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Homilia Dominical do XIX Domingo do Tempo Comum - ano B / Frei João Santiago

Publicado por Frei João de Araújo Santiago | 11/08/2018 - 07:35

É verdade: o amor nutre, alimenta

(XIX Dom Comum João 6, 41-51)

- Para os judeus algo já tinha vindo do céu, a “palavra”, a Torá (o Livro sagrado e seus ensinamentos). Murmuravam por isso e também pelo fato de Jesus ser um carpinteiro e filho de carpinteiro. “Não murmureis entre vós”, disse Jesus aos judeus. De fato, murmuravam entre eles, judeus com judeus, como se buscassem apoio uns nos outros. Realmente cada um tem sua trincheira, sua defesa, suas idéias prontas e já concebidas, suas justificações, o seu orgulho. Aceitar uma boa novidade é difícil, desconstruir um sistema de vida e uma maneira de viver já costumeiros é quase impossível. Por isso Jesus disse: “Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o atrair. Está escrito nos profetas: Todos serão ensinados por Deus (Is 54,13). Assim, todo aquele que ouviu o Pai e foi por ele instruído vem a mim” (vv. 44-45). O Pai, portanto, trabalha, nos atrai ao seu Filho. Mas o homem também pode fazer a sua parte, pois também é verdade que temos uma voz interior que apela para o bem e a verdade. E para que a tal voz interior se faça ouvir basta que o homem não se negue, siga seu desejo maior de vida e comunicação com a fonte da vida, busque o seu complemento, seu repouso, saia de si para a fonte, em direção ao Pai eterno.

- A sede é mais do que bebida e água! A fome será sempre mais do que comida e banquetes. São tantas as fomes, tantas as sedes! A criança quer brincar, o jovem quer se divertir, o adulto quer uma saída para problemas e dilemas, o idoso quer descansar. São tantas as fomes, tantas as sedes! A vida mesma é faminta de viver, de vida. Nós humanos temos sede e fome de sentido, de reconhecimento, de amizade, de parceria, de família, de aconchego, felicidade, de ser amado e de amar.  É verdade: os humanos gostam de serem alimentados, serem reconhecidos, serem amados, procurados e queridos por outros e por um Outro muito maior.

- Nossa carne se origina, eu tive origem, do encontro de desejo de nossos genitores. “Os dois serão uma carne”, eu sou carne de meus pais, tenho a marca do amor deles; por isso participo do amor humano, da busca humana de ser abraçado, procurado, querido, alimentado por um olhar, por um amor. A criança cresce unida à sua mãe, que a nutre com leite “quentinho”, ternura, calor dos abraços e beijos, cuidados e palavras carinhosas. E, assim, todo leite oferecido a uma criança não é só leite, pois com o leite vai também o corpo da mãe, o amor e o olhar da mãe, um alimento para o seu coração e espírito.

- O bebê, quando está no seio bebe o leite e ao mesmo tempo “ingere” sua mãe. Aquilo não é só leite, é sua mãe se dando em alimento e ele, o bebê, sorve sua mãe. Não é um mero corpo sendo alimentado por outro mero corpo, mas uma “pessoa-alimento” que salva e faz viver outra pessoa. Poxa! Que presença que alimenta e nutre! É desta maneira que a criança vai descobrir a própria identidade e seu lugar em relação ao pai, aos outros e na sociedade. Expansão de um novo ser, organização da vida emocional e psíquica.  “Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente. E o pão, que eu hei de dar, é a minha carne para a salvação do mundo" (v. 51). Há um alimento celeste, é Jesus de Nazaré. Ele traz e nutre a vida do Espírito. Ele como alimento nos faz ingressar no Reino de Deus.

- A pessoa de Jesus se faz alimento, pão e bebida. Quem se aproximava de Jesus era nutrido pelo seu olhar amoroso e de eleição, alimentado por suas palavras de vida que nutrem o coração e o espírito. É bem verdade que temos um corpo de necessidade. Mas não esqueçamos que este mesmo corpo pede, solicita, deseja e quer comunicação, quer entrar em comunhão de amor com tantos outros e quer também descansar em Outro.

Importa não recalcar, não abafar a busca humana, o nosso anseio de “pão da vida, pão vital” que sacia o coração, pois o próprio anseio atesta o espaço divino em nós. Não tenhamos medo de sentir o “latejar” de Deus em nós. Por vezes nossa agitação, nossa tagarelice frívola, devaneios ilusórios, fantasias de grandeza, pecados, jeremiados, entorpecentes e medicamentos (drogas), dependências e apegos são tentativas de não sentir a falta, de abafar o desejo do “pão da vida”. Abafar o desejo do “pão do céu” é muito perigoso, nos leva a viver abocanhando o próximo: “Se vós, porém, vos mordeis e devorais uns aos outros, vede não vos consumais também uns aos outros” (Gal 5, 15). Não fiquemos paralisados quando nossos empreendimentos e projetos fracassam, não passemos nossos anos remoendo ferimentos, derrotas e desesperanças. Somos convidados pelo Senhor a nos separarmos daquelas coisas que não têm vida e que parasitam o nosso desejo de se dirigir ao essencial. Quando Jesus diz “o pão, que eu hei de dar, é a minha carne para a salvação do mundo”, Ele está convocando cada um de nós a viver no amor, isto é, a acatar a carne, a pessoa dele, oferecida. Só assim a vida triunfa em nossa vida. Só desta maneira temos a vitória sobre o pecado, o ressentimento, sobre o sentimento de culpa, sobre o orgulho e a depressão que nasce quando projetos e empreendimentos fracassam. É vivendo desse amor que faremos as pazes com nossos lutos e perdas, e faremos a reconciliação com a “irmã morte” e não viveremos só para o pão que perece.

- Alucinar. Dizem que os bebês alucinam. É verdade! Após mamarem em suas mães, quase sempre mantêm os lábios em sucção como se ainda estivessem mamando. Parecem até que não querem esquecer o bom momento de encontro que com a mãe que tiveram. Que não paremos de alucinar, que não deixemos de buscar o verdadeiro pão do céu. Ao criar o homem, Deus insuflou o seu hálito e a partir de então o homem não se basta: se a fome é infinita somente um pão do céu (do infinito) pode nos saciar. “Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente”, disse Jesus. Jesus como nosso “pão” é nossa chance, oportunidade de renascimento e de passar a viver de comer desse pão do céu; é oportunidade de viver do amor d´Ele e quem vive do amor d´Ele se projeta em direção ao Pai, pois filho se torna, já que quem come a carne do Filho, filho se torna.

- Que provocação! Que pretensão! Quem aceitava as palavras de Jesus ficava mexido: “Eu sou o pão que desceu do céu. Quem crê em mim tem a vida eterna. Eu sou o pão da vida. Não morre quem dele comer. E o pão, que eu hei de dar, é a minha carne para a salvação do mundo”. Jesus nos desperta e nos inicia em certo desejo: desejar o desejo d´Ele: Ele deseja nos oferecer sua carne e espera que desejemos sua carne. 

- Jesus causava admiração. O mal não lhe deixava abatido, sabiamente livrou a mulher da morte por pedradas, curou enfermos, reanimou os abatidos, entregou-se com confiança aos desígnios do Pai, afrontou os poderes, poderosos e a própria morte. Apresentava-se como um homem realmente vivo, vivente e que fazia outros vivos e viventes. Hoje Ele nos diz: “Eu sou o pão que desceu do céu. Eu sou o pão da vida. Quem comer deste pão viverá eternamente”, e nos convida a “mastigá-lo” e “degluti-lo”, apropriar-se dele em nossa afetividade, em nossa inteligência e em nosso convívio com os demais. Vamos nos saciar de seus ensinamentos, satisfazer-se de suas ações e opções. Somos convidados a “tirarmos vantagem” desse Jesus que se faz alimento, comida, nutrimento. Será nossa chance de “começar a falar” (“Ser alguma coisa ou alguém”), ser criativos, agir, se tornar semente, fermento, luz. “Eis que estarei convosco”, disse Jesus. E realmente está conosco quando estamos respirando suas palavras, comendo o pão vivo, eterno e celeste, aceitando ser alimentado por sua entrega (morte) amorosa em nosso favor: “E o pão, que eu hei de dar, é a minha carne para a salvação do mundo”.

Eucaristia.

O pão do céu é o próprio Jesus amando, entregando sua vida (“... o pão, que eu hei de dar, é a minha carne para a salvação do mundo”). A comunidade cristã é chamada a deglutir esta realidade. A partir de então não tem mais jeito, a comunidade viverá disso, viverá de ser testemunha do incandescente amor de Deus pela humanidade. “Fazei isto em minha memória”: Ele nos manda mergulhar o mundo inteiro nesse turbilhão de amor fluido e circulante. Jesus mesmo sentia ser esse turbilhão, esse ardor de desejo de comunicação, essa paixão de amor criador. Fazer a comunhão, receber o corpo de Cristo é participar de todo esse turbilhão, ardor e paixão de Cristo. “Tomai, comei e bebei”: saciados e inebriados seremos iniciados em outra vida, viveremos em dando carne, suor e lágrimas para a salvação do mundo. Viver em comunhão com Jesus é novidade radical, é despertar para uma outra vida, desde hoje: “... quem crê em mim tem a vida eterna”.

- Um pão bom, do alto, do céu, é mais do que um pão. É uma pessoa, é Jesus de Nazaré, o filho de José, o filho do Altíssimo, do Pai eterno. Participar da santa Eucaristia é assimilação do Filho, e filhos nos tornamos. O filho vive de outra vida, da vida do seu pai.  A Eucaristia que é participação na vida de Cristo, nos faz viver da vida que há entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

Sobre o autor
Frei João de Araújo Santiago

Frade Capuchinho, da Província Nossa Senhora do Carmo. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Mestre em Teologia Espiritual. Tem longa experiência como professor, seja no Brasil, como na África, quando esteve como missionário. Por vários anos foi formador seja no Postulantado, como no Pós Noviciado de Filosofia. Atualmente mora em Açailândia-MA. Já escreveu vários livros e muitos artigos.