Homilia do XXVII Domingo do Tempo Comum - ano C / Frei João Santiago
XXVII Domingo do Tempo Comum - ano C (Lucas 17, 5-10)
“Quando eu puder sentir (servir) plenamente o outro estarei salva e pensarei: eis o meu porto de chegada” (Clarice Lispector”).
“Vereis o céu aberto”; “Em verdade, em verdade vos digo: ‘aquele que crê em mim fará também as obras que eu faço, e fará ainda maiores do que estas’”; “Lavai os pés uns dos outros”; “Fica atentos: Se teu irmão pecar contra ti, repreende-o e, se ele se arrepender, perdoa-lhe. E, se pecar contra ti sete vezes no dia, e sete vezes no dia vier ter contigo, dizendo: ‘Arrependo-me’; perdoa-lhe”. Diante de tais Palavras e de tantas outras é que entendemos o pedido dos apóstolos: “Os apóstolos disseram ao Senhor: ‘Aumenta-nos a fé!’” (v. 5).
Os apóstolos deram-se conta que para cumprirem a Palavra, para porem em prática a Palavra, precisavam de um apoio maior, uma adesão completa, uma entrega, uma confiança n´Aquele que é chamado o Indefectível (Aquele que não pode faltar, que não falha, que é infalível, sólido, fiel).
Quem procurar viver seriamente, mais cedo ou mais tarde, terá que apostar sua vida. Como sabemos, Pedro apostou, teve fé de que uma vida doada, feita pão, tem o poder de nos arrebatar para a vida do Eterno: “E Jesus lhes disse: ‘Eu sou o pão da vida’ ... Desde então muitos dos seus discípulos ... já não andavam com ele. ... Então disse Jesus aos doze: ‘Quereis vós também retirar-vos?’ Respondeu-lhe, pois, Simão Pedro: ‘Senhor, para quem iremos nós? Só tu tens as palavras da vida eterna’” (Jo 6, 35 ss). Em outras palavras: “Tuas palavras exigem, mas dão em retorno uma paz que o mundo não dá, nos fazem novas criaturas possuidoras da vida do Eterno: apostamos nossas vidas em tuas palavras e não em tantas outras propostas vendidas por aí”.
“Aumenta a nossa fé”: que o Espírito Santo trabalhe em nossas almas e nos façam crer, acatar, aceitar e confiar no amor infinito, incondicional, de Deus e na sua fidelidade por cada um de nós. Deus confia em nós, crê em cada um de nós até ao ponto de, sem reservas, morrer por nós, ainda que sejamos pecadores. Eis o apoio maior que precisamos para nos entregar e apostar nossas vidas.
“Eu sei que tu voltarias”, disse o soldado ferido e resgatado pelo amigo. Tenhamos fé, pois Ele é o Fiel e suas palavras são fidedignas, verdeiras, isto é, cumprem o que prometem.
Entregando-me de “corpo e alma” ao amor de Deus é que temos nossa fé aumentada. E com a fé aumentada eu consigo perdoar, servir, ser simples como pombinhas e esperto como serpentes, abençoar e rezar até pelos inimigos, etc.
- “Disse o Senhor: ‘Se tiverdes fé como um grão de mostarda, direis a esta amoreira: Arranca-te e transplanta-te no mar, e ela vos obedecerá’” (v. 6). Imaginemos situações difíceis que nos tiram a paz, relações conturbadas dentro de casa, reações de fúria ou de marasmo, sentimentos de tristeza e decepção, doenças, injustiças sofridas.
. Por vezes estamos bem plantados e temos criado raízes profundas que se tornaram hábitos, costumes, vícios, realidades viscerais. Tudo isso forma o nosso jeito de ser, de falar, de escutar, de ajuizar, de opinar, etc. (“Eu nasci assim, cresci assim, vou ser sempre assim...”). A fé na certeza do amor de Deus por nós torna possível um desraizamento que permite abandonar o velho jeito de ser. Por onde anda o nosso coração? Talvez se faça necessário urgentemente desgrudá-lo de certas paixões, desordens, ciúmes, invejas, medos, mentiras, traições, maledicências, injustiças,etc. Então.... a amoreira é cada um de nós que precisa deixar a terra malvada é se lançar no mar da misericórdia divina, pois, afinal, “É preciso nascer de novo”, ser nova criatura, nascer do Espírito.
Arrancar uma amoreira exige força, violência. “Só os violentos conquistam e entram no Reino dos Céus”, disse Jesus. Nada de violência para com os outros, mas violência contra si: “Se vos irritais, não pequeis. Não se ponha o sol sobre a vossa ira, não cedais ao diabo. Quem era ladrão não torne a roubar ... Nenhuma palavra má saia da vossa boca ... Toda amargura, ira, indignação, gritaria e calúnia sejam desterradas do meio de vós, bem como toda malícia” (Ef 4, 26-31). Jesus afirma que poderemos desprogramar um velho estilo de ser, mudar, se converter, dar a volta por cima, superar, se reinventar. Alimentando-se na fé do amor de Deus por nós (Ele nos quer bem), realmente, podemos nos tornar novas criaturas.
- “Qual de vós, tendo um servo ocupado em lavrar ou em guardar o gado, quando voltar do campo lhe dirá: ‘Vem depressa sentar-te à mesa?’ E não lhe dirá ao contrário: ‘Prepara-me a ceia, cinge-te e serve-me, enquanto como e bebo, e depois disso comerás e beberás tu?’ E, se o servo tiver feito tudo o que lhe ordenara, porventura fica-lhe o senhor devendo alguma obrigação? Assim também vós, depois de terdes feito tudo o que vos foi ordenado, dizei: ‘Somos servos como quaisquer outros; fizemos o que devíamos fazer” (vv. 7-10).
Em toda e qualquer circunstância, sou chamado a “arar” o campo de Deus, semear e fazer a Palavra crescer dentro e em torno à nós. Sendo pai ou mãe, professor ou operário, padre ou policial, temos uma missão a exercer.
Alguém disse que diante de Deus temos duas opções: amá-lo ou temê-lo. Se amarmos, somos felizes em servi-lo. Se o temermos, serviremos a Ele só por mera obrigação.
A parábola “do patrão e do servo” não nos quer levar a pensar que Deus seja um patrão carrasco que explora os servos mesmo depois de um dia de muito trabalho, pois afinal, em outro momento Jesus nos conta que no Reino dos Céus Ele mesmo irá nos servir. E mais: Jesus lavou os pés aos discípulos, deu-nos sua vida, corpo e sangue. Além do mais se identificou, se apresentou como aquele que serve e só está em meio à nos como aquele que serve: aqui temos um grande mistério da fé por meditar (O Senhor só se faz presente na vida dos homens enquanto os serve e importa que os homens se permitam ser servidos, amados).
Tecendo a nossa vida enquanto encontramos pessoas nas estradas da vida, não é sábio ficar se metendo a ser o primeiro, a explorar, abusar, enganar e dominar os outros. Ao contrário, é sábio servir como forma suprema de amar.
O mistério da liberdade, da felicidade, da alegria de viver, do gáudio, do prazer e da satisfação passa pela realidade do servir. A verdadeira liberdade acontece quando se é livre para servir, para fazer o bem, para promover o outro. São Paulo chega até mesmo a dizer que a liberdade acontece quando eu me torno “escravo” do outro, me faço pertencente ao outro, no sentido que me faço feliz em ver o outro feliz (cf. Gl 5, 13). Servir é um mistério “danado”, é como se de repente a pessoa se visse possuída pela bondade, possuída em precisar servir: “Tenho que passar por um batismo, e como me impaciento até que se realize” (Lc 12, 50); “Entretanto, os discípulos lhe pediam: ‘Mestre, come’. Mas ele lhes disse: ‘Tenho um alimento para comer que vós não conheceis’” (Jo 4, 31-32).
Quando um casal se ama e se serve, um diz ao outro: “Eu sou teu e tu és meu”. Aqui há um deleite em servir e o serviço só pode ser gratuito e se não for gratuito não é servir. A liberdade humana jamais será uma espécie de “minha liberdade”, mas será sempre em uma relação, uma pertença recíproca (“Somos uns dos outros”). “Jesus, sabendo que o Pai tinha depositado nas suas mãos todas as coisas, e que havia saído de Deus e ia para Deus ...” (Jo 13, 3): aqui vemos o Pai sendo feliz e livre enquanto todo se deu, serviu, ao Filho, e vemos o Filho feliz e livre enquanto indo ao Pai, servindo ao Pai.
- “Somos servos como quaisquer outros; fizemos o que devíamos fazer”. Jesus, com tais palavras, nos convida a entender de uma vez por todas que o segredo é mesmo servir, que uma só coisa interessa e vale a pena neste mundo e nesta vida breve: desatar as sandálias, arriar do cavalo, isto é, não resistir, se consentir, deixar que o desejo de um bem que salve a alma se faça realidade, e tal bem tem um nome e é servir. Infelizmente podemos gastar muitos anos de nossas vidas e talvez até todos os dias de nossas vidas relutando em acatar tal verdade.
Alguém poderia dizer: “Aprendendo a servir, consegui, finalmente, depois de anos de tentativa, descansar, encontrar meu porto, meu remanso. Já a poetisa disse: “Quando eu puder sentir (servir) plenamente o outro estarei salva e pensarei: eis o meu porto de chegada” (Clarice Lispector”).
Com fé nas palavras do Senhor acerca de consumir a vida servindo: “Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender” (Clarice Lispector).
Para se manter vivo e cheio de sentido e vida faz-se necessário ser servido, amado: “Sei que não posso viver automaticamente: preciso de amparo e é do amparo do amor – do serviço -” (Clarice Lispector).