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XXII Domingo do Tempo Comum - ano C / Frei João Santiago

Publicado por Frei João de Araújo Santiago | 31/08/2019 - 21:30

XXII Domingo do Tempo Comum - ano C (Lucas 14, 1.7-14)

A nossa vida pode, sim, ser um banquete, uma festa, mesmo com tantos pesares. Acontece, porém, que parece que perdemos um pouco de nossa visão, um pouco do nosso tato, audição, olfato e paladar humano-espirituais. Não mais nos damos conta da grandeza, da eternidade, que se faz presente quando o maior presente “ainda” é o outro, a outra pessoa, o semelhante nosso. Desta maneira é que vamos envenenando a vida, estragando a festa. O próprio Deus se mostrou amigo e servidor do homem, lavou-lhes os pés. Obstinadamente, porém, o homem resiste em ser humilde, em acatar sua natureza amorosa e amiga. Parece preferir a alma de uma onça faminta que devora a quem puder. Tudo isso tem um alto preço: tanto investimento e nenhum retorno: quem se exalta será humilhado.

Alguém diz que toda a nossa luta pelo primeiro lugar esconde um medo: o medo de morrer, de desaparecer, de virar um nada. Ora, a parábola de hoje fala de um banquete, o comer juntamente com pessoas. Experimentar Deus, a vitória sobre o mal e a morte, é a mesma coisa que entrar em comunhão (em banquete) com todo rosto humano criado à imagem e semelhança de Deus. Podemos de maneira imbecil insistir em digladiar-se reciprocamente (“Eu sou o dono, eu ocupo o primeiro lugar, o dono da festa é mais amigo meu do que de ti, etc.) ou podemos nos converter, aceitar a Jesus e o seu Evangelho: “Sou eu, o Senhor, teu Deus, eu que te retirei do Egito; basta abrires a boca e te satisfarei” (Sl 10).

- "Jesus entrou num sábado em casa de um fariseu notável, para uma refeição; eles o observavam" (v. 1). Observavam quase que querendo tê-lo sob controle, pois sabiam que Jesus poderia dizer algo inconveniente, meio constrangedor, e, assim, estariam prontos para respondê-lo à altura.

- "Observando também como os convivas escolhiam os primeiros lugares, propôs-lhes a seguinte parábola ...” (v. 7). É notório e fazemos experiência que temos uma espécie de instinto que busca sempre o “primeiro lugar”, ser o centro das atenções e o mais considerado entre os demais que julgamos não merecedores ou de terceira classe. Não é por acaso que inventamos tantos títulos honoríficos e regras de precedência. Jesus nos evangeliza neste sentido quando nos diz: “Um só é o Mestre, vós todos sois irmãos”. Sabia Ele que as intrigas, “ciumeiras”, calúnias, difamações e todo tipo de guerra nascem por causa dessa busca de ser o “tal”, de aparecer, ter os holofotes sobre si e de ter o poder de comando sobre os demais. E ainda nos perguntamos o porquê da nossa alma, de nossa família, da nossa cidade, do nosso mundo apresentarem-se assim tão marcadamente violentos? Infelizmente há aquele prazer pecaminoso quando se é considerado mais importante do que os demais, quando se diz ou se pensa: “Eu valho mais, tu vales menos”. Um mundo em disputa pelos primeiros lugares gera uma sociedade que divide pessoas entre pessoas “mais importantes” e outras “descartáveis”, e gera injustiça, divisão, opressão, revolta, sofrimento e ódio entre as pessoas.

Apesar de convidados por Deus para o banquete da vida, nos metemos a ser o dono da festa. Grande perigo nos ronda! Deixando-se levar por aquele “instinto” que nos torna inchados de “eu próprio” terminamos por destruir nossas famílias, amizades e comunidades. Sejamos vigilantes contra tal instinto maligno: “Sede sensatos e vigilantes. O Diabo, vosso inimigo, anda ao redor como leão, rugindo e procurando a quem devorar. Resisti-lhe, permanecendo firmes na fé” (1Pd 5, 8-9).

- “... Quando fores convidado às bodas, não te sentes no primeiro lugar, pois pode ser que seja convidada outra pessoa de mais consideração do que tu, e, vindo o que te convidou, te diga: ‘Cede o lugar a este’. Terias então a confusão de dever ocupar o último lugar” (vv. 8-9).

Alguém um dia estava se afogando e tentou se salvar puxando-se pelos cabelos. Assim acontece quando levamos a nossa vida imaginando que somos nós o autor da mesma, o dono da festa. No banquete da vida somos convidados, não o dono da festa. Certamente eu tenho um lugar especial neste banquete. O problema nasce quando eu quero ocupar o lugar de outro. Nosso Senhor fala de uma vergonha, de falimento e constrangimento quando se procura usurpar o primeiro lugar. Jesus nos ensina a tomar por conta próprio o último lugar. O resto, o que acontecerá depois, fica por conta do dono da festa. Façamos o que devemos fazer, façamos o bem, pois o bem praticado nos coloca no nosso justo lugar.

- “Mas, quando fores convidado, vai tomar o último lugar, para que, quando vier o que te convidou, te diga: ‘Amigo, passa mais para cima’. Então, serás honrado na presença de todos os convivas”(v. 10).

Todos nós temos dons e temos talentos, somos capazes de tantas belas coisas. Pode até ser pecado querer sempre o primeiro lugar, mas jamais será pecado desejar o melhor para si. Jesus chama atenção para os modos, as maneiras de alcançar a nossa “glória”, a maneira de se sobressair diante dos demais. A gravidade está em ser disposto a tudo, até em perder todos os escrúpulos, desde que se chegue ao primeiro lugar à custa do desprezo e descuidado para o outro.

Como superar nossos relacionamentos marcados pela concorrência (Tu concorres comigo e eu contigo; nós contra vós e vós contra nós)? Jesus tem a sua estratégia de superação. Jesus nos propõe de escolhermos o último lugar. O significado é: se todos escolhermos o último lugar, não haverá mais o mais importante e o menos importante, mas, sim, lugar para todos, um servindo o outro. Coloco-me em último lugar não porque me sinto menos valioso, mas porque não me sinto mais do que os outros, pois me sinto igualSenão há melhores também não há piores. E assim seremos exaltados, glorificados, isto é, teremos realizado a nossa vocação, teremos tido o prazer de ter alimentado alguém, promovido alguém, feito alguém crescer, tal como uma mãe é feliz em servir ao seu filho e vê-lo crescer.

Que em nosso horizonte não desapareça aquilo que nos faz realmente “gente” e feliz......   Importa que todas as minhas qualificações, dons, talentos e capacidades deem frutos, sirvam e promovam aqueles e aquelas que estão ao meio redor. Um dia uma netinha perguntou para sua avó: “Vovó, por que a senhora tem tantas rugas no rosto?” A avó respondeu: “Porque eu trabalhei muito, criei tua mãe e teus tios, cuidei de teu avô, cuido de ti; consumi minha juventude fazendo tudo isso...”. A partir daquele dia, a avó da netinha passou a ocupar o primeiro lugar na vida dela; e a avó passou a ser mais feliz por ocupar gratuitamente o primeiro lugar na vida da netinha.

Que um dia possamos ouvir do próprio dono da festa, o próprio Deus e Senhor: “Amigo, passa mais para cima”, pois pensas como eu, tem em mira o mesmo projeto que eu tenho, sonhas e ages em vista de um mundo no qual um promova ao outro.

- “Porque todo aquele que se exaltar será humilhado, e todo aquele que se humilhar será exaltado” (v. 11). Jesus, o Mestre por excelência, tem a visão ampla e correta das coisas da vida. Tendemos a não considerar o nosso amanhã, as consequências dos nossos atos. É dolorido e insuportável se deparar com certas humilhações. Lembramos daquele político japonês, Toshikatsu Matsuoka, que após ter sido acusado de corrupção cometeu suicídio. Tantos não conseguem lidar com o “peso da idade”, com a diminuição do padrão de vida, quando são superados no trabalho, quando são substituídos, etc.

O convite forte de Jesus é para que sejamos humildes, isto é, usemos de todas as nossas forças e potencialidades em vista do bem comum. E, depois de ter feito o bem, demos graças ao bom Deus por tantas maravilhas: “Não a nós, Senhor, não a nós, mas ao vosso nome seja a glória” (Sl 115). O combate espiritual é para que jamais humilhemos quem quer que seja, para que não deixemos a doença da hidropisia (símbolo do orgulhoso, do inchado de si mesmo, do porre do próprio eu) nos pegar.

- “Dizia igualmente ao que o tinha convidado: ‘Quando deres alguma ceia, não convides os teus amigos, nem teus irmãos, nem os parentes, nem os vizinhos ricos. Porque, por sua vez, eles te convidarão e assim te retribuirão. Mas, quando deres uma ceia, convida os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos. Serás feliz porque eles não têm com que te retribuir, mas tu receberás na ressurreição dos justos’” (vv. 12-14).

Para descobrir uma pedra preciosa por demais rara em nossa vida agitada

Por vezes escutamos que é pecado deixar comida se estragar. Muito bem! Diríamos que é pecado maior não fazermos uso de nosso tempo, de nossas capacidades, recursos humanos e materiais. Quando eu não faço bom uso do meu tempo e minhas capacidades, eu também estou me perdendo. Quem é o homem sábio? Aquele que constrói a casa sobre a rocha, que pratica a Palavra, disse Jesus. Tantos irmãos e irmãs estão esperando minha sabedoria, minha prática, minhas capacidades. Outro dia vi uma criança choramingando. “Por que choras?” E ela respondeu: “A mamãe me deixou, saiu, não voltou...”: o ser humano não foi criado para se bastar, mas para ceder-se, para entrar em comunhão tal como a criança que chora pela mãe.

 A Virgem Maria é-nos um exemplo: “Eis aqui a serva do Senhor”. Ser servo para servir. Servir para sair de si, da solidão, e entrar em comunhão, em relação de amor, de família.

Lembro-me de um amigo que dizia que - quando seu papai precisava sair - sua maior satisfação era encontrar os sapatos de seu pai e levá-los até ele. Era feliz em servir a quem amava. Alguém disse que um homem não terá encontrado a felicidade enquanto não visualizar uma causa, uma pessoa pela qual esteja disposto a morrer, servir com a própria vida. Um dia um jornalista encontrou Madre Teresa tratando as chagas fétidas e purulentas de um leproso. E ele disse: “Madre, eu não faria isso nem mesmo por um milhão de dólares!”. E ela respondeu: “Eu também não! Certas coisas não tem a ver com dinheiro. Nesta terra há coisas que só fazemos por amor, não por outro motivo”.

Quem se humilha”, isto é, quem descobre que o outro não é um adversário ou uma ameaça à minha felicidade. O homem humilde é o homem que se sabe filho do Pai e que tem muitos irmãos, não muitos concorrentes. Acatar tal verdade muda tudo: o homem se torna pronto para apreciar sem reservas o mundo criado por Deus, passa a amar as criaturas, tempos e estações, se torna pacifico com tudo o que lhe aconteça (graças e “desfeitas”) e, acima de tudo, citando Roberto Carlos, supera-se todo inchaço de si e egoísmo: “Eu quero apenas olhar os campos. Eu quero apenas cantar meu canto.Eu só não quero cantar sozinho. Eu quero um coro de passarinhos, amigos, irmãos.... Quero levar o meu canto amigo. A qualquer amigo que precisar. Eu quero apenas um vento forte. Levar meu barco no rumo norte. E no caminho o que eu pescar. Quero dividir quando lá chegar.  Eu quero ter um quintal sem muro.

Os fragilizados no corpo e na alma (aleijados, coxos e cegos) devem receber o convite, devem ser bem aceitos na comunidade cristã. Aleijados são os que tenham se levantar, mas não conseguem por conta própria, até que ficam de pé por um tempo, mas depois caem. Coxos são os que caminham com muita dificuldade, tem defeitos. Os coxos lembram que a comunidade cristã não é um grupo de “puros”, mas uma família que ajuda os coxos a caminharem. Cegos são os irmãos que erram a estrada, se desviam. Também estes devem ser chamados ao banquete, a saírem da cegueira.

- “Serás feliz porque eles não têm com que te retribuir, mas tu receberás na ressurreição dos justos’” (v. 14). Receber a recompensa é receber palavras de reconhecimento, de parabéns, de congratulações porque se “adivinhou” e se praticou o caminho da vida, da felicidade. Nosso Senhor na Cruz, aos olhos do mundo, foi considerado um fracassado, um derrotado. Mas, como o amor é mais forte do que a morte, Ele ressuscitou. “Abismo chama abismo”: se és feliz em ver o outro feliz, nada ou ninguém poderá roubar-te a felicidade, pois estarás em Deus e “saboreando” da mesma felicidade reinante em Deus.

Sobre o autor
Frei João de Araújo Santiago

Frade Capuchinho, da Província Nossa Senhora do Carmo. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Mestre em Teologia Espiritual. Tem longa experiência como professor, seja no Brasil, como na África, quando esteve como missionário. Por vários anos foi formador seja no Postulantado, como no Pós Noviciado de Filosofia. Atualmente mora em Açailândia-MA. Já escreveu vários livros e muitos artigos.