Homilia Dominical do II Domingo da Quaresma / Frei João Santiago
II Dom Quaresma Marcos 9, 2-10
Vida e Morte, Cruz e Ressurreição
"... Jesus tomou consigo a Pedro, Tiago e João, e conduziu-os a sós a um alto monte. E transfigurou-se diante deles. Suas vestes tornaram-se resplandecentes e de uma brancura tal, que nenhum lavadeiro sobre a terra as pode fazer assim tão brancas. ... Pedro tomou a palavra: Mestre, é bom para nós estarmos aqui; faremos três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias. ... Formou-se então uma nuvem que os encobriu com a sua sombra; e da nuvem veio uma voz: Este é o meu Filho muito amado; ouvi-o. ...”
- As crianças perguntam “por quê” isso e aquilo. Os adultos perguntam também. Crianças e adultos, principalmente em certos momentos da vida, buscam sentido, uma palavra, segurança, apoio: “Oh! Se rasgásseis os céus, se descêsseis para fazer desabar diante de vós as montanhas" e algo nos dizer, e nos apontar uma saída, uma direção....
- Pronto! O Senhor nos respondeu: “Este é o meu Filho muito amado; escutai-o”. Escutar o quê? Escutar as palavras de Jesus: “"E começou a ensinar-lhes que era necessário que o Filho do homem padecesse muito, fosse rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e pelos escribas, e fosse morto, mas ressuscitasse depois de três dias” (Mc 8, 31). Sabemos que Pedro reagiu fortemente e tentou dissuadir Jesus da cruz. Por isso Jesus o chamou de Satanás. Escutando a Jesus seremos abertos a uma novidade que pode nos conduzir a uma transfiguração, a uma real novidade na vida. Só escutando não iremos anular o Outro que peleja e lateja querendo se fazer ouvir. Escutar é sacrificar a idolatria de si mesmo: “Escuta, Israel, o Senhor é o único Deus ... ”.
- Escutar é uma revolução dentro de si: é deixar Saulo para ser Paulo, é deixar Simão para ser Pedro. Escutar é fazer violência: “... o Reino dos céus é arrebatado à força e são os violentos que o conquistam” (Mt 11, 12).
- Escuta e Manifestação. Escutar é permitir que o outro venha; é o outro vindo e eu indo. Ele só vem se eu for, e eu só vou se ele vier. "Disse-lhe Filipe: ‘Senhor, mostra-nos o Pai e isso nos basta’. Respondeu Jesus: ‘.... Aquele que me viu (ouviu), viu também o Pai. ... As palavras que vos digo não as digo de mim mesmo ...’ ” (Jo 14, 8-10).
- Escutar para quê? Para que um véu seja descortinado; para que o homem não mais se esconda em folhas de figos, não mais fuja de sua nudez, Raiz, Princípio e Origem, pois escutando a Origem, Deus aparece, se manifesta, se faz presente.
- Quem escuta se torna amigo da “voz” que fala, até mesmo passa a se assemelhar a esta “voz”: Moisés era amigo de Deus.
- “Pedro tomou a palavra: ‘Mestre, é bom para nós estarmos aqui’”. E quem não deseja uma boa transfiguração, mudar de forma? Por que será que as academias estão cheias e as dietas estão em voga? Será por acaso a busca de religiosidade e salvação depois de períodos de mundanismo? Por que será que tantas pessoas padecem de tanta insatisfação consigo mesmas? E a busca do par perfeito, por que será? A espera de dias melhores em todas as áreas também traduz a ânsia humana por uma melhor condição. A alegria infantil de brincar e a satisfação de estar entre amigos são também expressões de um regozijo vivido e buscado. Pedro saboreia por uns instantes a garantia de que realmente seremos transfigurados, que ganharemos uma nova forma, que entraremos em uma nova fase de vida. Tal transfiguração se chama divinização, posse da condição de filho de Deus (ter nas veias o sangue do Eterno).
- “Este é o meu Filho muito amado; escutai-o”. Só escutando, eu me calo por um momento e deixo aparecer uma voz, uma manifestação, uma presença. Depois disso eu terei uma outra fala e outros serão chamados a escutarem-me. Escutar é fazer um sacrifício, é deixar nascer uma fala nova, um novo projeto, uma nova opinião. Vejamos em São Pedro e São Paulo o resultado da “escuta”. Pedro, o “cara” mais “opinioso” do grupo terminou por deixar-se conduzir pela “voz” do Filho: "Em verdade, em verdade te digo: quando eras mais moço, cingias-te e andavas aonde querias. Mas, quando fores velho, estenderás as tuas mãos, e outro te cingirá e te levará para onde não queres” (Jo 21, 18). Paulo, o “valentão” que aprisionava os cristãos, rendeu-se ao amor, à cruz: "A caridade é paciente, a caridade é bondosa. Não tem inveja. A caridade não é orgulhosa. Não é arrogante. Nem escandalosa. Não busca os seus próprios interesses, não se irrita, não guarda rancor. Não se alegra com a injustiça, mas se rejubila com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Desde que me tornei homem, eliminei as coisas de criança. Hoje vemos como por um espelho, confusamente; mas então veremos face a face. Hoje conheço em parte; mas então conhecerei totalmente, como eu sou conhecido” (1Cor 13).
- “O Filho do homem será entregue nas mãos dos pecadores, será morto e no terceiro dia ressuscitará”. O decisivo para a nossa transfiguração é escutar, acatar amorosamente dentro de nós o discurso tremendo da cruz. Como seria tão confortável se não houvesse o mal e o pecado no mundo. Nosso Senhor nos exorta a entender que temos que dar conta da cruz para chegarmos à transfiguração. No fim das contas, “cruz” é suportar o peso da minha carne (“Não desprezeis a vossa carne” - Is 58, 7 -; “Suportai-vos uns aos outros no amor” - Ef 4, 2 -). É verdade que é justo que o ofensor, o malfeitor sofra por seus crimes, e que o inocente não sofra por culpa de maldades. Nosso Senhor sentiu na pele tudo isso, e, ao mesmo tempo, rogou: “Pai, perdoa-lhes”. Jesus não sentiu ódio, mas pesar pelo fato de muitos se encaminharem em rumo à perdição e fazerem outros sofrerem. A “cruz” é, portanto, carregar esse fardo, esse pesar. Suportar o irmão que mais parece inimigo é “cruz”. Mas.... assim como para ficarmos mais fortes e musculosos levantamos alteres, assim também carregar o peso do irmão (a cruz) nos faz mais fortes, emerge de nós uma nova vida que não conhecíamos, a vida do Eterno: O Filho do homem que padeceu pelo peso de carregar os irmãos que pareciam inimigos ressuscitou (cf. Mc 8, 31). Até psicologicamente quem carrega o peso dos irmãos que parecem inimigos sente a vida nova emergir em si. A vida alcança o seu máximo, o seu extremo, sua finalidade, seu objetivo e escopo, sua força e potência. A potencia que sustenta o mundo, que não deixa o mundo cair no abismo do ódio e da violência, a potencia do amor, a potencia do Eterno, pois “Deus é amor” (1Jo). Carregando o peso do irmão termino por me livrar do peso e das correntes que me aprisionam no meu desamor, egoísmo e egocentrismo. Adquiro “asas”, vida pulsante, experimento liberdade. Faço-me oferta, perco o medo de amar até o fim e perco o medo de me render, de falecer, pois quem ama passou da morte para a vida: vivo como ressuscitado. Por tudo isso é que a “cruz” é celebrada como “árvore da vida”.
- Jesus aparece radiante, belo, todo transfigurado. Isso significa que o ser humano que faz de sua vida uma doação é isso mesmo: belo, radiante e transfigurado. O ato de amor nunca é feio. O gesto de uma enfermeira que cuida de um paciente com esmero jamais será considerado um gesto feio: o amor sempre é belo, radiante, luminoso. Por isso se diz que o segredo da morte de Cristo é a Transfiguração. Aquele morto ali na cruz era glorioso. Ali estava pendurado um homem verdadeiro: isso é belo e glorioso. Um mundo real brilhante se esconde ao nosso lado, dentro de nós também, e não vemos, pois fugimos da cruz.
- Enquanto o sangue circular não há infarto, não há morte. Infarto é sangue que não circula. Na transfiguração, saiu vida, luz, saiu glória do corpo de Jesus. No Getsêmani saiu sangue dos poros (do corpo) de Jesus. “O sangue a Deus pertence”. Sangue é vida divina, é a vida a nós doada e que é chamada a se doar, a continuar a ciranda da vida dando vida a quem precisar. Viver só para si é mortal, é “infartante”. Abraçar a cruz seria dar de volta o sangue a mim doado, seria viver. Quem assume a cruz, a vida como doação – assim como Jesus - assume porque se vê “dominado” pelo desejo de viver. Na verdade, tudo indica que não tememos a cruz, mas tememos, sim, o chamado, a voz divina, a Palavra, a vida, o amor, a entrega sem reservas. E fugindo dessa grandiosidade que seria viver, amar e brilhar, terminamos a vida como num labirinto de medos, medo de tudo, ou derrotados com em um “xeque-mate”.