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Homilia do XIX Domingo do Tempo Comum - ano A - Frei João Santiago

Publicado por Frei João de Araújo Santiago | 08/08/2020 - 10:05

XIX Domingo do Tempo Comum - ano A - Mateus 14, 22-33

“Quem quer passar além do Bojador Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele é que espelhou o céu” (Fernando Pessoa).

A Palavra e o Pão: alimentos para travessias

- “Logo depois, Jesus obrigou seus discípulos a entrar na barca e a passar antes dele para a outra margem” (v. 22).

Jesus cria uma situação (“obriga”) e leva seus discípulos a saírem do cômodo e a levarem a Palavra de prodígio, o anúncio da partilha que tinha multiplicado os pães e saciado mais de cinco mil homens, sem conta as mulheres e crianças. Anúncio este testemunhado pelos doze cestos cheios de pães que carregavam na barca.

Assim como naquele dia, o Senhor Jesus nos impele com o seu Espírito a anunciar e a fazer acontecer a abundância de saciedade provocada pela Palavra que partilha e multiplica “pães”. A Palavra de Deus é ação misericordiosa de Deus entre nós e gera união, alegria e sacia o coração do homem.

Tantas de nossas comunidades não fazem mais do que uma pastoral de manutenção; não ousam partir, ir aos “desconhecidos” (que não nos conhecem como cristãos); não se tornam uma “Igreja em saída”. Prefere-se a tranquilidade dos próprios espaços e dos próprios conhecidos e “engajados” nas pastorais. Aquela barca dos discípulos foi usada para alcançar uma margem desconhecida. Como estamos usando nossos bens, recursos, veículos, tempo, instituições, organizações, associações, amizades? Ao serviço da expansão do Reino ou ao próprio serviço, como se aqui tivéssemos morada permanente?

- Solidão, não isolamento. De fato, São Mateus nos narra que Jesus “... subiu à montanha para orar na solidão” (v. 23). Rezar ou orar é entrar em comunhão com o grande Outro, com Deus, nossa Origem e Princípio. Em solidão, mas não solitário.

- “Entretanto, já a boa distância da margem, a barca era agitada pelas ondas, pois o vento era contrário. Pela quarta vigília da noite, Jesus veio a eles, caminhando sobre o mar. Quando os discípulos o perceberam caminhando sobre as águas, ficaram com medo: ‘É um fantasma!’ disseram eles, soltando gritos de terror. Mas Jesus logo lhes disse: ‘Tranqüilizai-vos, sou eu. Não tenhais medo!’” (vv. 24-27).

Ondas, mar, noite e águas representam o monstro do caos, as trevas, o princípio do mal, a desordem, o medo, o precipício da morte. No “mar”, não existem referências, seguranças.

Ondas que batem, mar, noite, águas agitadas e ventos contrários. No “mar”, a pessoa está à mercê do acaso, sem apoio e sem “querer próprio”, pois no “mar” a pessoa é conduzida para um possível abismo mortal: que situação!  A noite representa a desorientação da vida quando não mais se sabe por onde andar por falta de luz. Na noite, não há mais chance ou não se há mais forças para se sair do “aperreio”. Na noite, não se há mais ninguém por confiar. Na noite, praticamente não se há mais esperança.

No “alto mar da vida” nos sentimos a sós, impotentes e aí somos provados, pois, na verdade, só em pleno “mar agitado” é que aparece quem realmente somos enquanto desaparecem as nossas aparências. Pretensões, arrogância, petulância e orgulho são abatidos no “mar agitado”.

O “alto mar da vida” provou que os discípulos não tinham entendido o significado da “partilha”, isto é, do pão que levavam na barca. Os discípulos até que estavam na mesma barca, mas certamente não estavam unidos.

A vida não deve ser necessariamente uma tormenta, um “alto mar agitado”! Depende de como a vivemos. Podemos viver como alguns de Corinto: “... ouço dizer que, quando se reúne a vossa assembléia, há desarmonias entre vós. ...Desse modo, quando vos reunis, já não é para comer a ceia do Senhor ... mal pondes à mesa, cada um se apressa a tomar sua própria refeição; e enquanto uns têm fome, outros se fartam. ... Esta é a razão por que entre vós há muitos adoentados e fracos, e muitos mortos...” (1Cor 11, 17-34);

ou podemos viver a verdade revelada por São João: “Nós sabemos que fomos trasladados da morte para a vida, porque amamos nossos irmãos” (1Jo 3, 14).

E mais: quando viram Jesus caminhando sobre o mar ficaram apavorados. Por não viverem o dom da partilha entre eles e por não manterem a fidelidade para com Deus, passam a viver o medo diante do Senhor. De fato, não vivendo em partilha do que somos e temos, podemos ser pegos de surpresa quando o Senhor vem ao nosso encontro de uma forma até então desconhecida por nós.

O Senhor reconhece a nossa fraqueza, e por isso sempre nos dirá, como disse naquela noite agitada, “Tranquilizai-vos, coragem, sou Eu, não tenhais medo”.

- “Pedro tomou a palavra e falou: ‘Senhor, se és tu, manda-me ir sobre as águas até junto de ti!’ Ele disse-lhe: ‘Vem!’ Pedro saiu da barca e caminhava sobre as águas ao encontro de Jesus. Mas, redobrando a violência do vento, teve medo e, começando a afundar, gritou: ‘Senhor, salva-me!’ No mesmo instante, Jesus estendeu-lhe a mão, segurou-o e lhe disse: ‘Homem de pouca fé, por que duvidaste?’ Apenas tinham subido para a barca, o vento cessou. Então aqueles que estavam na barca prostraram-se diante dele e disseram: ‘Tu és verdadeiramente o Filho de Deus’” (vv. 28-33).

Pedro sente o fascínio da beleza do Senhor Jesus vencedor do mal, da morte, do mar agitado. Pedro deseja também experimentar tal soberania e pede que Jesus seja Deus para ele, o faça caminhar, o faça vencedor do mal, da morte e do mal. E, de fato, enquanto mantém os olhos fixos em Jesus, Pedro consegue, se torna criatura nova e o mal, a morte e o mar agitado não mais o perturbam.

- Jesus disse para Pedro: “Vem”. É desejo de Deus que caminhemos sobre qualquer “mar agitado” que seja. Cabe a nós permitir que o tal desejo de Deus se apodere de nós. Nossa Senhora, dando o seu “sim” para Deus, nos deixa o exemplo. Em outras palavras: caminhar sobre “águas agitadas” só é possível se eu, deixando-me de lado, fixo-me em outro olhar que me olha, em outro desejo que me deseja, em outro amor que me ama. Aqui não mais se fixa em si mesmo, não mais se olha a si próprio, não há mais deleite egocêntrico, não existe mais amor próprio. Naquele dia, Pedro andou sobre as águas porque Outro lhe disse: “vem ao meu encontro!”; porque Pedro mantinha os olhos fixos em Jesus em busca de encontrá-lo.

Que o bom Deus nos livre da falência, do fracasso, do afogamento. Pedro passou tal perigo. É perigoso alimentar a própria justiça (aqui e agora, quero do meu jeito), temer o futuro, confiar nas próprias forças, iludir-se em vaidades, desistir diante de tribulações; é perigoso pensar só em si (egoísmo) até ao ponto de esquecer a Deus (Pedro tirou os olhos de Jesus e deu atenção ao vento).

Pedro gritou: “Senhor, salva-me!”. Definitivamente, a salvação, a fé, jamais será uma demonstração de uma força que eu possa ter; mas será sempre um apelo Àquele que é o Confiável, o Fiel: no mesmo instante, Jesus estendeu-lhe a mão e segurou a Pedro.

Sobre o autor
Frei João de Araújo Santiago

Frade Capuchinho, da Província Nossa Senhora do Carmo. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Mestre em Teologia Espiritual. Tem longa experiência como professor, seja no Brasil, como na África, quando esteve como missionário. Por vários anos foi formador seja no Postulantado, como no Pós Noviciado de Filosofia. Atualmente mora em Açailândia-MA. Já escreveu vários livros e muitos artigos.