Homilia do VIII Domingo do Tempo Comum - ano C / Frei João Santiago
VIII Domingo do Tempo Comum - ano C
(Lucas 6, 39-45)
Para salvar a comunidade dos homens.
Humildemente reconhecemos que “perturbamos”, com nossos males e modo de ser, o ambiente no qual vivemos. Por vezes achamos que alguns passam dos limites e merecem um castigo maior (castigos, penas, prisão, pena de morte). Jesus, Nosso Senhor, com palavras e atos, nos ensina a “salvar o ‘salvável’”, tal como pai e mãe se dedicam a um filho que esteja “na pior”. Tendemos a ser duros com um filho alheio que faça o mal, e, ao mesmo tempo, brandos com o próprio filho que apronta com os outros. Não esqueçamos, portanto, que Deus é Pai de todos, e, por isso, quer salvar a todos.
Quando uma família reza e gasta recursos em vista da saúde de um parente, mostra e demonstra o quanto ama o enfermo que padece de algum mal. Do mesmo modo, quando um filho de Deus se encontra entregue ao mal, Deus mostra maiormente o seu amor para com ele. O fato de um filho de Deus se encontrar entregue ao mal se torna ocasião propícia para o Senhor exercer a compaixão para com ele: “E essa nova vida que agora vivo no corpo, vivo-a exclusivamente pela fé no Filho de Deus, que me amou e se sacrificou por mim” (Gal 2, 20); “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho Unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3, 16). Quem aceita a compaixão recebida, faz como São Paulo, experimenta-se querido, amado e desejado por Deus (“Ele me quer bem”): abre-se a uma nova visão da vida, abre os olhos, deixa a cegueira do amor orgulhoso de si próprio, passa a detestar o mal, nasce para o amor e a compaixão que salvam o “salvável”.
- “Pode acaso um cego guiar outro cego? Não cairão ambos na cova?” (v. 39).
Mesmo Jesus tendo dito: “Um só é o Mestre, vós todos sois irmãos”, tantos se metem a serem guias, mesmo sendo cegos. “Cego” é todo aquele que não sabe de onde vem e nem para onde vai, não conhece a si, nem a Deus, nem aos demais, desconhece a verdade que o Pai do céu é compassivo para com todos, e, mesmo assim, insiste e persiste em dizer que tem os olhos abertos e não se abre a uma nova visão: “Alguns fariseus que estavam com ele ouviram-no dizer isso e perguntaram: ‘Acaso nós também somos cegos?’ Disse Jesus: ‘Se vocês fossem cegos, não seriam culpados de pecado; mas agora que dizem que podem ver, a culpa de vocês permanece’” (Jo 9, 40-41). Qual é mesmo a cegueira? É “sair por ai” condenando a si e aos outros, ou procurar em si e fora de si caminhos e líderes espirituais ou qualquer estudo ou ciência que neguem a verdade do compassivo Deus. Tal cegueira conduz para a cova da morte, pois adora a um “deus” justiceiro que leva seus adoradores a se tornarem justiceiros como consequência. Quando somos cegos e envolvidos pelas trevas não conseguimos criar família e comunidade humana, mas permanecemos amarrados na lei do “Olho por olho, dente por dente”. Nosso Senhor e Mestre nos convida a abrir os olhos para uma realiadde nova: salvar tudo aquilo que se possa salvar, evitar as condenações, soltar e desligar o mal daquela pessoa que por acaso tenha feito o mal. O mal deve ser combatido, a pessoa deve ser salva.
- “O discípulo não é superior ao mestre; mas todo discípulo perfeito será como o seu mestre” (v. 40). Lucas, nesta passagem, nos chama novamente a atenção a nos deixar guiar pelo mestre Jesus, não por nossas fantasias, opiniões, raciocínios e falsas concepções religiosas. E o nosso mestre, não esqueçamos, se fez próximo aos publicanos, às prostitutas, aos comilões e beberrões. Mais uma vez somos chamados a exercer a compaixão, a sermos compassivos. Um dia, quem sabe, quando passaremos a considerar todo e qualquer rosto humano como membro de nossa família, naquele dia entenderemos o nosso Mestre Jesus, pois todos nós nos sensibilizamos quando um parente nosso (irmão, irmã, pai, mãe) “está na pior”. Não desprezemos nossa humanidade, nossos semelhantes: “Não desprezeis a vossa carne”, já dizia Isaías. Afastemos, portanto, a presunção que nos leva a querer ser mais do que o Mestre (e até mesmo querer corrigi-lo) e a não aceitar suas palavras, atos e atitudes para com as pessoas.
- “Por que vês tu o cisco no olho de teu irmão e não reparas na trave que está no teu olho? Ou como podes dizer a teu irmão: Deixa-me, irmão, tirar de teu olho o cisco, quando tu não vês a trave no teu olho? Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho e depois enxergarás para tirar o cisco do olho de teu irmão”(vv. 41-42).
Quando eu dou atenção ao mosquito e deixo passar o camelo
Temos, sim, a péssima tendência de reparar o defeito do outro, a fazer de tudo para descobrir os “tropeços” do irmão, para, quem sabe, não perder a oportunidade de dar uma lição de moral corrigindo-o. Conseguir enxergar um cisco no olho de outra pessoa não é para qualquer um, pois exige uma concentração, um “bisbilhotar”, até descobri o limite, o pecado e a menor falha do irmão. O drama, no entanto, é que existe uma viga, uma trave no próprio olho, que não se percebe. Bem disse Jesus: “Ai de vós, doutores da Lei e fariseus, hipócritas! Porque dais o dízimo da hortelã, do anis e do cominho, mas tendes descuidado dos preceitos mais importantes da Lei: a justiça, a misericórdia e a lealdade ... Guias insensíveis! Pois filtrais o pequeno mosquito, mas engolis um camelo!” (Mt 23, 23-24). Infelizmente acontece: podemos condenar quem usa um boné na igreja e ao mesmo tempo não condenar o próprio descaso pelos enfermos de nossa paróquia.
- “Por que vês tu o cisco no olho de teu irmão e não reparas na trave que está no teu olho? Como será possível enxergar uma besteirinha de nada, um insignificante cisco, e até mesmo um pouco de poeira no olho de uma pessoa? Para que isso se torne possível eu tenho que ter uma trave, uma viga, no meu olho: eu tenho que ter o olho “estragado”, atravessado por uma viga, que me deixa com o “olho mau”, não saudável; o que me leva a enxergar sempre maldade em tudo. Isto é: eu só vejo o cisco no olho do irmão (de fato, o irmão erra) porque eu tenho uma trave no meu. E se eu tenho e carrego uma trave no meu olho certamente eu estou com a mente disforme, morta, completamente cego, com o olho doente: não sou mais capaz de ver as coisas como são de fato, torno-me incapaz de conhecer as pessoas e a Deus como são na verdade.
O olho mau não é inocente. O olho mau visa condenar. Na parábola do filho pródigo, o pai não faz questão de ouvir a confissão dos males que o filho tinha cometido, mas faz questão de abraçar o filho que retorna, que abandona o mal. Já aquele que tem a trave no olho fica procurando o cisco no outro só para ter um motivo de condená-lo. Quem tem a viga no olho e condena o outro, na verdade, encontra-se em aversão a Deus que disse: “Não julgueis”.
Ora, se o Juiz supremo e Senhor nos disse: “Não julgueis e não condeneis” (Lc 6, 37), então, quando eu reparo o pecado do outro, julgo o outro e o condeno como merecedor do pior, eu, na verdade, estou julgando a Deus como um péssimo juiz, e eu me faço o juiz supremo. No fim das contas, estou rejeitando a Deus com “o tal do seu amor” para com seus filhos bons e maus (“... o Altíssimo que é generoso com ingratos e maus” (Lc 6, 35)..
- “... tira primeiro a trave do teu olho e depois enxergarás para tirar o cisco do olho de teu irmão”.Vivendo em família e em comunidade, cada um dos membros pode ajudar o irmão no processo de superar vícios e pecados ("Quem era ladrão não torne a roubar, antes, trabalhe seriamente por realizar o bem com as suas próprias mãos, para ter com que socorrer os necessitados. Nenhuma palavra má saia da vossa boca, mas só a que for útil para a edificação, sempre que for possível, e benfazeja aos que ouvem. ... Toda amargura, ira, indignação, gritaria e calúnia sejam desterradas do meio de vós, bem como toda malícia. Antes, sede uns com os outros bondosos e compassivos. Perdoai-vos uns aos outros, como também Deus vos perdoou, em Cristo” - Ef 4, 29-32). Nosso Senhor “somente” nos adverte que o primeiro serviço a fazer é se corrigir. Depois tem outro serviço: acatar o irmão tal como ele é. E, por fim, outro serviço: advertir o irmão.
- “Uma árvore boa não dá frutos maus, uma árvore má não dá bom fruto. Porquanto cada árvore se conhece pelo seu fruto. Não se colhem figos dos espinheiros, nem se apanham uvas dos espinheiros” (vv. 43-44).
A árvore é símbolo do homem mortal que tem suas raízes na terra e ao mesmo tempo almeja e é propenso ao céu, dirigindo-se ao alto em busca de vida e vida do Eterno.
É simples, natural e espontâneo que um pé de limão dê limões. Assim, eu ajo de acordo com minha natureza. Qual minha natureza? Pelos meus frutos, descubro se participo da natureza divina: “Mas o fruto que o Espírito produz em nós é: o amor, a alegria, a paz, a paciência, a bondade, a delicadeza no trato com os outros, a fidelidade, a brandura, o domínio de si próprio” (Gal 5, 22). Mas existe também a árvore má, o coração malvado que vive no pecado. A árvore má gera frutos que murcham e apodrecem, frutos mortíferos, que contaminam outros frutos, levando-os à putrefação: “... imoralidade e sensualidade, ânsia insaciável de prazeres carnais; culto a ídolos, prática de bruxarias; inimizades, disputas, invejas, irritações, sectarismo, falsas doutrinas; críticas e ódios que trazem a morte e o assassínio, bebedeiras e glutonarias” (Gal 5, 19-20).
- “O homem bom tira coisas boas do bom tesouro do seu coração, e o homem mau tira coisas más do seu mau tesouro, porque a boca fala daquilo de que o coração está cheio” (v. 45).
Para além de toda palavra dita (que pode ser só “blá-blá-blá”) e de tantas práticas exteriores (que podem ser fingidas), o princípio do bem e do mal está no coração, na mente humana. O bom coração (a boa mente, os bons olhos), quando fala contagia o ambiente de amor, alegria e paz. O mau coração (a mente má, o olho mau) quando fala contagia o ambiente de egoísmo, de inveja, de ciúmes, de iras, contendas, intrigas.
Devemos saber que o fruto primeiro e fundamental que o coração bom ou mau gera é a palavra (“... a boca fala daquilo de que o coração está cheio”). Neste sentido, vale a pena ler São Tiago: “...Considerai como uma pequena chama pode incendiar uma grande floresta! Também a língua é um fogo, um mundo de iniquidade. Todas as espécies de feras selvagens ... têm sido domadas pela espécie humana. A língua, porém, nenhum homem a pode domar. É ... cheia de veneno mortífero. Com ela bendizemos o Senhor, nosso Pai, e com ela amaldiçoamos os homens, feitos à semelhança de Deus. ... O fruto da justiça semeia-se na paz para aqueles que praticam a paz. ... Meus irmãos, não faleis mal uns dos outros. Quem fala mal de seu irmão, ou o julga, fala mal da Lei e julga a Lei. E se julgas a Lei, já não és observador da Lei, mas seu juiz. ... quem és tu, que julgas o teu próximo? (Tg 3-4).