dito: ‘Amarás o teu próximo e poderás odiar teu inimigo’. Eu, porém, vos digo: amai vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, orai pelos que vos [maltratam e] perseguem” (vv. 43-44).

Existe um tipo de amor muito pouco conhecido e vivido: chama-se “amor oblativo”. Quando eu amo oblativamente eu desejo e faço de tudo para promover o bem e a liberdade da outra pessoa como outra pessoa, ou seja, a pessoa que ama de “amor oblativo” não exige que a outra pessoa por amar seja como eu ela gostaria que fosse. O “amor oblativo” não pretende ganhar nada em troca da pessoa a quem se ama.

O Pai não conhece inimigos, mas somente filhos. Se eu conheço o Pai, se tenho intimidade com Ele e conheço o seu amor gratuito e oblativo, então eu também amo, isto é, quero o bem do meu inimigo.

Nós cristãos afirmamos que o outro é amado pelo Pai como eu o sou também. Neste sentido somos, de fato, irmãos, pois temos um Pai em comum. Quando eu não amo o meu inimigo que é filho do Pai significa que eu não estou de bem com o Pai do meu inimigo, não estou de bem com o meu Pai.

Mas eis aqui uma prova brilhante de amor de Deus por nós: quando éramos ainda pecadores, Cristo morreu por nós” (Rm 5, 8). Quando éramos pecadores, praticantes do mal, inimigos de Deus, Deus nos amou, morreu por nós. Foi morrendo por inimigos seus que Deus revelou o amor oblativo, gratuito, incondicional. Deus é amor incondicional, gratuito: ama os inimigos seus e sonha que tenhamos o seu mesmo espírito amoroso endereçado a todos os seres da terra, inclusive aos inimigos.

O mal, os malefícios do homem malvado, os pecados e os nossos inimigos podem ser ocasião para o conhecimento do amor de Deus.  O mal a mim causado pelo meu inimigo pode ser ocasião de um bem, ocasião para eu me revelar como filho de Deus, como filho semelhante ao Pai, isto é, capaz de amor gratuito. Não esperemos um mundo perfeito para poder viver e amar sem reservas, mas afrontemos o mundo como é, não temamos o mal, mas o façamos ocasião de um bem: “... sabemos que todas as coisas concorrem para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são os eleitos, segundo os seus desígnios” (Rm 8, 28).

A Palavra nos revela, portanto, que o mal não impede o surgimento do bem, do perdão, da fraternidade e da vitória sobre a inimizade. O mal pode ser a oportunidade para que eu me revele como filho do Pai de Jesus, como filho nascido da misericórdia divina, como filho que ama gratuitamente, que ama também inimigos.

Chegar a amar inimigos. No fundo no fundo, o nosso ódio ao inimigo nasce porque o consideramos nosso adversário, e, quase sempre, “arrumamos” inimigos porque trazemos em nossa alma “feridas”, chagas abertas. Quando Jesus soube da morte de João Batista não ficou revoltado, mas iniciou seu “movimento” em vista do Reino de Deus entre os homens. Jesus começou sua batalha contra o mal, não contra os inimigos.

Para que eu pare de “arrumar” inimigos preciso viver do bem-querer de Deus para comigo: sou filho do Pai, sou amado por Ele de forma incondicional. Então: por que não passar adiante, passar aos outros, o mesmo amor incondicional?

Meditamos que somos chamados a levar o agressor a rever suas atitudes. No entanto, devemos lembrar que o mal só é vencido se alguém se dispõe a “carregá-lo” por amor, tal como Jesus que carregou sobre si os males da humanidade. Só o perdão que constrói fraternidade tem o poder de vencer o mal feito, o malefício. O contrário também é verdade: quando eu não perdoo eu tomo o mal e o faço meu, faço com que ele circule, cresça, aumente, se propague e reine mais e mais em nosso meio.

O tema do perdão revela que nem tudo está bem, que existe um mal por perdoar. Revela também que quando eu perdoo é porque preferi “oferecer a outra face” e evitei  reagir ao mal com o mal: eis a Cruz de Cristo. Evidentemente, precisamos ser fortes para não reagir o mal com o mal, ter a força de quem ama tal como Jesus amante na Cruz: “Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem”.

Sobre o autor
Frei João de Araújo Santiago

Frade Capuchinho, da Província Nossa Senhora do Carmo. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Mestre em Teologia Espiritual. Tem longa experiência como professor, seja no Brasil, como na África, quando esteve como missionário. Por vários anos foi formador seja no Postulantado, como no Pós Noviciado de Filosofia. Atualmente mora em Açailândia-MA. Já escreveu vários livros e muitos artigos.