Homilia do VII Domingo do Tempo Comum - Ano A / Frei João Santiago
VII Domingo do Tempo Comum - Ano A (Mateus 5, 38-48)
Diz o Cântico dos Cânticos que o amor é forte como a morte. Já São João nos diz que o amor vence a morte. O amor de Deus é implacável, é como o sol e como a chuva que “caem” sobre todos. No final de nossas vidas seremos julgados pelo amor (Mt 25, 32ss). Para não haver perdição, que o amor chegue a todos.
“Tendes ouvido o que foi dito: Olho por olho, dente por dente. Eu, porém, vos digo: não resistais ao mau. Se alguém te ferir a face direita, oferece-lhe também a outra. Se alguém te citar em justiça para tirar-te a túnica, cede-lhe também a capa. Se alguém vem obrigar-te a andar mil passos com ele, anda dois mil. Dá a quem te pede e não te desvies daquele que te quer pedir emprestado. Tendes ouvido o que foi dito: Amarás o teu próximo e poderás odiar teu inimigo. Eu, porém, vos digo: amai vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, orai pelos que vos [maltratam e] perseguem. Deste modo sereis os filhos de vosso Pai do céu, pois ele faz nascer o sol tanto sobre os maus como sobre os bons, e faz chover sobre os justos e sobre os injustos. Se amais somente os que vos amam, que recompensa tereis? Não fazem assim os próprios publicanos? Se saudais apenas vossos irmãos, que fazeis de extraordinário? Não fazem isto também os pagãos? Portanto, sede perfeitos, assim como vosso Pai celeste é perfeito”.
“Se alguém te ferir a face direita, oferece-lhe também a outra”.
Experimente: você com sua mão direita não consegue, normalmente, esbofetear a face direita de quem esteja na sua frente. Neste caso teria que usar o dorso ou as costas da mão direita. Bater com o dorso da mão acontecia quando um mais forte (patrão, militar romano) queria humilhar o mais fraco (um escravo, um simples “cidadão”) e mandar um recado tal como: “Fique em seu lugar! Submeta-se a mim!”. Jesus, neste caso, pede ao discípulo que ofereça a face esquerda. Neste caso, o agressor não conseguirá usar o dorso e caso queira bater novamente terá que dar um soco. Ora, agredir o oponente com um soco era um gesto que só se admitia entre “iguais” (um soldado bateria assim em outro, mas jamais num camponês, pois seria reconhecer a este como tendo sua mesma dignidade). E, deste modo, oferecendo-lhe a outra face, o agredido reivindicava a dignidade que lhe cabia e comunicou ao agressor que se recusa a ser humilhado. Convidava também ao seu agressor a reivindicar a verdadeira dignidade dele, examinando a mentira em que vivia ao acreditar que um ser humano fosse melhor que outro. E tudo isso se fazia sem uso de violência, sem devolver a agressão.
Mazen Juliani era um farmacêutico palestino de 32 anos, pai de três filhos. No dia 5 de junho de 2001 enquanto tomava café foi alvejdo por um bala e veio a óbito. Um judeu tinha disparado a arma. A família decide doar os órgãos. Avisaram à esposa que havia um judeu na lista de espera por um coração doado. A esposa respondeu: “Não quero que o meu coração morra junto ao meu marido”. Poderia ela refugiar-se no seu ódio, endurecer-se no ressentimento, mas, ao contrário, não. Hoje o judeu Yigal Cohen vive com um coração palestino. Ela cumpriu a recomendação de Jesus: ofereceu a outra face.
“Se alguém te citar em justiça para tirar-te a túnica, cede-lhe também a capa”.
O contexto desse dito de Jesus nos mostra uma situação calamitosa na qual, devido a dívidas injustas, o pobre terminava espoliado até de suas vestes. Já êxodo 22, 25-27 proibia tomar o manto ou a capa do pobre por motivo de dívidas.
O que fazer para que quem nos envergonhe reveja suas atitudes? Como ajudá-lo a tomar consciência do mal que faz? Ora, aquele que foi obrigado a tirar a túnica é convidado, pelas palavras de Jesus, a entregar também a capa. Resultado? Ficou pelado. Isso mesmo! Porque a túnica era a veste interna, íntima e a capa era a roupa externa. Na cultura em que Jesus viveu, não era tão escandaloso assim ficar nu: escandaloso era olhar para alguém que estivesse pelado. E, talvez, envergonhado diante da cena, aquele que tinha pedido a capa veria a consequência dos seus atos e de como degradou o outro até ao ponto de deixá-lo pelado. Jesus, assim, ensina-nos a afrontar a injustiça sem usar violência, nos pede que sejamos criativos e que acreditemos no poder das nossas respostas e reações perante certas situações que julgamos sem saída a não ser aquele de odiar. Importa não comportar-se como vítima, e nem ceder à violência, mas em todas circunstâncias fazer reinar o bem não se deixando envenenar pelo ressentimento e procurando também o bem do agressor: que ele “repense” suas malvadezas.
“Se alguém vem obrigar-te a andar mil passos com ele, anda dois mil”.
Acontecia muito na época que os soldados romanos obrigavam “os pequenos” a carregarem bagagens. A lei romana, no entanto, proibia que se obrigasse alguém a carregar por mais de 1 km. Isso para evitar revoltas. Imagine você o quanto embaraçado e constrangido ficava o soldado romano vendo que o pobre coitado continuava a carregar a bagagem para além de 1 km. Ficava temeroso de sofrer uma punição do seu superior e se sentia obrigado a pedir a bagagem de volta. Mais uma vez criava-se uma situação na qual o opressor era chamado a refletir sobre sua atitude de déspota e de humilhação. Ele, de repente, se via na situação de pavor, de medo, e era convidado assim a imaginar o que o pobre passa. Via-se convidado a viver o ponto de vista do outro, a imaginar-se na situação de quem sofre.
Com estes dois exemplos vimos que o discípulo de Jesus não reage violentamente, não toma a atitude de passividade (“Não tem jeito, o mundo é assim mesmo, deixa pra lá”) e nem espera que Deus resolva tudo num passe de mágica.
“Amai vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, orai pelos que vos [maltratam e] perseguem”.
Quando estamos em dificuldade financeira e um amigo nos faz um empréstimo, automaticamente o nosso bem-querer aumenta em relação a tal pessoa. Mesmo quando a relação entre pai e filho encontra-se desgastada, o pai não receia em abrir a porta ao filho quando este chega tarde em casa E Jesus diz: "Se amais somente os que vos amam, que recompensa tereis? Não fazem assim os próprios publicanos? Se saudais apenas vossos irmãos, que fazeis de extraordinário? Não fazem isto também os pagãos?” Ou seja, tais reações e emoções são boas, mas não dão conta de outras situações da vida. Afinal, o que fazer com os que causaram ou causam-nos feridas?
Amar o inimigo significa ser como Deus que faz surgir o sol e a chuva sobre os bons e os malvados, justos e injustos.
Não confundamos o amor com os sentimentos de amor.
Jesus não diz: “Deves sorrir aos teus inimigos” ou “deves sentir simpatia, consideração, admiração ou deves sentir afeto pelos teus inimigos, pelos que ti fizeram o mal ou por quem te feriu (sentimentos de amor). Afinal, as emoções não se comandam. Como pode uma mulher que apanha sorri ao seu marido? Como pode um homem que foi enganado pelo sócio sentir afeição e benevolência por quem o deixou na sarjeta? Não se trata de sentir sentimentos amorosos pelos inimigos, mas de amá-los, de continuar a fazer o bem e o melhor para eles.
Se o coração reage ao mal com o mal, a pessoa se tornará igualzinha ao malfeitor. E então o amor será renunciado e no lugar do amor nascerá ódio e ressentimento. Teremos um coração envenenado.
Se tu fazes o mal porque alguém te fez o mal, ele vence duas vezes. A primeira vez porque te feriu, a segunda porque te fez igualzinho a ele. E pensando bem, nisso não há nenhum vencedor, mas todos derrotados: o mal triunfou sobre um e sobre o outro.
Uma mulher largada com seus dois filhos sempre impede que o pai das crianças as veja. Diz que fará de tudo para vê-lo pagar pelo que fez. Obviamente que tal senhora ficou ferida. Claro que precisa dar uma reviravolta na sua vida para voltar a viver. Porém, viverá, terá vida nova, enquanto viver só para ver o ex-marido pagar pelo que fez? Certamente não, pois se mantém amarrada no desejo de vingança? A Palavra a convidaria a amar o seu ex-marido (que não é provar afeto por ele), a querer o seu bem: que ele veja os seus filhos.
Um dia Ben Hur jurou vingar certa desonra. Mais tarde, de fato, vingou e saboreou o seu revanche assistindo a desgraça mortal do seu rival. Passado uns dias a esposa disse-lhe: “Você não é mais o homem com o qual casei. Você se parece com... Salazar”. Salazar era o seu adversário morto, a quem ele odiara. Ben Hur tinha escutado o sermão da Montanha, mas não se ateve a ele, não o praticou. Perdeu a si próprio: a própria esposa afirmou isso.
O Pai do céu não somente ama o justo e o injusto, mas também quando tu, que és justo e bom, te comportas como injusto e malvado.
Os discípulos de Jesus são convidados a contemplar o Pai como um sol que ilumina a todos, um Pai que se sente responsável de toda criação, como uma mãe que cuida do filho saudável e do filho enfermo no corpo ou na alma. Os discípulos de Jesus gozam desse espírito que clama Abba (pai). Ter o mesmo espírito de Jesus nos leva a ter suas mesmas atitudes. Que todos tenham vida (Jo 10, 10) era o motivo da vida do Senhor. Sua maior paixão era a salvação de todos, o bem de todos. O amor requerido no Evangelho deste domingo vai nesta direção, na direção de considerar que o mais importante é mesmo o bem de todos, também do malvado.
- Oferecer a outra face, caminhar 1 km a mais, entregar a capa, emprestar.... parece dizer que sempre haverá uma chance, uma possibilidade para se recomeçar, para se abrir um processo de paz, para se rever uma sentença dada e um julgamento feito; sempre haverá uma chance para um diálogo renascer e que a relação cortada não terá a ultima palavra. É como dizer: “Podemos recomeçar?”.
- Oferecer a outra face, caminhar 1 km a mais, entregar a capa, emprestar....fala-nos de um mal maior, um mal maior do que perder algo neste mundo, fala-nos daquele mal que é alguém passar por esta vida e não descobrir o bem, a alegria, a paz, a comunidade, a irmandade, a boa consciência, e o próprio Deus. Daí que Jesus nos convida a um trabalho pelo bem de quem quer que seja.
- Até onde um discípulo de Jesus estará disposto a ir para salvar um irmão? Até quantas vezes oferecerá a face? Quantos kilometros carregará fardos de alguém? Sabemos que o Mestre dos discípulos esteve disposto a tudo, até não poder mais, até a morte.
- Sede perfeitos, assim como vosso Pai celeste é perfeito. Sede santos porque eu, o Senhor, sou santo (Lev19,2). Não guardarás no teu coração ódio para com o teu irmão, não conservarás rancor, amarás o teu próximo como a ti mesmo (Lev 19,17-18).
A santidade requerida por Jesus na passagem evangélica deste Domingo está ao nosso alcance, é um convite e desafio, é como se mostrasse para nós uma porta escancarada possível de adentrarmos. E se ousássemos entrar? Qual mundo nos seria possível habitar? Seria comungar da realidade de Deus (sede como Deus, e Deus é santo). Graças ao nosso redentor uma graça, uma força divina foi nos dada e cumprir o mandamento não nos é pesado (1Jo). O que será realmente triste é um dia descobrirmos que éramos capazes e não o fomos.
Onde fazer acontecer essa Palavra? Na nossa historia de vida, no nosso dia-a-dia, em nossos encontros e desencontros. Aqui temos uma possível santidade no cotidiano.
Atenção! Jesus não diz de sermos santos “quanto” Deus o é (o que seria impossível), mas “como” Deus que faz surgir o sol sobre os bons e sobre o malvado. Nosso Senhor pede que tenhamos atitudes que promovam o bem – em todos os recônditos, até no mais íntimo e escondido de um coração amargo - nesta terra tão agressiva e tão cheia de desumanidade. E o discípulo que se tornou nova criatura, que traz em si a marca de filho de Deus, que já experimentou que a justiça e o amor são reais e são possibilidades em tantos corações, mesmo naqueles que persistem em obras malvadas, sabe que é possível tornar real as Palavras do divino Mestre.