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Homilia do XIV Domingo do Tempo Comum - ano B / Frei João Santiago

Publicado por Frei João de Araújo Santiago | 07/07/2018 - 10:42

XIV Dom Comum (Marcos 6, 1-6)

“Se fosse outro, sim, acreditaríamos, mas este ái...”

1."Depois, ele partiu dali e foi para a sua pátria, seguido de seus discípulos. 2.Quando chegou o dia de sábado, começou a ensinar na sinagoga. Muitos o ouviam e, tomados de admiração, diziam: Donde lhe vem isso? Que sabedoria é essa que lhe foi dada, e como se operam por suas mãos tão grandes milagres? 3.Não é ele o carpinteiro, o filho de Maria, o irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? Não vivem aqui entre nós também suas irmãs? E ficaram perplexos a seu respeito. 4.Mas Jesus disse-lhes: Um profeta só é desprezado na sua pátria, entre os seus parentes e na sua própria casa. 5.Não pôde fazer ali milagre algum. Curou apenas alguns poucos enfermos, impondo-lhes as mãos. 6.Admirava-se ele da desconfiança deles. E ensinando, percorria as aldeias circunvizinhas." 

- Jesus na sinagoga ensina e encanta (“... tomados de admiração”). Diante de um ensinamento coisa boa é se perguntar: “Será verdade, nos fará bem tal ensinamento?” Se realmente um ensinamento é bom, eu que escuto sou chamado a mudar minhas atitudes para melhor. No entanto, no Evangelho de hoje, os ouvintes de Jesus faziam outras perguntas: “Donde lhe vem isso? Que sabedoria é essa que lhe foi dada, e como se operam por suas mãos tão grandes milagres? Não é ele o carpinteiro, o filho de Maria, o irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? Não vivem aqui entre nós também suas irmãs? E ficaram perplexos a seu respeito”. É como se fizessem tais perguntas e reprovações: “Como é que esse ‘falido e fracassado’, filho de outro ‘falido e fracassado’, consegue falar tão bem e fazer milagres?”

“Falido e fracassado?”. Isso mesmo! Naquela época e região o bom trabalhador se ocupava da terra. Quando nada tinha dado certo, passava a ser um operário, um carpinteiro, por exemplo. Identificando a Jesus como “carpinteiro”, como filho de carpinteiro (cf. Mt 13, 53ss) procuravam desclassificar socialmente a Jesus e sua família. Chamá-lo de “filho de Maria” também era uma ofensa, pois entre os judeus a identidade é dada pelo pai. Dizer que era “Filho de Maria”, para eles, não deixava de ser uma ofensa a Jesus, Maria e José. Era também considerar Jesus como um cidadão de segunda categoria, sem legalidade, sem herança, sem genealogia, sem referência ao pai Abraão, o qual todo bom judeu se sentia ligado.

- Os ouvintes de Jesus, mesmo diante de tanta sabedoria e milagres, se negam a acatar a Jesus. Não dão ouvidos a Jesus, mas talvez dessem ouvidos a alguém que fosse filho de algum dos poderosos da região. A Jesus conheciam, assim como aos seus parentes, pois eram todos da mesma cidadezinha. Parece até que não acreditam em gente da sua gente. Parece até que se desprezam. Quem sabe não olharam as mãos de Jesus, mãos calejadas de um carpinteiro? Quem sabe não compraram alguns cabos de enxada, mesinhas, cadeiras ou banquinhos feitos pelas mãos de nosso Salvador? E, assim, se escandalizaram de Nosso Senhor, e, por fim, rejeitaram-no, desprezaram-no, e, como se diz hoje, descriminaram-no.

- Resistem àquela verdade: “O verbo de Deus se fez carne e habitou entre nós”. Resistem ao mistério da encarnação que apregoa a presença de Deus no cotidiano. Em definitivo, estava “na cara” a verdade, o bem, o belo (“... tomados de admiração, diziam: ‘... Que sabedoria é essa que lhe foi dada ... – e-  por suas mãos tão grandes milagres?’”), mas os ouvintes preferiram rejeitar a pessoa de Jesus a se renderem ao “novo” que aparecia em suas vidas e os deixava “tomados de admiração”. E não só! Passaram a atacar a pessoa do divino Mestre, sua origem, seu trabalho, sua paternidade e maternidade. Infelizmente o ser humano quando endurece o coração e se torna contumaz e não cede nem que um morto ressuscite: “Se não escutam a Moisés, nem aos Profetas, eles não acreditarão, mesmo que alguém ressuscite dos mortos” (cf. Lucas 16, 19ss).

Resistindo ao Galileu, ao carpinteiro Jesus, é como se cada um dissesse a si mesmo: “Não o aceito e o desprezo, ele nada tem a ver comigo, mesmo “mexendo” comigo”. De fato, o Messias Jesus “mexia” com a idéia fixa de um Messias bem “etiquetado” como uma divindade que deveria se manifestar do jeito que imaginavam, desejavam e queriam.

- O presente, o “aqui e agora”, o cotidiano, a vida real. Aceitar o Senhor como “Jesus de Nazaré”, como filho de Maria, carpinteiro e com aqueles parentes... é aceitar a “escada de Jacó”, isto é, “a terra está no céu, em Deus e o céu, Deus, está na terra”  (“... era posta na terra uma escada cujo topo tocava nos céus; e eis que os anjos de Deus subiam e desciam por ela.  E eis que o Senhor estava em cima dela ...  Acordado, pois, Jacó do seu sono, disse: ‘Na verdade o Senhor está neste lugar, e eu não o sabia’.  E temeu e disse: ‘Quão terrível é este lugar! Este não é outro lugar senão a Casa de Deus; e esta é a porta dos céus’” – Gn 28, 10sss).

A realidade divina, a presença de Deus, do seu Reino, entre nós, está profundamente entrelaçada, emaranhada, com a nossa terra, o nosso dia-a-dia, nosso cotidiano, nossos quefazeres, nossos encontros e desencontros do dia, em minha realidade pessoal, em meus sentimentos, na minha pessoa como homem ou como mulher, em minhas relações familiares e conjugal, em meu trabalho e no meu ganha-pão, na minha saúde ou enfermidade e também no próximo (cf. Mt 25, 32ss): não há condição humana que não tenha, ao seu lado, a presença do Senhor. “Não desprezeis a vossa carne”, disse Isaias. Nossa carne, nossa vida real, lugar e oportunidade “única” de encontro com o Senhor e o sentido maior da vida. E não adianta andar em busca de “mundos e fundos” (charlatões, seitas, romances quaisquer, vaidades, etc.) deixando de lado a “carne” real de cada dia e da vida inteira, minha história de vida.

Valorizemos, portanto, o cotidiano, principalmente os encontros e “desencontros” do dia-a-dia. Na verdade, a questão maior não é que o Senhor e o sentido maior da vida não se façam presentes, pois o drama é que tantas vezes não reconhecemos a Ele. E não O reconhecemos porque não acolhemos sua sabedoria e seus sinais, preferindo permanecer em nossas própria expectativas e em nossos próprios esquemas mentais: quanta resistência!

Todos os dias o Senhor Deus se mostra “na carne” (nas coisas da vida, nos eventos do dia, nas pessoas, em nós mesmos) e nós continuamos atrás dele como se “desencarnado” fosse. E, indo por esse rumo, deixamos passar a oportunidade de nos tornamos, também nós, filhos de Deus, tal como o Filho de Deus que se fez carpinteiro. O “humano”, a “carne”, está prenhe de Espírito, não é uma coisa qualquer (cf. 2 cor 5, 16).

- Quando criança meus olhos sempre caiam em um livro do meu pai que tinha um titulo estranho. Não conseguia entender aquele título. O titulo era: “Só Deus é humano”. Então podemos bem imaginar o Pai eterno que nos dá seu Filho enquanto este se faz carne, se faz humano, no ventre da Virgem Maria. Deus entre nós, o Filho Jesus aprende a ser carpinteiro com o pai carpinteiro José, convive com todos naquela cidadezinha chamada Nazaré, leva uma vida marcada pelo trabalho, pela família, pela vizinhança, pela educação, pela religião (“... semelhante a nós em tudo, com exceção do pecado" – Hb 4, 15). Qual é convite? Qual é a mensagem? Qual é a moral da historia? É que deixemos de lado nossas manias de grandeza, nossos desejos religiosos de vingar, abater, de julgar a uns salvos e a outros perdidos. Passemos, portanto, a contemplar, perceber e deslindar a presença de Deus no jovem Rabi e carpinteiro, em Jesus filho de Maria e de mãos calejadas e pés de andarilho: tão humano, tão divino. Os judeus pedem sinais, os gregos procuram sabedoria; nós, entretanto, proclamamos a Cristo crucificado, despojado, humano, glorioso na cruz (cf. 1Cor 2, 22-23).

- O Verbo de Deus se faz nosso irmão (teve mãe e pai, foi educado, trabalhou, conviveu, experimentou a morte). Nossos limites e fragilidades não são obstáculos para encontrá-lo. Na verdade, Ele quer se fazer presente, quer criar comunhão e amor justamente com os humanos e como humano (“Tomei, comei, bebei, isto é meu corpo e sangue; aprendei de mim que sou humilde de coração; vinde a mim todos vós cansados...”). Mas, não! Preferimos a voz da serpente (“Vós sereis como deuses, não humanos”), preferimos ser um super-homem, uma mulher-maravilha, superando os limites, não precisando de comunhão com ninguém, mas se bastando a si mesmo. E, assim, desprezando nossa humanidade, terminamos desprezando os outros simples mortais elegendo poderosos que também não querem ser humanos, mas divos, divas, estrelas.

- “Mas Jesus disse-lhes: Um profeta só é desprezado na sua pátria, entre os seus parentes e na sua própria casa. Não pôde fazer ali milagre algum. Curou apenas alguns poucos enfermos, impondo-lhes as mãos” (vv.4-5). O resultado da nefasta tendência a desprezar o “simples humano” é que terminamos sem nenhum milagre na vida, isto é, passamos somente a assistir o desmoronar paulatino dos nossos castelos de sonhos, desconhecendo por completo a admiração da vida, o louvor a Deus, as atitudes de gratidão.

- No final da passagem, as mãos rejeitadas, aquelas mesmas mãos de um carpinteiro rejeitado “Curou ... alguns ... enfermos, impondo-lhes as mãos”.

- “E ensinando, percorria as aldeias circunvizinhas”: as mãos calejadas ....tirarão outros do desprezo: “Certa feita, Jesus ... disse: ‘Deixem que as crianças venham a mim e não proíbam que elas façam isso, pois o Reino de Deus é das pessoas que são como estas crianças. Eu afirmo a vocês que isto é verdade: Quem não receber o Reino de Deus como uma criança nunca entrará nele’. Então Jesus abraçou as crianças e as abençoou, pondo as mãos sobre elas”.

Sobre o autor
Frei João de Araújo Santiago

Frade Capuchinho, da Província Nossa Senhora do Carmo. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Mestre em Teologia Espiritual. Tem longa experiência como professor, seja no Brasil, como na África, quando esteve como missionário. Por vários anos foi formador seja no Postulantado, como no Pós Noviciado de Filosofia. Atualmente mora em Açailândia-MA. Já escreveu vários livros e muitos artigos.