Homilia do XXVII Domingo do Tempo Comum - ano B / Frei João Santiago
XXVII Dom Comum Marcos 10, 2-16
"Chegaram os fariseus e perguntaram-lhe, para o pôr à prova, se era permitido ao homem repudiar sua mulher. 3.Ele respondeu-lhes: ‘Que vos ordenou Moisés?’ 4.Eles responderam: "Moisés permitiu escrever carta de divórcio e despedir a mulher." 5.Continuou Jesus: ‘Foi devido à dureza do vosso coração que ele vos deu essa lei; 6.mas, no princípio da criação, Deus os fez homem e mulher. 7.Por isso, deixará o homem pai e mãe e se unirá à sua mulher; 8.e os dois não serão senão uma só carne. Assim, já não são dois, mas uma só carne. 9.Não separe, pois, o homem o que Deus uniu’. ...”
Para que o matrimônio seja possível
A nossa fé católica afirma que Jesus nos revelou o mistério de Deus. E um mistério Ele nos revelou no momento de sua morte, quando, depois de ferido, do seu coração jorrou sangue (sua morte, sua entrega, seu amor por nós) e água (água da vida): morte e vida, vida mais forte que a morte, pois o amor é mais forte do que a morte. Assim como nascemos dos nossos pais, podemos nascer daquele sangue e daquela água jorrados do coração de Cristo, podemos nascer do amor de Deus por nós, tornando-nos filhos e filhas de Deus. Uma vez tornado “filho de Deus”, assim como Adão, sou chamado a “gerar” outros através de minha ferida de amor (Da costela de Adão, Eva foi feita). Aqui o matrimônio é possível. O meu amor por alguém permite, ajuda, facilita, impele, que este alguém seja gerado, se torne também “filho”. Eu posso “vegetar” por aí, mas viver é outra coisa: eu vivo se alguém me ama, e se eu também amar alguém.
“Deus criou o homem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus, criou o homem e a mulher” (Gen 1, 27), isto é, a relação amorosa existente entre um homem e uma mulher é imagem e semelhança de Deus, é o divino reinando entre os dois. O Sacramento do matrimônio é bem entendido quando visto desta maneira, ou seja, como imagem e semelhança de Deus. Sendo imagem e semelhança de Deus, o matrimonio é doação recíproca, é comunhão de amor, é o reino do Amor que une marido e mulher. Sendo imagem e semelhança de Deus, o matrimonio revela a intimidade do nosso Deus, revela o mistério da Santíssima Trindade que é o reino do Amor que une o Pai e o Filho. O amor entre os irmãos e irmãs em nossas comunidades, o amor entre pais e filhos, o amor entre marido e mulher, sendo imagem e semelhança de Deus, é presença de Deus nesta terra. Agora entendemos porque São Paulo chegou a dizer que a união de um homem com uma mulher no santíssimo sacramento do matrimônio é um grande mistério (cf. Ef 5, 32). Para São Paulo, o amor e a união do casal se tornam metáfora da união que o próprio Deus tem para conosco.
No entanto, pode acontecer que a união entre um homem e uma mulher se degenere. Isso acontece quando um ou outro (ou ainda ambas as partes) elimina do relacionamento e da convivência a filiação divina, não aceita o sangue e água jorrados do lado de Cristo. Quem não se lembra da história de Adão e Eva? Deixaram de escutar ao Senhor e escutaram a serpente, comportando-se como filhos da serpente. Não foi por acaso que no “primeiro casal” a acusação entre eles aconteceram: “A mulher que pusestes ao meu lado apresentou-me deste fruto, e eu comi”. Quando o homem e a mulher deixam de lado a sua a imagem e semelhança de Deus, acontece o pior. O Pior se chama relação de busca do próprio prazer, de possessão e acusações recíprocas que destroem o matrimônio e constroem o divórcio.
O Evangelho nos narra que os fariseus perguntaram a Jesus se era permitido ao homem repudiar sua mulher. Jesus responde com uma pergunta: "Que vos ordenou Moisés?". Os fariseus responderam: "Moiséspermitiu escrever carta de divórcio e despedir a mulher”. Prestando bem atenção percebemos que a pergunta de Jesus foi sobre o que Moisés ordenou, e a resposta dos fariseus foi sobre uma permissão. Qual a diferença? Na verdade, a ordem de Moisés (do Pentateuco, na verdade) é bem clara: “Deixará o homem pai e mãe e se unirá à sua mulher; e os dois não serão senão uma só carne”. Jesus pergunta, portanto, sobre esta ordem ou ordenação, mas os fariseus falam daquela permissão que Moisés aprovou a fim de proteger a mulher repudiada pelo marido. A lei do divorcio, desta maneira, era uma proteção para a mulher. E tem mais: tal lei só surgiu porque os homens não observavam a ordem dada por Moises: “... os dois não serão senão uma só carne”. Os fariseus respondem quase que dizendo: “É verdade, a ordem era de formar uma só carne, mas nós resistimos a tal ordenação, e “forçamos” o surgimento da lei do divórcio”. Nosso Senhor deixa bem claro o motivo que levava aqueles homens repudiarem suas esposas: “Foi devido à dureza do vosso coração que ele vos deu essa lei”. Sejamos sinceros e não culpemos somente aos fariseus. No reino dos humanos, entre nós, existe uma espécie de fadiga que se atua no campo do amar, do querer-se bem. Não é por acaso que acontecem tantas traições, indiferenças, descuidos com aquelas pessoas que vivemos: marido e mulher, amigos, pais e filhos, jovens e anciãos, irmãos e irmãs.
Os Fariseus perguntam se é lícito ou não repudiar a esposa. Como vemos apelam para a lei (“pode ou não pode”). Já Jesus, por sua vez, coloca em cena o homem interior, o que trazemos no nosso íntimo, no nosso coração. Jesus convida seus ouvintes a não se preocuparem tanto “se pode ou não pode”, mas a darem mais atenção se por acaso não estão eles carregando dentro de si um “coração de pedra”. É triste, mas é verdade: “o coração de pedra” também produz leis de convivência, leis separação (“Foi devido à dureza do vosso coração que ele vos deu essa lei”).
Dureza de coração, petrificação do coração, coração calcificado e fechado. O coração endurecido é sempre arredio, desconfiado e decidido em não mais querer bem a ninguém, pois não confia mais que alguém possa amá-lo. O “coração de pedra” friamente entra em contato com Deus e os outros. Os fariseus e “duros de coração”, de fato, se mostram preocupados diante de Deus sobre o que é permitido ou não, isto é, criam um relacionamento marcado pelas regras (“pode ou não pode”). Vivem a fé como aquele motorista que no trânsito respeitando as regras se diz um bom motorista. O “duro de coração” vive sua fé pensando mais ou menos assim: “Faço o que está prescrito na lei e por isso sinto-me bem com o meu Deus”. O fiel de coração duro importa-se mais com as leis do Senhor do que com o próprio Senhor das leis. Isso não é o pior! O mais grave é que o “coração petrificado” perde a sensibilidade para com os mandamentos mais importantes, como bem disse Jesus: "Ai de vocês, mestres da lei e fariseus, hipócritas! Vocês dão o dízimo da hortelã, do endro e do cominho, mas têm negligenciado os preceitos mais importantes da lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade. Vocês devem praticar estas coisas, sem omitir aquelas” (Mt 23, 23).
Para romper o “coração de pedra” que é resistente e se nega a se entregar, Jesus anuncia: “... no princípio da criação ... o homem ... se unirá à sua mulher ... serão ... uma só carne”. O homem unido à sua mulher é o sonho de Deus, é o sonho de um “coração de carne”. O coração de pedra não aceita a união, pois por ninguém se deixa tocar e envolver: sempre refratário e jamais acolhedor.
No Evangelho, enquanto lemos que os fariseus se mostraram preocupados com uma lei que justificava a dureza de seus corações e o repúdio que davam às esposas, vemos Jesus preocupado com o projeto inicial de Deus para com o homem e a mulher. E aceitar tal projeto ou dom de Deus significa ter um “coração de carne”, tal como Ezequiel profetizou: “ ... tirarei da vossa carne o coração de pedra, e vos darei um coração de carne. ... e farei que andeis nos meus estatutos, e guardeis os meus juízos, e os observeis” (Ez 36, 26-28). Tenhamos um coração de carne, pois um coração de pedra é danoso, mata o outro com a indiferença e o desprezo, e não deixa de ser suicida também. Não é por acaso que o mesmo profeta fala de sepulcros que tem a ver com coração de pedra, coração de morte que desconhece o amor: não se deixa amar e nem ama.
“... O Senhor me pôs no meio de um vale que estava cheio de ossos ... e eis que estavam sequíssimos. ... Assim diz o Senhor DEUS a estes ossos: ‘Eis que farei entrar em vós o espírito, e vivereis.E porei nervos sobre vós e farei crescer carne sobre vós, e sobre vós estenderei pele, e porei em vós o espírito, e vivereis, e sabereis que eu sou o Senhor’. ... Portanto profetiza, e dize-lhes: Assim diz o Senhor DEUS: ‘Eis que eu abrirei os vossos sepulcros, e vos farei subir das vossas sepulturas, ó povo meu, e vos trarei à terra de Israel’” (Ez 37, 1-14).
- “Não separe, pois, o homem o que Deus uniu". Jesus, o Mestre, pede que os fariseus não sejam cabeçudos e contumazes, e reconsiderem o projeto inicial do Senhor Deus, a intenção do Pai. Neste projeto esconde-se uma possibilidade grande para os humanos, para um homem e uma mulher, um grande dom. A diferença entre homem e mulher é uma oportunidade para a criação de um relacionamento amoroso que se torna imagem e semelhança de Deus. Santo Inácio de Loyola falava que o amor pode ser entendido como louvar, venerar e servir alguém. Louvar alguém significa que você está contente por aquela pessoa existir. Quem ama vê tantas coisas belas e boas presentes no outro. E, assim, o bem e o belo nascem e aparecem na convivência dos humanos. Sejam os filhos, sejam os pais, todos precisam louvar e serem louvados para que a vida seja mais gratificante. O próprio Deus nos louvou quando contemplou toda a sua obra, e viu que tudo era muito bom e bonito (cf. Gn1). Peçamos ao Espírito Santo a capacidade de perceber os demais ao nosso redor e a beleza presente neles. O amor que se mostra no louvar a quem se ama alcança outros voos, chega a se alegrar quando aceita que o outro possa ser melhor do que eu.
Em nosso caminho espiritual, em nossa busca de santidade, de se tornar a imagem e semelhança do Senhor, a Palavra nos convoca a uma comunhão que chegue ao louvor, a uma ação de graças a Deus por esta mesma comunhão que poderá existir entre nós. A nossa convivência, a nossa comunhão amorosa tem uma marca muito especial. É a marca da “reverência”, da veneração: quem ama respeita, não anula o outro. No mistério de nossa unidade, união, o serviço para com aqueles que comigo vivem em comunhão me salva, pois no processo de se tornar imagem e semelhança de Deus, eu preciso dos meus irmãos para servir e ser servido.
- “... deixará o homem pai e mãe e se unirá à sua mulher”. Quando eu marco um encontro com alguém, não tem jeito, tenho que deixar certo lugar a fim de encontrar aquele alguém em outro lugar. Não é tão fácil ir ao encontro de alguém, pois nossa preguiça espiritual não ajuda no processo de desinstalar-se da maneira de pensar, julgar, dizer e agir. Encontrar uma pessoa na minha vida não é eu encontrar alguém parecido comigo. Encontrar alguém é deparar-se com uma pessoa na sua irredutível diferença: o outro é outro, é outra pessoa, não posso reduzi-la à mim. Quando cada um deixa o seu “lugar”, o encontro haverá. Aqui está a salvação dos nossos lares e famílias. E salvando a família salvamos o nosso mundo. A outra opção é cada um ficar no seu “clan” e partir para guerras entre clãs para ver qual o clã mais forte.
O projeto divino é uma grande possibilidade para nós, um grande dom e dádiva. É a construção de um lar, de uma casa, de uma família, de uma comunidade, de formar uma só carne com outra pessoa que é um mistério a ser partilhado no cotidiano dos anos de vida. O chamado de Deus e de sua Palavra é para vivermos desse dom: “Amai-vos uns aos outros como eu vos tenho amado”. “Como vos tenho amado”: um amor nos precede, e acolhendo esse amor, podemos viver entre nós esse amor que se torna nossa vida e nossa salvação em meio às tribulações do viver. Assim, o “outro” não se torna um rival, mas uma pessoa por amar com o mesmo amor que me faz viver.
- “O que Deus uniu o homem não separe”. Deus une os esposos, é Ele que “faz” o casamento, é Ele a “cola” que junta e une as partes. Nosso Deus nos oferece esse dom, o dom da união. É acolhendo o dom da união que se faz possível o casamento, a família, a fraternidade, a amizade, a sã convivência. Somos, sim, capazes de viver o casamento, o matrimônio, a família, a fraternidade, a amizade. E não somente somos capazes, mas também é desejo do nosso coração constituir laços, ser amado e amar. A prova disso é que sofremos quando um casamento é desfeito, quando a intriga chega a nossa família, no grupo de amigos ou em nossas comunidades. Sofremos porque não fomos feitos para a falência, mas para a realização do amor. E o amor é realizado quando degustamos, temos retorno amoroso de satisfação e alegria pelo amor investido, sonhado e praticado. “Melhor é serem dois do que um ... Porque, se um cair, o outro levanta o seu companheiro; mas ai do que estiver só; pois, caindo, não haverá outro que o levante. ... o cordão de três dobras não se quebra tão depressa” (Eclesiastes 4, 9-12