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Homilia do XXVII Domingo do Tempo Comum - ano B / Frei João Santiago

Publicado por Frei João de Araújo Santiago | 06/10/2018 - 09:23

XXVII Dom Comum Marcos 10, 2-16

"Chegaram os fariseus e perguntaram-lhe, para o pôr à prova, se era permitido ao homem repudiar sua mulher. 3.Ele respondeu-lhes: ‘Que vos ordenou Moisés?’ 4.Eles responderam: "Moisés permitiu escrever carta de divórcio e despedir a mulher." 5.Continuou Jesus: ‘Foi devido à dureza do vosso coração que ele vos deu essa lei; 6.mas, no princípio da criação, Deus os fez homem e mulher. 7.Por isso, deixará o homem pai e mãe e se unirá à sua mulher; 8.e os dois não serão senão uma só carne. Assim, já não são dois, mas uma só carne. 9.Não separe, pois, o homem o que Deus uniu’. ...”

Para que o matrimônio seja possível

 A nossa fé católica afirma que Jesus nos revelou o mistério de Deus. E um mistério Ele nos revelou no momento de sua morte, quando, depois de ferido, do seu coração jorrou sangue (sua morte, sua entrega, seu amor por nós) e água (água da vida): morte e vida, vida mais forte que a morte, pois o amor é mais forte do que a morte. Assim como nascemos dos nossos pais, podemos nascer daquele sangue e daquela água jorrados do coração de Cristo, podemos nascer do amor de Deus por nós, tornando-nos filhos e filhas de Deus. Uma vez tornado “filho de Deus”, assim como Adão, sou chamado a “gerar” outros através de minha ferida de amor (Da costela de Adão, Eva foi feita). Aqui o matrimônio é possível. O meu amor por alguém permite, ajuda, facilita, impele, que este alguém seja gerado, se torne também “filho”. Eu posso “vegetar” por aí, mas viver é outra coisa: eu vivo se alguém me ama, e se eu também amar alguém.

Deus criou o homem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus, criou o homem e a mulher” (Gen 1, 27), isto é, a relação amorosa existente entre um homem e uma mulher é imagem e semelhança de Deus, é o divino reinando entre os dois. O Sacramento do matrimônio é bem entendido quando visto desta maneira, ou seja, como imagem e semelhança de Deus. Sendo imagem e semelhança de Deus, o matrimonio é doação recíproca, é comunhão de amor, é o reino do Amor que une marido e mulher. Sendo imagem e semelhança de Deus, o matrimonio revela a intimidade do nosso Deus, revela o mistério da Santíssima Trindade que é o reino do Amor que une o Pai e o Filho.  O amor entre os irmãos e irmãs em nossas comunidades, o amor entre pais e filhos, o amor entre marido e mulher, sendo imagem e semelhança de Deus, é presença de Deus nesta terra. Agora entendemos porque São Paulo chegou a dizer que a união de um homem com uma mulher no santíssimo sacramento do matrimônio é um grande mistério (cf. Ef 5, 32). Para São Paulo, o amor e a união do casal se tornam metáfora da união que o próprio Deus tem para conosco.

No entanto, pode acontecer que a união entre um homem e uma mulher se degenere. Isso acontece quando um ou outro (ou ainda ambas as partes) elimina do relacionamento e da convivência a filiação divina, não aceita o sangue e água jorrados do lado de Cristo. Quem não se lembra da história de Adão e Eva? Deixaram de escutar ao Senhor e escutaram a serpente, comportando-se como filhos da serpente. Não foi por acaso que no “primeiro casal” a acusação entre eles aconteceram: “A mulher que pusestes ao meu lado apresentou-me deste fruto, e eu comi”. Quando o homem e a mulher deixam de lado a sua a imagem e semelhança de Deus, acontece o pior. O Pior se chama relação de busca do próprio prazer, de possessão e acusações recíprocas que destroem o matrimônio e constroem o divórcio.

O Evangelho nos narra que os fariseus perguntaram a Jesus se era permitido ao homem repudiar sua mulher. Jesus responde com uma pergunta: "Que vos ordenou Moisés?". Os fariseus responderam: "Moiséspermitiu escrever carta de divórcio e despedir a mulher”. Prestando bem atenção percebemos que a pergunta de Jesus foi sobre o que Moisés ordenou, e a resposta dos fariseus foi sobre uma permissão. Qual a diferença? Na verdade, a ordem de Moisés (do Pentateuco, na verdade) é bem clara: “Deixará o homem pai e mãe e se unirá à sua mulher; e os dois não serão senão uma só carne”. Jesus pergunta, portanto, sobre esta ordem ou ordenação, mas os fariseus falam daquela permissão que Moisés aprovou a fim de proteger a mulher repudiada pelo marido. A lei do divorcio, desta maneira, era uma proteção para a mulher. E tem mais: tal lei só surgiu porque os homens não observavam a ordem dada por Moises: “... os dois não serão senão uma só carne”.  Os fariseus respondem quase que dizendo: “É verdade, a ordem era de formar uma só carne, mas nós resistimos a tal ordenação, e “forçamos” o surgimento da lei do divórcio”. Nosso Senhor deixa bem claro o motivo que levava aqueles homens repudiarem suas esposas: “Foi devido à dureza do vosso coração que ele vos deu essa lei”. Sejamos sinceros e não culpemos somente aos fariseus. No reino dos humanos, entre nós, existe uma espécie de fadiga que se atua no campo do amar, do querer-se bem. Não é por acaso que acontecem tantas traições, indiferenças, descuidos com aquelas pessoas que vivemos: marido e mulher, amigos, pais e filhos, jovens e anciãos, irmãos e irmãs.

Os Fariseus perguntam se é lícito ou não repudiar a esposa. Como vemos apelam para a lei (“pode ou não pode”). Já Jesus, por sua vez, coloca em cena o homem interior, o que trazemos no nosso íntimo, no nosso coração. Jesus convida seus ouvintes a não se preocuparem tanto “se pode ou não pode”, mas a darem mais atenção se por acaso não estão eles carregando dentro de si um “coração de pedra”. É triste, mas é verdade: “o coração de pedra” também produz leis de convivência, leis separação (“Foi devido à dureza do vosso coração que ele vos deu essa lei”).

Dureza de coração, petrificação do coração, coração calcificado e fechado. O coração endurecido é sempre arredio, desconfiado e decidido em não mais querer bem a ninguém, pois não confia mais que alguém possa amá-lo. O “coração de pedra” friamente entra em contato com Deus e os outros. Os fariseus e “duros de coração”, de fato, se mostram preocupados diante de Deus sobre o que é permitido ou não, isto é, criam um relacionamento marcado pelas regras (“pode ou não pode”). Vivem a fé como aquele motorista que no trânsito respeitando as regras se diz um bom motorista. O “duro de coração” vive sua fé pensando mais ou menos assim: “Faço o que está prescrito na lei e por isso sinto-me bem com o meu Deus”. O fiel de coração duro importa-se mais com as leis do Senhor do que com o próprio Senhor das leis. Isso não é o pior! O mais grave é que o “coração petrificado” perde a sensibilidade para com os mandamentos mais importantes, como bem disse Jesus: "Ai de vocês, mestres da lei e fariseus, hipócritas! Vocês dão o dízimo da hortelã, do endro e do cominho, mas têm negligenciado os preceitos mais importantes da lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade. Vocês devem praticar estas coisas, sem omitir aquelas” (Mt 23, 23).

Para romper o “coração de pedra” que é resistente e se nega a se entregar, Jesus anuncia: “... no princípio da criação ... o homem ...  se unirá à sua mulher ... serão ... uma só carne”. O homem unido à sua mulher é o sonho de Deus, é o sonho de um “coração de carne”. O coração de pedra não aceita a união, pois por ninguém se deixa tocar e envolver: sempre refratário e jamais acolhedor.

No Evangelho, enquanto lemos que os fariseus se mostraram preocupados com uma lei que justificava a dureza de seus corações e o repúdio que davam às esposas, vemos Jesus preocupado com o projeto inicial de Deus para com o homem e a mulher. E aceitar tal projeto ou dom de Deus significa ter um “coração de carne”, tal como Ezequiel profetizou: “ ... tirarei da vossa carne o coração de pedra, e vos darei um coração de carne. ... e farei que andeis nos meus estatutos, e guardeis os meus juízos, e os observeis” (Ez 36, 26-28). Tenhamos um coração de carne, pois um coração de pedra é danoso, mata o outro com a indiferença e o desprezo, e não deixa de ser suicida também. Não é por acaso que o mesmo profeta fala de sepulcros que tem a ver com coração de pedra, coração de morte que desconhece o amor: não se deixa amar e nem ama.

“... O Senhor me pôs no meio de um vale que estava cheio de ossos ... e eis que estavam sequíssimos. ... Assim diz o Senhor DEUS a estes ossos: ‘Eis que farei entrar em vós o espírito, e vivereis.E porei nervos sobre vós e farei crescer carne sobre vós, e sobre vós estenderei pele, e porei em vós o espírito, e vivereis, e sabereis que eu sou o Senhor’. ... Portanto profetiza, e dize-lhes: Assim diz o Senhor DEUS: ‘Eis que eu abrirei os vossos sepulcros, e vos farei subir das vossas sepulturas, ó povo meu, e vos trarei à terra de Israel’” (Ez 37, 1-14).

- “Não separe, pois, o homem o que Deus uniu". Jesus, o Mestre, pede que os fariseus não sejam cabeçudos e contumazes, e reconsiderem o projeto inicial do Senhor Deus, a intenção do Pai. Neste projeto esconde-se uma possibilidade grande para os humanos, para um homem e uma mulher, um grande dom. A diferença entre homem e mulher é uma oportunidade para a criação de um relacionamento amoroso que se torna imagem e semelhança de Deus. Santo Inácio de Loyola falava que o amor pode ser entendido como louvar, venerar e servir alguém. Louvar alguém significa que você está contente por aquela pessoa existir. Quem ama vê tantas coisas belas e boas presentes no outro. E, assim, o bem e o belo nascem e aparecem na convivência dos humanos. Sejam os filhos, sejam os pais, todos precisam louvar e serem louvados para que a vida seja mais gratificante. O próprio Deus nos louvou quando contemplou toda a sua obra, e viu que tudo era muito bom e bonito (cf. Gn1). Peçamos ao Espírito Santo a capacidade de perceber os demais ao nosso redor e a beleza presente neles. O amor que se mostra no louvar a quem se ama alcança outros voos, chega a se alegrar quando aceita que o outro possa ser melhor do que eu.

Em nosso caminho espiritual, em nossa busca de santidade, de se tornar a imagem e semelhança do Senhor, a Palavra nos convoca a uma comunhão que chegue ao louvor, a uma ação de graças a Deus por esta mesma comunhão que poderá existir entre nós. A nossa convivência, a nossa comunhão amorosa tem uma marca muito especial. É a marca da “reverência”, da veneração: quem ama respeita, não anula o outro. No mistério de nossa unidade, união, o serviço para com aqueles que comigo vivem em comunhão me salva, pois no processo de se tornar imagem e semelhança de Deus, eu preciso dos meus irmãos para servir e ser servido.  

- “... deixará o homem pai e mãe e se unirá à sua mulher”. Quando eu marco um encontro com alguém, não tem jeito, tenho que deixar certo lugar a fim de encontrar aquele alguém em outro lugar. Não é tão fácil ir ao encontro de alguém, pois nossa preguiça espiritual não ajuda no processo de desinstalar-se da maneira de pensar, julgar, dizer e agir. Encontrar uma pessoa na minha vida não é eu encontrar alguém parecido comigo. Encontrar alguém é deparar-se com uma pessoa na sua irredutível diferença: o outro é outro, é outra pessoa, não posso reduzi-la à mim. Quando cada um deixa o seu “lugar”, o encontro haverá. Aqui está a salvação dos nossos lares e famílias. E salvando a família salvamos o nosso mundo. A outra opção é cada um ficar no seu “clan” e partir para guerras entre clãs para ver qual o clã mais forte.

O projeto divino é uma grande possibilidade para nós, um grande dom e dádiva. É a construção de um lar, de uma casa, de uma família, de uma comunidade, de formar uma só carne com outra pessoa que é um mistério a ser partilhado no cotidiano dos anos de vida. O chamado de Deus e de sua Palavra é para vivermos desse dom: “Amai-vos uns aos outros como eu vos tenho amado”. “Como vos tenho amado”: um amor nos precede, e acolhendo esse amor, podemos viver entre nós esse amor que se torna nossa vida e nossa salvação em meio às tribulações do viver. Assim, o “outro” não se torna um rival, mas uma pessoa por amar com o mesmo amor que me faz viver.

- “O que Deus uniu o homem não separe”. Deus une os esposos, é Ele que “faz” o casamento, é Ele a “cola” que junta e une as partes. Nosso Deus nos oferece esse dom, o dom da união. É acolhendo o dom da união que se faz possível o casamento, a família, a fraternidade, a amizade, a sã convivência. Somos, sim, capazes de viver o casamento, o matrimônio, a família, a fraternidade, a amizade. E não somente somos capazes, mas também é desejo do nosso coração constituir laços, ser amado e amar. A prova disso é que sofremos quando um casamento é desfeito, quando a intriga chega a nossa família, no grupo de amigos ou em nossas comunidades. Sofremos porque não fomos feitos para a falência, mas para a realização do amor. E o amor é realizado quando degustamos, temos retorno amoroso de satisfação e alegria pelo amor investido, sonhado e praticado. Melhor é serem dois do que um ...  Porque, se um cair, o outro levanta o seu companheiro; mas ai do que estiver só; pois, caindo, não haverá outro que o levante. ... o cordão de três dobras não se quebra tão depressa” (Eclesiastes 4, 9-12

Sobre o autor
Frei João de Araújo Santiago

Frade Capuchinho, da Província Nossa Senhora do Carmo. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Mestre em Teologia Espiritual. Tem longa experiência como professor, seja no Brasil, como na África, quando esteve como missionário. Por vários anos foi formador seja no Postulantado, como no Pós Noviciado de Filosofia. Atualmente mora em Açailândia-MA. Já escreveu vários livros e muitos artigos.