Homilia do XIX Domingo do Tempo Comum - ano C / Frei João Santiago
XIX Domingo do Tempo Comum (Lucas 12, 32-48)
- “Vendei o que possuís e dai esmolas; fazei para vós bolsas que não se gastam, um tesouro inesgotável nos céus, aonde não chega o ladrão e a traça não o destrói. Pois onde estiver o vosso tesouro, ali estará também o vosso coração” (vv. 33-34).
Nosso Senhor Jesus vivia e sentia a vida palpitante de eternidade, vivia de vida eterna, da vida do Eterno, “ancorado” no Pai, no nosso Pai. Ensinou-nos com palavras e gestos que o maior bem que possamos gozar é viver de amor fraterno e viver amados pelo Pai de todos. Jesus nos adverte a não consumi nossos dias de vida nesta terra focados em bens, e não em pessoas. Acumular coisas só por acumular gera um monte de preocupações que não nos deixam tempo para as pessoas e nem mesmo para os familiares. Que os bens deste mundo ajudem ao nosso encontro, e não nos separem. Para além de coisas, o que me pode fazer feliz tem a ver com a minha comunhão com pessoas, com minha fé e confiança em Deus, o perdão dado e recebido, o incentivo e ajuda para que o outro cresça e desabroche em todo o bem do qual é capaz. Só assim não seremos tomados pela ansiedade e construiremos em nós bolsas e tesouro que não se perdem, não se gastam e não se destroem, isto é, vamos alimentando em nós aquela vida íntima que jorra águas de vida eterna.
O ladrão pode roubar o meu tesouro? Se digo que sim, então, só me restam preocupações e ansiedade! Que o nosso tesouro seja aquela humanidade de Jesus: homem admirável, adorável, transparente, verdadeiro, honroso, cheio de compaixão e solidariedade.
- “Estejam cingidos os vossos rins e acesas as vossas lâmpadas” (v. 35). Há pessoas que já vivem estacionados: não esperam mais nada da vida e vão levando... Outros vão caminhando em meio a delírios, fantasias e ilusões as mais variadas possíveis. Jesus aposta em outro estilo de vida. Rins cingidos, calças ou vestes levantadas para facilitar as passadas, para facilitar o trabalho, o serviço, para deixar lugares, para traçar caminhos rumo à liberdade, para se livrar de escravidões. O cristão é aquele que vive o cotidiano com os pés no chão e o olhar para o “mais desse chão”, para o “Alto”. Liberdade não é fazer o que me agrada ou o que escolho, mas é escolher o bem, amá-lo e servir a este bem encontrado. O contrário da liberdade é a escravidão, o embriagar-se de si só que só provoca desgosto, saturação, enjoo de viver. Lâmpadas acesas, pois somos “luz do mundo”, fazemos aparecer a beleza da vida, brilhamos de uma vida na liberdade dos filhos de Deus, no serviço recíproco, longe e distante de tantas mundanidades (“Porque haverá homens amantes de si mesmos, avarentos, presunçosos, soberbos, blasfemos, desobedientes a pais e mães, ingratos, profanos, sem afeto natural, irreconciliáveis, caluniadores, incontinentes, cruéis, sem amor para com os bons, traidores, obstinados, orgulhosos, mais amigos dos deleites do que amigos de Deus, tendo só aparência de piedade” – 2Tm 3, 1-5).
- “Sede semelhantes a homens que esperam o seu senhor, ao voltar de uma festa, para que, quando vier e bater à porta, logo lha abram” (v. 36).
Como é prazerosa uma boa expectativa tal como um noivo esperando o matrimônio, esperando o aconchego de uma família, da esposa e filhos. Toda pessoa carrega consigo o prazer de “descansar” com outra pessoa, ter companhia, amizade, confiança em outra pessoa: “Eis que estou à porta, e bato; se alguém ouvir a minha voz, e abrir a porta, entrarei em sua casa, e com ele cearei, e ele comigo” (Apoc. 3, 20). Esperar no Senhor, ter confiança, é nossa oportunidade de superar toda e qualquer ansiedade, pois é certeza que não estamos vivendo em busca de “não sei o quê” e certeza de que não somos filhos abandonados pelo Pai. Esperar no Senhor é exercer, dia-a-dia, a dedicação na missão que recebemos. É uma espécie de não se preocupar demasiadamente consigo mesmo, pois o foco é o zelo e cuidado com o bem que devemos fazer. Temos que “ligar”, não desligar esta vida que passa com a vida que não passa. O nosso dia-a-dia é uma gestação, e, no final, daremos à luz ao homem que seremos por toda a eternidade. Ser vigilante é ter cuidado com a gestação: “Viver é uma arte, um oficio, só que precisa cuidado, pra perceber que olhar só pra dentro (só pra si) é o maior desperdício: o ... amor pode estar do seu lado. O amor é o calor que aquece a alma. O amor tem sabor pra quem bebe a sua água”.
- “Sabei, porém, isto: se o senhor da casa soubesse a que hora viria o ladrão, vigiaria sem dúvida e não deixaria forçar a sua casa. Estai, pois, preparados, porque, à hora em que não pensais, virá o Filho do Homem (vv. 39-40).
Vimos acima que o senhor ou patrão dos servos vigilantes vem e com eles faz festa. Agora vemos que para o patrão (o dono da casa) não há nenhuma visita agradável, mas um ladrão. Por quê? Ora, para quem só possui e entende a vida como um apropriar-se, para quem se mete a ser somente proprietário de si e de bens, e não espera o Senhor, a vinda do Senhor Deus não parece amigável, mas uma inesperada e surpreendente invasão, uma ofensa, um roubo, uma ocasião de morte enquanto o sujeito vê toda a sua vida indo embora: seus bens e seu próprio eu que nunca descansou em Deus. E se esse dono da casa soubesse a hora do ladrão? Provavelmente se tornaria vigilante, não se entenderia mais como proprietário, mas como bom administrador das coisas do Senhor Deus. Nesta vida, quer queira ou não, só há duas estratégias: ou vivemos marcando a hora de encontro com o “ladrão”, isto é, metidos a ser proprietários absolutos de coisas, pessoas e de nós mesmos ou vivemos indo ao encontro “Esposo” da humanidade, isto é, “metidos” a ser servidos e a servir.
- “Mas, se o tal administrador imaginar consigo: ‘Meu senhor tardará a vir’, e começar a espancar os servos e as servas, a comer, a beber e a embriagar-se, o senhor daquele servo virá no dia em que não o esperar e na hora em que ele não pensar, e o partirá ao meio, e o mandará ao destino dos infiéis” (vv. 45-46).
Infelizmente, pode acontecer, alguém pode reduzir sua vida, consumi-la, aproveitando-se e enganando os outros, e também gastar energia e dias de vida fofocando, levantando suspeitas, juízos, difamações acerca do próximo, e além do mais, levar uma vida desenfreada, inconsequente, desajuizada, embriagando-se de vaidades, drogas, prostituição, ostentação, frivolidades, vulgaridades. Podemos nos perguntar: por que será que alguém baixa o nível a tal ponto? Por que será que a pessoa pode abandonar o seu mais profundo e bonito desejo de vida, de comunidade e de família deixando de gerar belos e verdadeiros frutos na vida? Pode ser que cansou de esperar no Senhor, na sua justiça e bondade. Pode ser também que, na verdade, nunca esperou no Senhor e sempre se comportou loucamente como o senhor absoluto de si, das coisas e de pessoas.
O Evangelho atesta que o Senhor virá e que infelizmente tantos não estarão esperando (De fato, a cada dia o Senhor vem para muitos: muitos falecem). Na ocasião da vinda do Senhor, para aquela pessoa que não o espera, tal vinda será experimentada como uma dilaceração, será como assistir a própria vida sendo separada da vida, dividida da vida, e a pessoa se verá fixada em si mesma, em solidão, distante da alegria de viver. A morte é a fixação eterna, o estabelecimento eterno daquela condição que se levava no tempo. Preocupado que era só com o ter, o possuir e o fazer sofrer a outrem, o péssimo administrador, longe e distante do seu próprio desejo profundo de vida, de amar, de encontrar, de criar vínculos, terá como sorte o destino dos infiéis.
Os infiéis. A infidelidade acontece quando fazemos pouca conta do outro, da outra pessoa. O infiel decide pela sua solidão, não sai de si, sobrevive sugando coisas e pessoas, não conhece a fé, a esperança e nem a caridade. É infeliz enquanto vive atormentado na iminência de perder tudo o que acredita possuir e ter ao seu dispor. O infiel é expressão do homem insensato.