Homilia do XXVI Domingo do Tempo Comum - ano C / Frei João Santiago
XXVI Domingo do Tempo Comum - ano C (Lucas 16, 19-31)
Era uma vez um rico tão pobre que nem nome tinha, mas só casa, vestes e comida.
Será que precisamos morrer para entender? A antropologia cristã que lemos no Evangelho deste domingo nos revela que a morte fixa-nos em certo estado de vida. Temos nossos ministérios, serviços, cargos, bens, juízos, opiniões, profissões, dinheiro, influência... O que andamos fazendo com tudo isso? Fazendo bem feito nossos compromissos certamente estaremos ajudando tantos “Lázaros”. Há uma coisa neste mundo que sempre será “injusta”: toda e qualquer riqueza. O que fazer então com ela? Só nos resta fazer proximidade com elas, que se tornem alívio de sofrimentos para nós e tantos outros. O acesso ao “seio de Abraão” não acontece porque um morto nos aparece e diz que há vida após a morte, mas acontece na “par-ti-lha” do que sou e tenho, quando jogo a favor que o outro cresça.
Não se esconda: DEUS AJUDA
Você sabia que o nome Lázaro significa “Deus ajuda”? Podemos, sim, considerar que dentro de nós, na nossa calçada, bem ao nosso alcance jaz um “Lázaro”: há um “Lázaro” também dentro de cada um de nós que diz: “Preciso de ajuda!” Não seja surdo nem para você mesmo nem para os outros: Deus ajuda, e cabe à nós reconhecer o Lázaro que está à nossa espera e o Lázaro que jaz dentro de nós pedindo ajuda. Deus ajuda, mas precisamos reconhecer, aceitar que precisamos de ajuda, que somos “Lázaro”, também. “A verdade vos libertará”, disse Jesus. Então, aceitamos a verdade que temos necessidades, limites, fome de amor, de escuta, de ternura, de ser reconhecido, achado, visto, considerado, curado. Sejamos “Lázaro”, mostremos nossa “precisão”, afinal, “Deus ajuda”. Importa muito reconhecer aquela parte de nós que precisa ser ajudado, pois “Dos diamantes nada nasce, mas de estrumes nascem flores”. Por isso não se esconda! Não queira esconder seu vazio através de vestes suntuosas nem sua “fome de tudo”, principalmente de bons vínculos, empanturrando-se de comida e de bebida.
E quem é o rico na história? É um “Zé-ninguém”, pois nome não tem.
- “Havia um homem rico que se vestia de púrpura e linho finíssimo (tipo “bisso”), e que todos os dias se banqueteava e se regalava. Havia também um mendigo, por nome Lázaro, todo coberto de chagas, que estava deitado à porta do rico” (vv. 19-20).
As vestes desse homem não eram vestes de um comum dos mortais. Ele, com sua aparência, chamava atenção para si. Ele era um “cara” para ser olhado, contemplado, considerado em meio a tanta ostentação, tanto luxo e glória mundana. Ele vivia dependendo daqueles olhares dos outros, e para ser olhado precisava chamar atenção, e chamava atenção com suas vestes e seus banquetes diários. Era um rico sem um nome (sem “nome” significa sem identidade, sem descanso, sem paz, sem sentido, sem futuro, um “Zé-ninguém”, “um ser à deriva e em busca de sabe-se lá o quê”). O tal rico sem nome (“Zé-ninguém”) era um homem reduzido a algumas coisas: púrpura, linho, comida e certas emoções.
O nosso rico sem nome da parábola não fazia nenhum mal deliberado a Lázaro, mas o ignorava. Ignorava a Deus, não existia em sua vida espaço para ajudar quem quer que fosse. E, assim, o nosso rico da parábola entra no inferno da INDIFERENÇA.
E com todas aquelas vestes suntuosas e com todas aquelas festas, manjares e ostentação, vivia de consumo de coisas e pessoas, de aparência. É triste viver de aparência e não aceitar o “Lázaro” que mora dentro e perto de nós. Quando achamos que não precisamos de ajuda, terminamos por não ajudar ninguém. E quando achamos que não precisamos de ninguém só nos restam vestes suntuosas, festas, manjares e ostentação para esconder o nosso “Lázaro”, para esconder o nosso pedido de ajuda.
O rico se condenará na sua indiferença. A Palavra deste domingo nos adverte que urge sair da festa, dos manjares, da ostentação, do nosso cômodo (cada um tem o seu), quebrar a insensibilidade para sair das trevas, da mata escura, como canta o poeta: “Vou me encontrar longe do meu lugar, Eu, caçador de mim. Nada a temer, Senão o correr da luta. Abrir o peito à força. Numa procura. Fugir às armadilhas da mata escura”.
- “Queria saciar-se com o que caía da mesa do rico. Até os cães iam lamber-lhe as chagas” (v. 21). Para limpar as mãos nos banquetes era costume entre os opulentos usar as migalhas de pão, pois não se usava guardanapos. As migalhas, com aqueles restos de comida, eram jogadas embaixo da mesa. Para um esfomeado seria grande coisa aquelas migalhas deliciosas. O Lázaro bem que desejava, mas não podia saciar-se com elas, pois estava do lado de fora da porta.
- “Ora, aconteceu morrer o mendigo e ser levado pelos anjos ao seio de Abraão. Morreu também o rico e foi sepultado” (v. 22). Lázaro morre e entra na glória, em comunhão com todos (Abraão é o pai de todos os povos). Lázaro, com a morte, passa a usufruir plenamente daquela comunhão com os irmãos e com o pai Abraão que já tinha na terra (De fato, seu nome significa “Deus ajuda”). Lázaro foi levado para o alto ao lado de Abraão, pois sua ajuda vinha do alto, já o rico foi levado para baixo, foi sepultado na terra, pois na terra é que estavam seus bens, sua ajuda. “Onde está teu tesouro está teu coração e estará o teu destino”. Moral da história: cada um termina lá onde se apoia nesta vida terrena.
O Evangelho deste domingo “acaba” com a teologia da prosperidade...
- “E estando ele nos tormentos do inferno (Hades), levantou os olhos e viu, ao longe, Abraão e Lázaro no seu seio. Chamou-o e lhe disse: ´Pai Abraão, tem piedade de mim, e envia Lázaro para que molhe em água a ponta de seu dedo, a fim de me refrescar a língua, pois sou cruelmente atormentado nestas chamas’” (vv. 23-24).
A morte é capaz de algo: faz o morto abrir e erguer os olhos, alarga a visão sobre tudo, torna patente, manifesto e explícito tudo aquilo que já se vivia, mas que não se queria reconhecer. O rico finalmente “viu” Lázaro ao lado de Abraão, viu a glória do pobre, tomou consciência da vida que levou e da vida que leva (“... sou cruelmente atormentado nestas chamas). Chama por Abraão e o chama de pai, pede por piedade, quer sair do sofrimento, pede a presença de Lázaro, deseja comunhão, proximidade com todos. O drama maior experimentado na morte é que o tempo acabou: “... há entre nós e vós um grande abismo, de maneira que os que querem passar daqui para vós não o podem, nem os de lá passar para cá” (v. 26).
- “Abraão, porém, replicou: ‘Filho, lembra-te de que recebeste teus bens em vida, mas Lázaro, males; por isso, ele agora aqui é consolado, mas tu estás em tormento ...’ Insistiu o rico: ‘Então, por favor, manda-o à casa de meu pai, pois tenho cinco irmãos, para lhes admoestar, que não aconteça virem também eles parar neste lugar de tormentos. Abraão respondeu: ‘Eles lá têm Moisés e os profetas; ouçam-nos!’” (vv. 25. 27-29).
Imaginemos Abraão respondendo: “Desculpa, mas Lázaro esteve por 80 anos diante da tua porta e tu não percebeste que a ti tinha sido enviado? Agora é tarde, pois a vida também tem seu “prazo de validade” e o tempo é o seu limite. As decisões são tomadas antes e não depois da morte. Todo final de partida é decidido nos 90 minutos jogados, não depois dos 90 minutos”.
Não é que voluntariamente Deus manda o rico para o Hades, para o inferno a sofrer. O certo é que há a lei natural e a lei da compensação ou da semeadura. Quem passou a vida só em púrpuras (cor de fogo) agora é vestido de chamas, de fogo, e por toda a eternidade continuará “vestido em púrpuras”. Quem passou a vida só comendo e bebendo, termina por desejar alívio na boca, refrescar a língua, fome e sede perpétuas. Sente falta de água (símbolo da vida) porque na verdade jamais bebeu “água viva”. Viveu só para si, não conseguiu sair de si e amar. É um homem em precisão, em morte, e invoca Lazaro, a ajuda de Deus: “Pai Abraão, tem piedade de mim, e envia Lázaro...”. A ajuda não virá, o tempo passou, acabou, deveria ter saído da indiferença antes da morte.
O rico, depois da sua morte, chama por Abraão, enxerga e pede a ajuda de Lázaro, fala de seu pai e dos seus cinco irmãos. Preocupa-se com a salvação deles. O drama é que deveria ter descoberto antes. De fato, imaginemos Abraão lhe dizendo: “Filho, lembra-te de que recebeste teus bens em vida, viveste só deles. Que fizeste com eles? Fizeste amigos? Ou usaste os bens para se distinguir, para se separar dos outros, para cavar um abismo? Tiveste uma longa vida, oitenta anos, e os usaste somente para cavar um abismo, um abismo profundo de separação: nem ajudando e nem recebendo ajuda”.
- “O rico replicou: ‘Pai Abraão, se algum dos mortos for até meus parentes, arrepender-se-ão’. Abraão respondeu-lhe: ‘Se não ouvirem a Moisés e aos profetas, tampouco se deixarão convencer, ainda que alguém ressuscite dos mortos’” (V. 30-31).
Para sair da indiferença e adentrar no mundo da compaixão, escutemos Moisés e os profetas: “Que não haja necessitados no meio de vós” (Dt 15, 4). O rico acha que se um morto for visitar seus parentes e adverti-los, estes se “ajeitarão”. Não são experiências “milagrosas” o decisivo para se mudar de vida. O milagre pode até emocionar, mas as emoções vêm e vão. O decisivo é praticar a Palavra no dia-a-dia, em todas as circunstâncias, em relação a todas as pessoas (cf. Mt 25, 32ss). A vida divina, a esperança e a alegria maior na vida advêm, não do saber ou de um milagre, mas do fazer encontro com os “Lázaros” que a vida nos apresenta.
O Papa tem falado de periferias existenciais. Imaginemos o sofrimento de tantos irmãos que buscam escutar sentido para viver e verdade por aderir e não encontram. Irmãos que buscam autênticas testemunhas de Jesus Cristo e encontram só pessoas que falam, mas não praticam e até escandalizam. Irmãs que procuram por um lugar de acolhida, comunidades amorosas e missionárias. Pessoas que anseiam por luz nas dúvidas, por superação das drogas, das desilusões, prostituição, etc. Nossas comunidades e paróquias precisam vestir-se de compaixão e dar-se conta dos “Lázaros” ao nosso redor. Não damos muita atenção, mas, por exemplo, a segunda causa de mortes entre jovens é o suicídio.