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Homilia do XXXII Domingo do Tempo Comum - ano B / Frei João Santiago

Publicado por Frei João de Araújo Santiago | 10/11/2018 - 18:58

XXXII Domingo do Tempo Comum - ano B

(Marcos 12, 38-42)

Os doutores da Lei. Quando não queremos que um nosso amigo não se machuque, por exemplo, chamamos a atenção ao perigo dizendo: “cuidado!”. Por que será que Jesus disse para os discípulos terem cuidado com os escribas ou doutores da Lei? Vejamos um pouco quem eram eles. Eram os especialistas no ensino da Lei de Deus. Tais doutores com mil artifícios criavam e vendiam a idéia de que fossem mais especiais, mais importantes, merecedores de privilégios, diferentes e melhores do que os outros pela simples razão de terem o título de “doutores da Lei”. E para tanto usavam roupas chamativas e sentavam em lugares privilegiados, seja nas sinagogas, seja nos banquetes. E nestes lugares procuravam ser reverenciados e receberem deferências. Principalmente as viúvas recorriam a eles para que administrassem o pouco que o marido falecido tinha deixado: uma casinha, uns poucos animais, uns metros de terreno. Eram homens metidos a religiosos que se acontentavam do aparecer, do exibicionismo e da ostentação. Viviam de aparências para que outros pensassem bem deles, e, assim, recebiam gratificação social, reconhecimento, prestígio. Eles devoram as casas das viúvas, se tornavam patrões dos outros, das coisas dos outros. Destruíam as relações familiares, as relações dentro da comunidade religiosa (sinagoga), as relações sociais (banquetes), insaciáveis que eram pelo poder, pelo aparecer e por dinheiro. Eram pessoas sem escrúpulos, usavam e instrumentalizavam a Deus em vista de devorarem as casas da viúva e em vista de privilégios nas sinagogas e praças.

Jesus desmascara os doutores da Lei, também chamados de escribas. Na verdade, eram homens que não trabalhavam, viviam de aparência, enganação, enrolação e do trabalho alheio. Tomavam o Santo Nome de Deus em vão, fingindo longas orações em vista de parecerem confiáveis. E não só! Estrategicamente, ganhavam a confiança só para poderem dar o “bote”. E Jesus mesmo nos revela o “bote”: “devoram os bens das viúvas”. 

Jesus nos alerta! Quando uma pessoa chama atenção para si se fazendo de protetor e curador, prometendo muitas coisas, cuidadopreste atenção, pois o objetivo último é devorar o que você tem. Jesus acusa os escribas de devorarem as casas das viúvas. Ora, se Deus é o protetor das viúvas (cf. Sl 68, 5), os escribas se tornam inimigos do próprio Deus, pois, devorando as casas das viúvas, se opõem ao protetor delas. Agora entendemos, entre outros motivos, porque anuncia que do templo não ficará pedra sobre pedra, será destruído. O sistema religioso da época estava todo corrompido, uma vez que os doutores da Lei, os escribas, que eram os especialistas da Bíblia e os intérpretes da Vontade de Deus na terra, deixavam o amor de Deus de lado para devorarem as casas das viúvas e para obterem regalias. Uma liderança religiosa, um sistema religioso e um templo que “sugam” as viúvas não prestam mais, se corromperam, não merecem mais serem sinais da presença de Deus na terra. É por isso mesmo que, neste domingo, São Marcos nos apresenta uma viúva na penúria: os doutores da Lei deixaram-na em estado de penúria, de miséria, “pregando”, para a pobre mulher, a figura de um “Deus” vampiro e sanguessuga que justifica todo saqueamento em nome de “Deus”.

Os olhos dos discípulos. Tudo indica que os discípulos de Jesus não olhavam para a pobre viúva, mas olhavam para os doutores da Lei. Não é por acaso que Jesus os convida a terem cuidado com tais doutoresNão é por acaso que Jesus os convida a tomar distância, pararem de admirar os escribas. De fato, Jesus oschama para perto de si (cf. v. 43) a fim de fazer com que os discípulos olhem em outra direção, para a viúva e sua pequena oferta que não chamava a atenção: “... esta pobre viú­va deitou mais do que todos os que lançaram no cofre, porque todos deitaram do que tinham em abundância; esta, porém, pôs, de sua indigência, tudo o que tinha para o seu sustento”. É uma chamada para que os discípulos olhem para a viúva e parem de olhar para os doutores da Lei. A chamada de Jesus é Palavra de Deus que combate a nossa tendência natural de imitar os doutores da Lei, isto é, pessoas que ocupam os primeiros lugares, gozam de privilégios, se destacam pelas vestes e tem sempre “vez” nos banquetes, nas sinagogas e nas praças. Admirar o estido “doutor da Lei” pode destruir a comunidade: “Toda a Lei se resume num só mandamento, a saber:Amarás o teu próximo como a ti mesmo’. Porém, se mordeis e devorais uns aos outros, cuidado para não vos destruirdes uns aos outros! (Gal 5, 14-15).

Toda vez que alguém depositava uma grande soma podia-se ouvir o barulho das pesadas moedas caindo no cofre que também era chamado “tesouro do templo”. Certamente os discípulos tinham os olhos e ouvidos atentos àquelas grandes somas depositadas. Estavam de olho! Imaginavam a hora na qual eles se tornariam os “chefões” do templo, caso Jesus, como um bom Messias ao estilo de Davi, tomasse o poder em Jerusalém. “O tesouro é para nós, será nosso, é só uma questão de tempo”, podemos imaginar seus pensamentos enquanto o ofertório “rolava”.

Tenhamos olhos para a viúva. A viúva lançou no cofre do templo tudo o que tinha para o seu sustento. Um gesto significativo que revela a sua vida, vida que não se retém, vida que se lança e que se faz dom total. Vida que se afirma enquanto se segura num abraço, vida que ama.  Lançando duas moedinhas, é ela mesma se lançando, é ela mesma amando, dando amor.

Duas moedas compravam dois pequenos pães. Seria lógico dar uma moeda e ficar com outra, comprar um pão para matar a fome. Mas... Se a fome maior é amar, a lógica é outra, é lançar as duas moedas, não é amar pela metade nem em cálculos, mas amar mais e mais: ela lançou as duas moedinhas, não somente depositou, mas lançou como se naquele lance se jogasse, se entregasse de corpo e alma, sem reservas. Naquele dia aquela viúva se sentiu rica, pois no reino humano e espiritual que busca sentido para o viver e o morrer o que fica comigo e me faz satisfeito é aquilo que eu doei, tal como um pai e mãe idosos que veem seus filhos ricos deles, ricos de seus pais. De qualquer jeito gastamos nossa vida e ela consumimos. Importa nos lançar, jogar nossa vida no “tesouro do templo”, no coração de Deus, e não dar nossas pérolas aos cães: “... não deis aos cães o que é santo, nem atireis as vossas pérolas aos porcos” (Mt 7, 6).  

Podemos imaginar a viúva dizendo: “Eu escolho, de corpo e alma, o Senhor. Amo a Ele de todo o meu coração e com todas as minhas forças (cf. Dt 6, 4). Deposito nele tudo que tenho e sou, sem reservas me oferto numa entrega total de amor à Ele”.

 “Meu Deus e meu Tudo”, dizia São Francisco. A viúva tinha ao Senhor como esposo, se cedia, se rendia, se fez uma oblação de si (sacrifício de si). “Jogando-se” ela em forma de duas moedinhas, a viúva se entregava e se escondia no Senhor, e uma cessação, um desfalecer ou mesmo falecer, uma rendição confiante acontecia na alma daquela viúva na firme esperança de que o Senhor a ela recebia: Quando me desfaço por amor então é que sou forte (cf. 2Cor 12, 10). A nossa força está no grande Outro, diria a viúva.

Como Jesus na cruz, a viúva vivia em padecendo a vida da fonte da vida, o Pai. Só Jesus percebeu a pobre viúva. Só Jesus deu-se conta das silenciosas moedinhas. Só Jesus percebeu que era tudo o que ela tinha. Havia ali um mundo novo, um mundo verdadeiro, real e amoroso: o encontro entre quem se lança e quem acolhe. Jesus revela que foi a maior oferta a Deus que houve naquela celebração.

“Eu morro por tua fome”, diz o poeta. “Sem minha neta eu não durmo”, dizia aquela “vó”. A vida daquela vovó está na neta. O poeta morre sem a presença da amada. E a vida da viúva, onde estava? Estava jogando-se, lançando-se em Deus, sem reservas: puro dom, pura entrega, amor puro. É... importa deixar claro “onde” está nossa vida, importa saber do que vivemos, a quem ou a quê nos jogamos, nos lançamos, nos entregamos, qual nosso tesouro que acolherá minha vida sem reservas, sem a volta, só a ida.

 “Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, porque assim foi do teu agrado ...” (Mt 11, 25-30).

 

O juízo rigoroso. Nosso Senhor anunciou um juízo severo para os doutores da Lei. Isso significa que eles levavam uma vida mesquinha, pecadora, infrutífera e “sem futuro”. Uma vida que devastava casas, famílias, comunidades. De vez em quando temos notícias de líderes religiosos ou políticos, de aproveitadores e espertalhões, de sedutores e pervertidos que devastam bens, famílias, casamentos, negócios.

O Evangelho desse domingo é um forte convite a olhar o olhar de Jesus. Ele olha para a viúva e a oferta dela como modelos a serem seguidos. A viúva se torna uma verdadeira “doutora da Lei”, exerce um autêntico magistério. Jesus não perde a ocasião, chama os discípulos, e, assim, nos ensina que todos nós temos a capacidade, a possibilidade de imitarmos a viúva, aprender com ela. Acreditamos que em nosso meio sempre teremos irmãos e irmãs que imitam a “viúva”: abramos os nossos olhos para eles, e despistemos o nosso olhar do “gado gordo destinado ao abate”, isto é, dos doutores da Lei (cf. Sl 49).

A viúva é extraordinária. Mesmo sendo enganada pelos doutores da Lei, ela não se deixa corromper pela raiva ou pela descrença. Ela, lançando as duas últimas moedinhas que tinha sobrado do “saque” feito pelos doutores da Lei, imita ao Senhor, revela que o Senhor Deus nada retém, não “vampiriza” os outros, não consome nem explora os seus filhos e filhas, Ele se dá todo a si mesmo para nós (“Amor com amor se paga”). A viúva corrige os doutores da Lei: a lei da vida não é alimentar o insaciável capricho e “olho gordo” que leva a devorar os outros e seus bens; a lei da vida não consiste na disputa para ser o primeiro esmagando o segundo. A lei da vida é reconhecer que o Senhor e tantos irmãos e irmãs me ajudaram. E, reconhecendo tantas dádivas, eu renasço, ganho vida nova. Renascer, ganhar vida nova, é “abrir mão” das últimas moedinhas, é socorrer a quem pede uma “mão”, é receber o Senhor tanto esperado.

Sobre o autor
Frei João de Araújo Santiago

Frade Capuchinho, da Província Nossa Senhora do Carmo. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Mestre em Teologia Espiritual. Tem longa experiência como professor, seja no Brasil, como na África, quando esteve como missionário. Por vários anos foi formador seja no Postulantado, como no Pós Noviciado de Filosofia. Atualmente mora em Açailândia-MA. Já escreveu vários livros e muitos artigos.