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Homilia do XXI Domingo do Tempo Comum - ano C / Frei João Santiago

Publicado por Frei João de Araújo Santiago | 24/08/2019 - 08:42

XXI Domingo Comum (Lucas 13, 22-30)

22.“Sempre em caminho para Jerusalém, Jesus ia atravessando cidades e aldeias e nelas ensinava”.

Jesus ensinava, “lançava” a Palavra que acorda do marasmo da vida, que desperta a consciência e liberta-nos do pecado, da indiferença e do mal. Diante da Palavra somos chamados a tomar decisões, somos provocados a nos perguntar por onde andamos, qual “amanhã” estamos criando para nós. A Palavra é referência para que os nossos dias teçam uma vida frutuosa, não uma vida decadente.

23.“Alguém lhe perguntou: ‘Se­nhor, são poucos os homens que serão salvos?’”.

Todo homem ou mulher que vem a este mundo carrega consigo o desejo de salvação, de viver para sempre, de não se acabar, de não perder o próprio eu, a própria vida, as pessoas que ama e a vida com tudo que nela há de bom e de belo. É por isso que queremos longe de nós as enfermidades, o empobrecimento, os relacionamentos nocivos, as injustiças, o mal, os pecados, a morte.  Querendo salvação desejamos que o mundo ao nosso redor, dentro de nós, próximo e também distante de nós, melhore. As religiões, toda ciência, cada técnica, a inteligência humana e toda filosofia trabalham para isso. Aquela pessoa que perguntou para Jesus (“Se­nhor, são poucos os homens que serão salvos?”) deu-se conta que não bastam os esforços humanos e que o Senhor Deus vem em auxílio dos humanos salvando-os da morte eterna.

“Ele respondeu: 24.‘Procurai entrar pela porta estreita; porque, digo-vos, muitos procurarão entrar e não o conseguirão’”.

Nosso Senhor não fala em quantidade (se são muitos ou poucos), mas convida os seus interlocutores e também a cada um de nós a procurar a “porta estreita”, a se deixar levar pela sua Palavra: “Só entra no Reino dos Céus quem for como uma criança”, isto é, de tal maneira pequeno que se possa passar pela “porta estreita”, de tal maneira pequeno que não seja ameaça a ninguém, malfeitor de ninguém.

Procurar a famosa “porta estreita” significa também entrar em combate, em luta consigo mesmo, uma luta contra as pulsões destruidoras existentes dentro de nós e que nos afastam da dinâmica do perdão, da honestidade de vida, da colaboração em promover o outro, da confiança e abandono em Deus Pai, do agir corretamente, de fazer o bem, de se alegrar com o sucesso do outro. Um dia o próprio Jesus entrou em combate buscando a “porta estreita”: “Disse ao Diabo: ‘Nem só de pão viverá o homem ... Não tentarás o SENHOR teu Deus ... Ao Senhor, teu Deus, adorarás e só a Ele servirás’” (Mt 4, 4-10). Ao dizer tais palavras estava renunciando à certos esquemas que prometem dinheiro e uma vida fácil, a tantos aplausos frívolos que certas multidões estão prontas a fazer a quem gosta de iludir as pessoas e estava renunciado, guerreando e combatendo o poder mundano e uma vã glória mundana.

25.“Quando o pai de família tiver entrado e fechado a porta, e vós, de fora, começardes a bater à porta, dizendo: ‘Senhor, Senhor, abre-nos’, ele responderá: ‘Digo-vos que não sei donde sois’”.

Podemos viver de ilusão. O Evangelho atesta que muitos, iludidos, se julgam aptos e dignos de adentrarem no Reino. De fato, exigem: “Senhor, Senhor, abre-nos”. Vale notar que clamam pelo “Senhor”. Isto significa que “conheciam” e acreditavam no Senhor. Mas, como lemos, há um grave problema e um sério drama que percebemos na resposta do Senhor: “... não sei donde sois”. É como se o Senhor lhes dissesse: “Não vos conheço; somos estranhos, não somos íntimos e nem familiares; não temos nada em comum e nenhum motivo para celebrarmos, festejarmos e nem sequer para nos cumprimentar”.

26.“Direis então: ‘Comemos e bebemos contigo e tu ensinaste em nossas praças’. 27.Ele, porém, vos dirá: ‘Não sei donde sois; apartai-vos de mim todos vós que sois malfeitores’”.

 É difícil acabar com uma ilusão. De fato, insistem e persistem alegando terem participado da Ceia (“Comemos e bebemos contigo”) e de serem conhecedores da Palavra (“... tu ensinaste em nossas praças”). A resposta do “pai de família” desta parábola é dura e direta: “Não sei donde sois; apartai-vos de mim todos vós que sois malfeitores”. “Apartai-vos é uma forma de sacudida para acordar uma consciência adormecida que se encaminha para a perdição; é declarar que a pessoa está longe e distante da “Casa da Vida” e que não basta dizer “Senhor, Senhor”, mas, ao contrário, importa não praticar iniquidades, não fazer o mal. O decisivo para entrar na “Casa da Vida” é praticar o bem que se aprendeu, promover o bem e não juntar tesouros para si iludindo-se que “coisas” e objetos possam substituir a alegria de viver como irmãos, possa trazer segurança como viver em família, possa garantir a vida e nos livrar da morte e da perdição como se fosse o próprio Deus e Senhor.

Um dia, Roberto, altas horas da madrugada, bateu na porta de sua casa. Não lhe abriram a porta, não entrou, ficou do lado de fora, sem casa. Não foi recebido, acolhido, e, sem casa, sentiu-se perdido, pois desejava entrar e usufruir do aconchego do lar, de sua mãe, de seu pai e irmãos. O sofrimento maior de Roberto foi justamente não poder ter o que queria, não poder saborear o que tanto desejava, ter que passar aquela noite com pessoas estranhas à ele. Coisa estranha! De um lado deseja a casa boa do pai e do outro só deixava para procurar a casa do pai no fim da noite.

O pior ainda estava por vir. Alguém de dentro da casa respondeu que não o conhecida: “Não sei donde és; não te conheço; se afaste daqui e de nós porque és praticante de iniquidades, és um malfeitor”.Roberto descobriu naquela noite que realmente não conhecia aquela casa, pois naquela casa, a casa do pai, praticava-se e se vivia a misericórdia, a fraternidade, a solidariedade, a gratuidade. E ele só queria saber de moleza, de irresponsabilidade, de usar e abusar das pessoas, de esquemas, de vida fácil, de jeitinho, comprazendo-se no seu egoísmo, justificando-se com passagens bíblicas e de “auto-ajuda” um estilo de vida que não lhe permitia entrar na “Casa da Vida”, mas na casa da noite, das trevas, da solidão, do choro e do ranger de dentes por causa de uma vida que deu em falência.

28.“Ali haverá choro e ranger de dentes, quando virdes Abraão, Isaac, Jacó e todos os profetas no Reino de Deus, e vós serdes lançados para fora”.

 Fora da casa do “pai de família”, fora da comunidade cristã, longe da Ceia do Senhor, só há “choro e ranger de dentes”. Encontrar-se longe e distante de pessoas e lugares que não nos dizem tanto, não nos causa sofrimento. Mas, como somos feitos para habitar a “Casa do Pai”, há, sim, choro e ranger de dentes quando nos encontramos impedidos de conviver com as pessoas que queremos bem, longe da “Casa do Pai” onde se encontram os irmãos. Invoquemos a misericórdia divina, pois só a Graça de Deus pode nos livrar do mal, daquele mal que nos faz estacionar num estilo de vida que no fundo nos ofende e vai contra a nossa natureza mais profunda: “tocar a vida” em um ritmo e um estilo quase forçados não gera nenhum contentamento, mas muito aborrecimento, chorar e ranger de dentes. O drama é que tantas vezes, mesmo nos fazendo sofrer, não largamos os espinhos, os pecados, que nos maltratam.

Longe e distante da Casa do Pai só nos resta viver dos banquetes hipócritas deste mundo, das vaidades fugazes, da lei de um mercado que nos torna uma mera peça de um jogo cruel de sobrevivência, concorrência, servindo ao poder mundano que nos usa e abusa até o dia que seremos descartados por motivos de idade ou de enfermidade. Longe e distante da casa do Pai jogamos uma partida certamente destinada a uma derrota.

29.“Virão do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul (a cruz por onde entram...pela misericórdia), e se sentarão à mesa no Reino de Deus. 30.Há últimos que serão os primeiros, e há primeiros que serão os últimos”.

Oriente, Ocidente, Norte e Sul, quatro pontos cardeais: a Cruz+. A Cruz é a porta de entrada, é a porta da misericórdia. Os últimos que se tornam os primeiros são tantos que vivem do Espírito de Jesus, o Cristo, seja conhecendo a Ele através da sua Ceia da sua Palavra, seja conhecendo-O pela voz da consciência (cf. Rm 1).

Irmãos e irmãs, concluindo, podemos dizer que podemos tentar apaziguar a nossa consciência através dos cultos religiosos (“Comemos e bebemos contigo”). A Palavra de Deus mexe conosco e nos pede um exame para verificar se somos malfeitores (que fazem o mal, que militam contra o outro que está ao lado). O exame sério a fazer não é acerca de minha relação com Deus, mas acerca de quais sentimentos eu nutro em relação ao irmão, filho do meu Pai.

Que nenhum de todos cheguemos a ranger os dentes: expressão também de fúria, de raiva, porque, afinal, o Reino não é do jeito que a presunçosa liderança judaica esperava e queria. A salvação não está ao dispor por motivo de raça, língua, nação e afiliação religiosa. Importa ter a atenção voltada para o alívio do sofrimento dos irmãos que precisam de um apoio moral ou material.

Pode acontecer que nossa salvação dependa do humilde reconhecimento de que somos malfeitores. Essa foi a sabedoria do bom ladrão: “... recebemos a pena que nossos atos merecem ... ‘Jesus! Lembra-te de mim quando entrardes no teu Reino’” (Mt 23, 41-42).

Sobre o autor
Frei João de Araújo Santiago

Frade Capuchinho, da Província Nossa Senhora do Carmo. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Mestre em Teologia Espiritual. Tem longa experiência como professor, seja no Brasil, como na África, quando esteve como missionário. Por vários anos foi formador seja no Postulantado, como no Pós Noviciado de Filosofia. Atualmente mora em Açailândia-MA. Já escreveu vários livros e muitos artigos.