Solenidade do pai seráfico São Francisco de Assis / Frei João Santiago
Solenidade do pai seráfico São Francisco de Assis
“Jesus tomou a palavra e disse: ‘Dou-te graças, Pai, porque ocultando estas coisas aos entendidos, tu as revelaste aos pequenos ...” (Mt 11, 25-30).
Francisco se casou com a Dama Pobreza, tornou-se pequeno.
Casar-se com a Dama Pobreza é fazer as pazes em ser criatura, não necessário, e é casar-se com o próprio aniquilamento. Aniquilamento? Sim: não escolher a si próprio, mas a Deus; perder, gastar a própria vida pelo Evangelho (cf. Mt 14, 24-25).
Aqui teremos uma criatura grata pelo dom da vida. A vida passa a ser um hino de louvor, não um reter nem o ser próprio. Aqui a criatura deixa de ser sujeito (sub-jectum), “assujeitado” pelo meio no qual cresceu, e se abre para a vida do Eterno, para outra gramática, outra linguagem, outro horizonte. Aqui temos um São Francisco “‘enxergando’ não sei o quê” e cantando o cântico do Irmão Sol.
Casar-se com a Dama Pobreza é acatar em si a maior experiência possível de Deus nesta vida, é divinização, filiação. Procurar casar-se com a Dama Pobreza é se reinventar sempre, não se bastar no poder de ter e possuir a fim de ser algo mais belo. Sem a Dama Pobreza, tudo o mais “parece” poder casar comigo, mas não casa comigo, não se estabelece comigo[i]. Daí a insatisfação.
A Dama Pobreza é o “mais-além”. São Francisco se delongava em contemplando a humanidade do Filho de Deus. Afinal, o lado mais humano do homem é o seu padecimento, sua carência, precisão, sua necessidade. O que se esconde neste estado de criatura privada e inacabada?
São Francisco via a Dama Pobreza como pobre e bela. O doce tornou-se amargo e o amargo, doce. Passou a saborear o seu humano, o seu padecimento, o seu ser inacabado. O Cristo, ele o encontrou no leproso purulento! Mas a Dama, a humanidade do Filho de Deus, tem um poder próprio: se aceita, leva o amante a Outro. Casemo-nos com ela, portanto!
O ser humano “centrado em si” e em suas fantasias de grandeza, ou outras, jamais se converterá (“conversão” enquanto mudança de rota para, a partir de então, vislumbrar um algo novo na vida), jamais sairá de si para encontrar o Outro. Jesus disse: “O Reino está próximo, convertei-vos”, e não: “Convertei-vos, o Reino está próximo”. Isso significa que primeiramente deve haver a irrupção do Reino, da Palavra[ii], um rompente proveniente do Eterno para nos tirar do torpor, do estado de “centrado em si”. Quanto é resistente o teu torpor, leitor? A Dama Pobreza nos promete um “gioire” desconhecido por nós[iii]. Usufruímos de um “gioire” localizado naquilo e naquela coisa precisa (numa música, numa pessoa, num passeio, numa graduação etc.). O “gioire” ofertado pela Dama Pobreza não é isto ou aquilo, não é pequeno, não é mesquinho, não é bem localizável, toca o céu, se aproxima da lógica do inefável, é misterioso (quando mais se dá a conhecer, mais tem por revelar): a linguagem não pode açambarcar, restando ao sujeito se deixar levar[iv].
Que pena! A Dama Pobreza é desprezada, como nos diz “Sacro Commercium”. A Dama Pobreza para ser reinventada, para resplandecer nas almas cansadas e neste mundo marcado por feiuras precisa ser amada por um homem.
São Francisco, abraçando o leproso, o crucificado, e amando a Dama Pobreza, acolhia o nada, a falta de que não temos tudo, nem todos e não podemos tudo[v]. Fazia-se pobre. E naquela indigência fazia-se possível, pela Graça, o aparecimento de uma realidade poderosa, a realidade do Amor – que é o próprio Deus. Poderosa porque vence a morte: “Aquele que ama passou da morte para a vida” (1Jo 3, 14).
O Amor abraça quem ama a Dama Pobreza e aí o ser humano encontra a Paz. A marca de São Francisco é ser o irmão menor de todos e da criação: a Paz reina no entorno de Francisco. Assim, a criatura, para além de toda pujança que se acaba, desemboca em uma fruição e pujança duradoiras, impossíveis de se dizerem, impossíveis de ser representadas. A criatura humana se torna lugar de ação para o Criador e receptáculo da presença das outras criaturas. São Francisco, homem de desejo, foi primeiramente desejado pelo Criador. E na tensão de desejar e ser desejado manteve o viço, a vida, e cantou: “... e é morrendo que se vive para a vida eterna”.
[i] Dom Juan, o conquistador, teve inúmeras amantes, mas morreu sozinho: não se estabeleceu e nem se “casou” com nenhuma delas.
[ii] “Palavra” (Dabar. Verbo. Ação). Fala de uma ação de Deus que “pro-voca” o homem: provocou Abraão a deixar a casa dos pais e prometeu o Impossível, o Invisível....... Provocou Lázaro: “vem para fora ... deixai-o caminhar”. A fé judaico-cristã tem a marca da “Palavra” que de um lado dá sentido às coisas e de outro lado continua sendo um mistério, pois a Palavra de Deus é o próprio Deus agindo, nos convidando sempre a algo mais. Ver a baixo o testemunho de Inácio de Antioquia.
[iii] O verbo “gioire” em italiano significa um “proveito” no sentido de degustar, saborear um bom vinho, uma boa comida; significa um entregar-se às boas companhias, a um passeio em meio à natureza; significa um contentamento e um dar e receber, uma entrega.
“Gioire” “promete”, nos projeta para um “plus ultra”. É um estado sem “aperreio”, talvez aquilo que Kant chamou de Zweckmässigkeit ohne Zweck: vive-se o momento presente; momento este não perturbado por nenhum objetivo. Acreditamos que em português o verbo mais próximo seja “regozijar”, em inglês seja “to enjoy” e em francês “jouir”.
[iv] Há no nordeste brasileiro a expressão “reinar”. Onde se reina? Geralmente a mãe tem vontade de reinar em seu bebê, isto é, vontade de apertar, beliscar... as bochechas rosadas. Temos a atração que acessa a Deus, eis o sentido dos sentidos espirituais que passam também pelos cinco sentidos. De um lado, temos o desejo que é uma coisa que sai de mim. A atração é outra coisa: é algo outro que me desmancha porque não tenho como enquadrar, compreender. É siderante.
[v] “Oh, nada desconhecido, Oh, nada desconhecido! A alma não pode ter melhor visão neste mundo do que contemplar o próprio nada e morar nele como na cela de uma prisão” (Il libro de La B. Angela de Foligno, p. 131).