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Homilia do VII Domingo do Tempo Comum - ano C / Frei João Santiago

Publicado por Frei João de Araújo Santiago | 23/02/2019 - 15:33

VII Domingo do Tempo Comum - ano C

(Lucas 6, 27-38)

Diz o Cântico dos Cânticos que o amor é forte como a morte. Já São João nos diz que o amor vence a morte. O amor de Deus é implacável, é como o sol e como a chuva que “caem” sobre todos. No final de nossas vidas seremos julgados pelo amor (Mt 25, 32ss).  Para não haver perdição, que o amor chegue a todos.

Em um mundo marcadamente agressivo, injusto e violento, Nosso Senhor nos pede criatividade e inteligência espiritual, seja para não ceder ao ódio, seja para combater a injustiça e não aceitar as agressões psicológicas, morais e físicas.

27."Digo-vos a vós que me ouvis: amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, 28.abençoai os que vos maldizem e orai pelos que vos injuriam. 29.Ao que te ferir numa face, oferece-lhe também a outra.E ao que te tirar a capa, não impeças de levar também a túnica. 30.Dá a todo o que te pedir; e ao que tomar o que é teu, não lho reclames. 31.O que quereis que os homens vos façam, fazei-o também a eles.* 32.Se amais os que vos amam, que recompensa mereceis? Também os pecadores amam aqueles que os amam. 33.E se fazeis bem aos que vos fazem bem, que recompensa mereceis? Pois o mesmo fazem também os pecadores. 34.Se emprestais àqueles de quem esperais receber, que recompensa mereceis? Também os pecadores emprestam aos pecadores, para receberem outro tanto. 35.Pelo contrário, amai os vossos inimigos, fazei bem e emprestai, sem daí esperar nada. E grande será a vossa recompensa e sereis filhos do Altíssimo, porque ele é bom para com os ingratos e maus. 36.Sede misericordiosos, como também vosso Pai é misericordioso. 37.Não julgueis, e não sereis julgados; não condeneis, e não sereis condenados; perdoai, e sereis perdoados; 38.dai, e vos será dado. Será colocada em vosso regaço medida boa, cheia, recalcada e transbordante, porque, com a mesma medida com que medirdes, sereis medidos vós também”."

 “Se alguém te ferir na face direita, oferece-lhe também a outra” (versão de Mateus 5, 39).

Experimente: você com sua mão direita não consegue, normalmente, esbofetear (com a palma da mão) a face direita de quem esteja na sua frente. Neste caso, para acertar sua face direita, teria que usar o dorso ou as costas da mão direita. Bater com o dorso da mão acontecia quando um mais forte (um patrão, um militar romano) queria humilhar o mais fraco (um escravo, um simples “cidadão”) e mandar um recado tal como: “Fique em seu lugar! Submeta-se a mim!”. Jesus, neste caso, pede ao discípulo que ofereça a face esquerda. Neste caso, o agressor não conseguirá usar o dorso e com muita dificuldade a palma da mão. Caso queira bater novamente terá que dar um soco. Ora, agredir o oponente com um soco era um gesto que só se admitia entre “iguais” (por exemplo, um soldado bateria assim em outro, mas jamais num camponês, pois seria reconhecer a este como tendo sua mesma dignidade). E, deste modo, oferecendo-lhe a outra face, o agredido reivindicava a dignidade que lhe cabia e comunicava ao agressor que se recusava a ser humilhado. Convidava também ao seu agressor a reivindicar a verdadeira dignidade dele, examinando a mentira em que vivia ao acreditar que um ser humano fosse melhor que outro. E tudo isso se fazia sem uso de violência, sem devolver a agressão.

Mazen Juliani era um farmacêutico palestino de 32 anos, pai de três filhos. No dia 5 de junho de 2001 enquanto tomava café foi alvejado por um bala e veio a óbito. Um judeu tinha disparado a arma. A família decide doar os órgãos. Avisaram à esposa que havia um judeu na lista de espera por um coração doado. A esposa respondeu: “Não quero que o meu coração morra junto ao meu marido”. Poderia ela refugiar-se no seu ódio, endurecer-se no ressentimento, mas, ao contrário, não. Hoje o judeu Yigal Cohen vive com um coração palestino. Ela cumpriu a recomendação de Jesus: ofereceu a outra face.

“Se alguém te citar em justiça para tirar-te a túnica, cede-lhe também a capa” (versão de Mateus 5, 40).

O contexto desse dito de Jesus nos mostra uma situação calamitosa na qual, devido a dívidas injustas, o pobre terminava espoliado até de suas vestes. Já êxodo 22, 25-27 proibia tomar o manto ou a capa do pobre por motivo de dívidas.

O que fazer para que quem nos envergonhe reveja suas atitudes? Como ajudá-lo a tomar consciência do mal que faz? Ora, aquele que lhe é obrigado tirar a própria túnica é convidado, pelas palavras de Jesus, a entregar também a capa. Resultado? Fica-se pelado. Isso mesmo! Porque a túnica era a veste interna, íntima e a capa era a roupa externa.  Na cultura em que Jesus viveu, não era tão escandaloso assim ficar pelado: escandaloso era olhar para alguém que estivesse pelado (passava vergonha quem fosse pego olhando alguém pelado). Tirar a capa que cobria a nudez em pleno tribunal não deixasse de ser um espetáculo no qual não tinha como não olhar para o “peladão”. Talvez, envergonhado diante de tal cena, aquele que tinha pedido a capa veria a consequência dos seus atos e de como degradou o outro até ao ponto de deixá-lo pelado. É como se o “peladão”, que tinha sido injustiçado, dissesse: “venham até que ponto vocês me reduziram!”.  Jesus, assim, ensina-nos a afrontar a injustiça sem usar violência, nos pede que sejamos criativos e que acreditemos no poder das nossas respostas e reações perante certas situações que julgamos sem saída a não ser aquela de odiar.   Importa não comportar-se como vítima, e nem ceder à violência, mas em todas circunstâncias fazer reinar o bem não se deixando envenenar pelo ressentimento e procurando também o bem do agressor: que ele “repense” suas malvadezas.

Sobre o autor
Frei João de Araújo Santiago

Frade Capuchinho, da Província Nossa Senhora do Carmo. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Mestre em Teologia Espiritual. Tem longa experiência como professor, seja no Brasil, como na África, quando esteve como missionário. Por vários anos foi formador seja no Postulantado, como no Pós Noviciado de Filosofia. Atualmente mora em Açailândia-MA. Já escreveu vários livros e muitos artigos.