Homilia do XIV Domingo do Tempo Comum - ano C / Frei João Santiago
XIV Domingo do Tempo Comum Lucas 10, 1-12.17-20
-“Depois disso, designou o Senhor ainda setenta e dois outros discípulos e mandou-os, dois a dois, adiante de si, por todas as cidades e lugares para onde ele tinha de ir” (v. 1). Todo ser humano que vem a este mundo merece dar-se conta que é filho de Deus e amado por Ele. A missão existe a fim de que Deus seja tudo em todos e em todas as coisas, a fim de que sejamos irmãos de todos. Deus como Pai “sofre” enquanto vê seus filhos separados e divididos.
Porque seguimos ao Senhor, somos enviados por Ele: vamos em direção ao outro, superemos o egocentrismo. Quem ama se encontra dirigido a quem ama, e como é bom amar. Neste sentido, ser missionário não é sacrifício, mas tarefa que no fundo todos nós desejamos quando não traímos a nós mesmos.
“Dois a dois” como testemunhas autênticas de uma vida comum, de amor fraterno e de amor na diferença. “Dois a dois” para ajudar-se reciprocamente, como princípio de comunidade, como sinal de amor, como sinal de um Pai comum que une os dois.
“Mandou-os adiante de si” para testemunharem a vida nova, a vida comum, para que fique claro que somos todos filhos de Deus e que Deus ama a todos infinitamente de tal modo que se deixa crucificar antes que condenar.
O Senhor se faz presente no anúncio, pois onde há “dois a dois” há amor e Deus é amor. Assim, Deus é anunciado como salvação, como Aquele que funda o “dois a dois”, a família, a comunidade humana. Sem o Messias Jesus, sem o Deus de Jesus, não temos como escapar da maldição e da guerra fratricida na terra. Quando anunciamos o Filho, estamos propondo a todos os homens da face da terra o amor do Filho para com todos os irmãos, a fim de que todos reconheçam o Pai comum e passem a viver como irmãos. Exercer a missão do Senhor é questão de vida ou morte, de salvação ou perdição da humanidade. Importa que o “outro” conheça, através do meu “dois a dois” (da minha vida comunitária e familiar), o amor do Pai e se torne um filho que aceite os outros filhos do Pai.
Cidades, casas e lugares. Nossas relações íntimas, familiares, de amizade, interpessoais merecem receber um anúncio. Nossas relações sociais em cidades tão marcadas pela violência de todo tipo (Trânsito, agressão física, assaltos, roubos, corrupção) e nossa vida em nossos lares tão cheia de indiferença e falta de alegria, merecem o “Shalom”, o gosto de viver. Jesus não esquece de enviar os missionários também a lugares onde não há pessoas, pois toda a criação geme em dores de parto na espera da redenção, e, afinal, todo o planeta merece ser impregnado do amor de Deus.
“... para onde ele tinha de ir” em busca do rosto de cada ser humano. O Senhor vem quando o acolhemos. A Virgem Maria disse “sim”, e Ele veio e nela fez morada. O senhor não está longe, e quando vem, um mundo velho se acaba, e surge o mundo novo marcado pela hospitalidade, pela recepção e anuncio do Evangelho, e pelo amor.
“Disse-lhes: ‘Grande é a messe, mas poucos são os operários. Rogai ao Senhor da messe que mande operários para a sua messe’” (v. 2). Grãos maduros em risco de se perderem. Nosso Senhor olha positivamente as pessoas. Segundo Ele, elas estão sempre prontas para o amor, maduras para passarem a viver como filhas de Deus. Estão desejando, aspirando e esperando... os “dois a dois”; faltam somente conhecerem o “anúncio-presença” do Senhor que se faz vivo no testemunho dos missionários que vão “dois a dois” e desarmados ao seu encontro. A questão missionária é gravíssima: há o risco que os grãos murchem, sequem ou e apodreçam, não se descubra a filiação divina, a vida de irmãos, a vida a “dois a dois”, e aí a vida se perde, torna-se uma paixão inútil.
“Ide, eis que vos envio como cordeiros entre lobos. Não leveis bolsa nem mochila, nem calçado e a ninguém saudeis pelo caminho” (vv. 3-4). “Como cordeiros”. O cordeiro e a ovelha quando vivos dão leite, alimento, lã, vestido, e quando morrem dão o couro que se torna veste e a própria carne como alimento. Realmente, em qualquer situação, geram vida, não devoram a vida de ninguém. O missionário de Cristo, como cordeiro em meio aos lobos, existe para estancar a sangria do mundo, o mal do mundo, para vencer o mal, para servir a todos. De fato, quando é aceito, oferece a possível fraternidade, e quando é rejeitado ou “morto”, como Jesus, testemunha o perdão e deixa no ar a semente de novos cristãos, a solicitação de uma possível irmandade, a marca de um amor que vence o ódio, de uma vida que vence a morte. Sem bolsa e mochila, sem calçado e testemunhando que podemos ser irmãos (de “dois em dois”), o missionário se apresenta desarmado, faz por onde ser acolhido, facilita a aproximação e o anúncio.
Jesus, no seu Evangelho, “força” uma situação quando coloca algumas condições para nos enviar em missão. Tais condições exigem que deixemos de ser lobos e passemos a ser cordeiros. Enviados em missão não devemos levar bolsa cheia de dinheiro, nem mochila plena de provisão, nem sandálias típicas de soldados e de homens influentes e poderosos.
O dinheiro é capaz de comprar bens e tesouros, coisas por gostar e se amarrar e que amarram, de fato, o coração. O coração deve ser dado a algo maior: deve ter interesse no bem, no bem do outro rosto humano. Sem dinheiro, sem provisões e sem influências, “só tenho eu mesmo” para ir ao encontro do outro.
O pão acumulado na mochila: pão que nunca sacia. O pão que sacia é o partilhado e que cria fraternidade, pois o homem não vive só de pão, mas, acima de tudo, vive de encontro com Deus e com outro ser humano.
É muito difícil encontrar-se com alguém quando este alguém possui coisas e influências. Quando eu tenho posses, a tendência é que se aproximem de mim como subalternos ou com o desejo de tirar o que é meu: posses e bens, de fato, tendem a impedir o encontro de irmãos. Quando não se tem posses por ofertar, só resta dar a si mesmo e entrar em amizade não interesseira com o outro.
“... a ninguém saudeis pelo caminho”. A missão é urgentíssima! (cf. 2Re 4, 29).
- “Em toda casa em que entrardes, dizei primeiro: Paz a esta casa! ... Permanecei na mesma casa, comei e bebei do que eles tiverem, pois o operário é digno do seu salário. Não andeis de casa em casa ...”(vv. 5-8).
“Paz a esta casa!”: chegou até vós o Reino de Deus. De fato, quando os discípulos de Jesus vão ao encontro e o irmão o acolhe, o Reino acontece, pois alguém foi acolhido como irmão e todos se tornaram filhos do mesmo pai. Tu te tornas filho de Deus quando acolhes alguém: isto é o Reino de Deus acontecendo. Jesus exige do missionário (“Não leveis bolsa nem mochila, nem calçado”) para facilitar a acolhida. Quando eu vou ao encontro do outro em estado de precisão, em necessidade, é mais fácil que eu seja acolhido, e não as minhas coisas. Serei acolhido realmente como outro, como irmão, como um igual a ele, como homem: chegou a ele o Reino de Deus, pois ele acolheu alguém. O Salvador Jesus será apresentado como o pobre entre todos, o desarmado entre todos, como Aquele Deus que faz uma proposta amorosa.
“Permanecei na mesma casa, comei e bebei do que eles tiverem”. Aqui temos uma imagem da comunidade cristã, da Igreja, espaço de convivências e de alegria com os irmãos. A Igreja nasce e cresce lá onde o hóspede missionário necessitado de irmandade é acolhido, quando quem acolhe se faz igual ao Pai que acolhe seus filhos e se faz igual ao Filho que ama os outros filhos. Lugar de perdão, amor e festa.
- “Mas se entrardes em alguma cidade e não vos receberem, saindo pelas suas praças, dizei: Até o pó que se nos pegou da vossa cidade, sacudimos contra vós; sabei, contudo, que o Reino de Deus está próximo. Digo-vos: naqueles dias haverá um tratamento menos rigoroso para Sodoma” (vv. 10-12).
Devemos ser bem conscientes de que em toda relação existe a possibilidade da rejeição. Os missionários podem ser rejeitados, mesmo agindo bem. Pode ser que pessoas estejam dominadas unicamente pelo desejo de serem como lobos vorazes, e, por isso, podem também perseguir e matar. Nesta situação, a Cruz de Cristo dá sentido: no momento no qual a missão parece falida, o cordeiro realiza o seu máximo: dá a vida, mostra um amor mais forte do que todo mal, amor incondicional, sabendo que até o “lobo” deseja, no fundo, ser cordeiro. Importa que se anuncie também neste momento: “... sabei que o Reino de Deus está perto”, está às tuas portas, bem ao teu alcance, e, batendo a poeira dos pés, o missionário de Cristo anuncia e chama a atenção de que estão rejeitando o Reino de Deus. O cordeiro (o missionário) sofre por isso e estará disposto a ser acolhido, quando for aceito.
- “Voltaram alegres os setenta e dois, dizendo: ‘Senhor, até os demônios se nos submetem em teu nome!’.Jesus disse-lhes: ‘Vi Satanás cair do céu como um raio. Eis que vos dei poder para pisar serpentes, escorpiões e todo o poder do inimigo. Contudo, não vos alegreis porque os espíritos vos estão sujeitos, mas alegrai-vos porque os vossos nomes estejam escritos nos céus’” (vv 17-20).
“Voltaram alegres os setenta e dois”: Alegres voltaram porque encontraram tantos irmãos e porque ao Senhor voltaram.
“Senhor, até os demônios se nos submetem em teu nome!”: a vitória sobre os males chegou; Satanás foi destronado, ele que procura ocupar o lugar de Deus e tenta mentir sobre Deus (A serpente insinuou que Deus fosse ciumento em relação ao ser humano – cf. Gn 3.)
“Eis que vos dei poder para pisar serpentes, escorpiões e todo o poder do inimigo”. Mais do que submeter demônios, os discípulos missionários podem pisar serpentes e escorpiões, voltaram ao estado paradisíaco no qual os homens vivem sem ameaças, sem medos, angústias e ansiedades. Porém há uma alegria maior: indo ao encontro dos irmãos, se tornaram filhos de Deus e o nome deles estão em Deus, escritos nos céus.
Ainda sobre a serpente e o escorpião. O veneno da serpente encontra-se na boa de onde saiu a mentira original que afastou Eva e Adão do paraíso e que pode envenenar as nossas vidas. O Evangelho abate a serpente enquanto anuncia que Deus é ao nosso favor, não nosso concorrente (Cf. Gn ). O escorpião tem o veneno na cauda, símbolo da morte que está sempre à nossa espreita. Enganados pela serpente julgamos que no fim de nossos dias nesta terra não nos espera uma maior comunhão com Deus, mas somente a morte (o escorpião). A missão é também para libertar.... não podemos viver uma vida hipotecada pela mentira de que Deus reserve a vida só para Ele e hipotecada pelo medo da morte. Libertos da serpente e do escorpião tenho minha existência reconciliada.
“... alegrai-vos porque os vossos nomes estejam escritos nos céus”. Nosso presente como missionário (“Dois a dois” ao encontro dos irmãos) nos faz divinizados, filhos de Deus, igual ao Filho porque amamos com o mesmo amor do Pai. Temos a mesma identidade de Deus. Ser missionário é encontrar a identidade mais profunda, a identidade de filho que é amado e ama os irmãos como é amado pelo Pai.