Homilia do XVIII Domingo do Tempo Comum - ano A - Frei João Santiago
XVIII Dom Comum Mateus, 14, 13-21
- “A essa notícia, Jesus partiu dali numa barca para se retirar a um lugar deserto, mas o povo soube e a multidão das cidades o seguiu a pé” (v. 13). Jesus está realizando uma travessia que faz lembrar o “êxodo”, a saída do Egito, a saída da terra da escravidão, da opressão, da injustiça, da saturação da vida, da reclamação e da insatisfação do viver, a fim de adentrar no Reino de Deus, Reino de encontros com Deus e com os demais, Reino de partilha do que somos e temos, de solidariedade com todos, de alegria por viver.
- “Quando desembarcou, vendo Jesus essa numerosa multidão, moveu-se de compaixão para ela e curou seus doentes” (v. 14). Jesus faz uma travessia, um êxodo, sai daquele resto de mundo antigo (a barca), e vê e sente. Importa desvencilhar de tudo aquilo que nos impede de vê e sentir o outro diante de nós. E vendo e sentindo, Jesus, foi impactado, afetado até no mais íntimo, nas entranhas.
Certamente, foi muito impactante para Jesus desembarcar e se deparar com o que não se esperava: uma numerosa multidão (cinco mil homens, sem contar mulheres e crianças). Foi tão impactante que o emocional atingiu o físico. De fato, narra-se que ele sentiu suas entranhas, comoveu-se, compadeceu-se, sentiu a dor dos doentes e enfermos, cuidou deles, cuidou dos fracos, daqueles que caminhavam com muita dificuldade. Tal passagem nos revela que o motivo primeiro da ação, da bem-vinda e benfazeja ação de Nosso Senhor a nosso favor é mesmo sua compaixão diante de nossas dores. A compaixão de Jesus para com a humanidade sofredora é tal que jamais deixará de se consumir, perder forças, à nosso favor. Tal compaixão o levou até a Cruz e permitiu, por exemplo, que a mulher hemorroíssa arrancasse-lhe forças. A compaixão será o seu motivo de combate a fim de que o mal não se propague sobre a terra.
- “Caía a tarde. Agrupados em volta dele, os discípulos disseram-lhe: ‘Este lugar é deserto e a hora é avançada. Despede esta gente para que vá comprar víveres na aldeia’” (v. 15).
Lugar deserto, lugar de necessidades afloradas. O ser humano é um ser de precisão, sente necessidades, sente fome e sede: carece de afeto, de estima, de amizade, de compreensão, de saber, conselho e luz para o caminho, de saúde, de casa por habitar. “Ninguém é uma ilha”: porque sou necessitado, preciso dos outros. Para uma vida plena, saciada e abundante, eu sou chamado: preciso de uma vida partilhada, de um “pão” partilhado, de um “pão” saboreado em comum.
- “Caía a tarde”. A noite chegava, nada de iluminação, fim de dia. Humanamente falando, não havia mais o que fazer. Triunfo das trevas sobre a luz, da morte sobre a vida; triunfo da noite sobre o dia, das impossibilidades sobre o possível; triunfo do deserto, da morte, sobre a vida. Porém, não esqueçamos: o “cair da tarde” no mundo da fé é o início de um novo dia, de uma nova vida, de um mundo inaudito. De fato, o “lusco-fusco” é misterioso, é chamativo, promete, é transitivo, é travessia, é um deixar e largar, é véspera de despertar.
Os discípulos sugerem que se despeça a multidão; sentem o quanto a companhia de tanta gente necessitada de abrigo e de comida é um peso. Os discípulos, seguindo uma lógica mundana e consueta, sugerem que cada pessoa se “arranje” como possa, afronte com as próprias forças os próprios problemas. Para os discípulos a solidariedade é uma quimera (não existe).
- “Jesus, porém, respondeu: ‘Não é necessário: dai-lhe vós mesmos de comer’” (v. 16).
Existe um alimento (um abrigo, uma sobrevivência) que não sacia, que é fruto de negócios (compra e venda) organizados segundo uma certa lógica criada por nós. De fato, os discípulos disseram: “Despede esta gente para que vá comprar víveres na aldeia” (v. 15). Jesus, no entanto, nos ensina que há outro alimento que realmente satisfaz. É o alimento que nasce da gratuidade, que é fruto de uma doação. Alimento que outro me doa, que não é meu, que não me custa. Alimento que doo a outro sem reservas, sem pedir nada em troca. Este alimento sacia.
É bem verdade que vivemos na lei do mercado (lei do consumo, lei da compra e venda de produtos e serviços), mas a vida não pode se resumir a esta lei. A “partilha do pão” narrada no Evangelho de hoje quer centrar a atenção sobre a doação e a partilha do que somos e temos como única forma de nos saciar e de encontrar a paz no corpo e na alma, na família e na sociedade.
- “Mas – disseram eles – nós não temos aqui mais que cinco pães e dois peixes. ‘Trazei-mos’ – disse-lhes ele” (vv. 17-18).
Os discípulos se dão conta que possuem algo, mas não sabem o significado de ter algo. É bem verdade que podemos possuir poucas coisas ou bens e poucos recursos humanos. Porém, isso não é tudo. Não precisamos temer que passaremos necessidades quando Deus entra em ação, isto é, quando colocamos em comum o que temos e somos; quando derrotamos a lei da besta, pois, há, sim, um esquema de compra e venda, um esquema de sobrevivência que esmaga o mais fraco e é regido pelo demoníaco. “... vi outra besta ... com dois chifres ... que falava como dragão. ... e fazia a terra e seus habitantes adorarem a primeira besta ... Também obrigou todos, pequenos e grandes, ricos e pobres, livres e escravos, a receberem certa marca na mão direita ou na testa, para que ninguém pudesse comprar nem vender, a não ser quem tivesse a marca, que é o nome da besta ou o número do seu nome” (Apoc. 13, 11-17).
Que aquilo que somos e que venhamos a ter sejam levados ao altar da solidariedade, pois há uma espécie de impossibilidade da parte de Jesus de agir caso não haja uma nossa colaboração ou uma interação com Ele. O milagre da saciedade existe, mas não esqueçamos que Ele disse: “Trazei-me os pães e peixes que tendes” (v. 18).
- “Mandou, então, a multidão assentar-se na relva, tomou os cinco pães e os dois peixes e, elevando os olhos ao céu, abençoou-os. Partindo em seguida os pães, deu-os aos seus discípulos, que os distribuíram ao povo” (v. 19).
Realmente as coisas mudam quando o que temos e somos são entregues ao Senhor. Não há mais deserto, mas relva (Mandou a multidão assentar-se na relva). Mais do que sentada, a multidão é convidada a quase deitar-se a fim de banquetear-se como pessoas livres. O entardecer some, não há mais escuridão. O deserto floresce. Uma nova luz, um novo dia, faz desaparecer as trevas.
“... tomou os cinco pães e os dois peixes”: Jesus nos ensina a acolher os bens a nós doados para que sejam bem administrados, não meramente possuídos. Que os bens deste mundo jamais se tornem um fetiche (objeto a que se atribui poder sobrenatural ou mágico) , jamais se tornem um ídolo, mas sirvam para produzir vida para mim e outros, para gerar louvor ao Pai e criar contentamento e não guerras e intrigas.
“... elevando os olhos ao céu, abençoou-os”. A vida, o que somos e temos nos veio do Criador, é dom e graça, e somos gratos por isso, reconhecemos a fonte de todo bem e queremos também repetir tal bondade. Eucaristia significa “dar graças”: que a nossa vida se torne eucarística, isto é, cheia de agradecimento, acolhendo tudo como dom por doar-se, e não por reter.
“Partindo em seguida os pães ... ”. Partiu, não multiplicou. Na partilha acontece a saciedade e a exuberância (doze cestos sobraram). O mero multiplicar ou acumular bens, a humanidade já sabe fazer. Neste multiplicar ou acumular, a humanidade também faz experiência que muitos são deixamos com fome e sede, e até mesmo os que possuem continuam com fome e sede de sentido, de alegria, de amor, de esperança, e do próprio Deus. O Evangelho de hoje nos ensina que só a partilha do que temos e somos pode trazer saciedade para todos.
- “Todos comeram e ficaram fartos, e, dos pedaços que sobraram, recolheram doze cestos cheios” (v. 20).
“Todos comeram”: todos são destinados a receberem esta notícia, este Evangelho. Todos nós podemos nos considerar incluídos naquele olhar e naquela compaixão de Jesus.
“Doze cestos cheios”: um para cada tribo de Israel, um para cada mês do ano. Na partilha do que temos e somos, encontramos vida e alimento para todos e para sempre.
- “Ora, os convivas foram aproximadamente cinco mil homens, sem contar as mulheres e crianças” (v. 21). Cinco mil é o número da comunidade primitiva: “... e o número dos fiéis elevou-se a mais ou menos cinco mil” (At 4, 4). A comunidade cristã é capaz desta nova lógica ensinada por Jesus a fim de que todos nós nos sintamos saciados. A comunidade cristã, desta maneira, se torna uma profecia para este nosso mundo tão marcado pela escravidão dos bens que termina por deixar tantos sem um sentido maior para o viver; tão marcado pelo egoísmo e narcisismo que não permitem ver e nem sentir compaixão; tão marcado pela corrupção que impiedosamente produz tanta fome e tanta sede.